segunda-feira, 14 de maio de 2018

Augusto Gil (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol.3) II


CARTA A UM RAPAZ SENTIMENTAL

<Um mover d'olhos brando e piedoso
Sem ver de quê; um riso brando e honesto
Quase forçado; um doce e humilde gesto
De qualquer alegria duvidoso
( )
Um encolhido ousar; uma brandura,
Um medo sem ter culpa; um ar sereno,
Um longo e obediente sofrimento.>
Camões

Num quente e perturbante fim de tarde,
Cujo magnético e profundo enlevo
Ainda agora em mim crepita e arde,
Como se fosse a tarde em que te escrevo,

Ergui os olhos distraidamente,
A ver se já brilhava alguma estrela
No concavo do céu opalescente
--E vi, numa varanda, os olhos dela...

Do episodio que acabo de contar-te
Tão simples, tão banal, que dá vontade,
Para lhe pôr um bocadinho d'arte,
De lhe roubar um pouco de verdade,

Foi que este amor espiritual nasceu,
Nasceu, cresceu e se tornou eterno...
Repara, amigo, como olhando o céu
A gente, ás vezes, pode achar o inferno.

Mas quem podia então adivinha-lo?
O olhar dessa mulher era tão lindo
Que deslumbrado me fiquei a olhal-o.
Descera a noite. A lua ia subindo...

Era lua cheia e, para mais, d'agosto;
Dava em toda a varanda. Assim, eu via
As formas portuguesas do seu rosto
Nitidamente, como á luz do dia.

E cá dentro de mim senti nascer
A dúvida, a incerteza, a hesitação
Sobre o que mais desejaria ser:
Se o noivo dela, se o primeiro irmão...

Uma estrela cadente reluziu
Por sobre as torres da vizinha igreja,
Pensei comigo: Deus o decidiu:
É minha noiva que Ele quer que seja.

Não dizia ventura, mas desgraça,
A claridade do sinal aéreo.
(Na mesma direção da igreja, passa
A rua que vai dar ao cemitério...)

Porém, como querendo agradecer-me
A decisão que atribuira a Deus,
Inclinou-se de leve para ver-me
E os doces olhos demorou nos meus.

Sob a caricia desse olhar cinzento,
Que ao abaixar-se parecia negro,
O coração que me batia lento,
Mudou o andamento para alegro.

Uma hora decorreu. Outras passaram.
Passaram, foram-se; e naquele enleio
Que tempo os nossos olhos conversaram!...
Estava a noite já em mais de meio.

Vinha dos montes uma brisa ardente.
O céu ganhara tons d'azul cobalto.
O luar caia silenciosamente.
Na sombra, os rouxinóis cantavam alto.

Arrependidos, ou então, cansados
De se fitarem com demora em mim,
Os seus olhos piedosos e sagrados
Ao dialogo d'amor puseram fim.

Desviara-os; e entre as pálpebras discretas,
Pousara-os nas mãos claras e pequenas,
Como se foram duas borboletas
Voando para duas açucenas.

Ergueu-se. O busto delicado e fino
Tinha os suaves, religiosos traços
Da Virgem num altar. Só o Menino
Faltava na doçura dos seus braços...

Num olhar impregnado de candura,
Disse-me adeus e recolheu. Depois...
A luminosa noite fez-se escura.
Calaram-se na sombra os rouxinóis.

Entrei em casa e quis dormir. Raiara
A madrugada sem que o conseguisse.
Quem um sonho tão límpido sonhara,
Inútil se tornava que dormisse...

Anos felizes neste amor gastei.
Vieram em seguida as horas más.
O que nelas sofri, o que passei,
Um dia, noutra carta, o saberás.

MÃOS FRIAS CORAÇÃO QUENTE

Dez da manhã. Vento da
serra. Trés graus negativos.


“Mãos frias, coração quente”!
Quanta vez isto dizias
Com o teu ar sorridente,
Apertando-me as mãos frias...

Agora decerto o tenho
Num braseiro, num vulcão.
O frio é tanto, é tamanho
Que a pena cai-me da mão...

Q'ria dizer-te o que penso
E o que faço e premedito,
Mas posso lá ser extenso
Com este frio maldito!

Tu perdoas certamente,
Tu não te zangas, pois não?
“Mãos frias, coração quente”
– Lá diz o velho rifão...

JOANINHA
A Mayer Garção

Descanse de quando em quando...
Passar assim toda a tarde
Sempre bordando, bordando,
Sem que um momento desista,
Até faz pena! Não lhe arde
Nem se lhe perturba a vista?...

Descanse de quando em quando...
Erga os olhos do bordado
E veja quem vai passando.
O trabalho alegra a gente,
Mas assim, tão aturado,
– Não lhe faz bem certamente.

Erga a carinha tranquila,
Erga esse rosto tão lindo
E veja os moços da vila
A passarem por aqui,
Uns descendo, outros subindo,
– E todos d'olhos em si...

Descanse de quando em quando
E veja se escolhe algum;
Já é tempo d'ir pensando
Em casar. Não é assim?...
Se não lhe agrada nenhum,
– Diga se gosta de mim.

Desde os começos do outono
Que eu a trago no sentido,
Não como, não tenho sono,
Tudo me dá ralação?
Quer-me para seu marido?
– Diga que sim ou que não...

Fonte:
Augusto Gil. Luar de Janeiro. Lisboa/Portugal: A Lanterna, 1909

Nenhum comentário: