Sentia-se tonto, o mundo todo de pernas para o ar, feito barata emborcada, a remexer-se em agonia de moribundo sem vela. As palavras perdiam a conotação lógica dos textos regulares de uma lei, tratado sobre a natureza humana, curso dos rios. Via-se lendo a macabra língua dos mitos. O chão virava teto, a cadeira pregava-se como aranha às vigas de uma teia de circo, as linhas proféticas das mãos metamorfoseavam-se em desenhos misteriosos de capas clássicas.
Não sabia explicar se não aceitava aquela mistura de arcaísmos, tupi e expressões populares, ou se apenas tinha medo de sonhar com livros cabalísticos.
Chegava ao fim da leitura com nojo de Pedro Amaro, estupefato diante daquele monstro que confessava sua torpeza: “Perguntado por que razão passara a lambedeira no cangote de um curumim, disse que a causa disso fora porque carecia de se espichar debaixo da jaqueira onde o mesmo estava deitado.”
Nunca mais leria tamanho cinismo. Aquilo deveria ser ficção de algum doido. Nada daquilo ficaria em sua memória, aquelas páginas de extrema virulência, por mais que lhe tivesse ferido os olhos. Se não, apagaria letra por letra, até não se lembrar mais sequer dos vocábulos arcaicos. Sobretudo aquele parágrafo nauseante: “Perguntado se no tempo que lá andou praticava malvadezas, disse que não; somente por rir metia a faca no bucho dos curumins quando dava na veneta desenferrujar o aço mas que não era de fazer marteiros nem de viver de ribaldarias nem de culpas”.
Jogou o livro para cima, irritado, acertou a lâmpada, que se espatifou. Houve um papoco e cacos finos caíram-lhe como neve sobre os cabelos. E ao relâmpago sucedeu a treva, e gritaram: – Seu Amaro, o que foi isso? Enxotou a empregada da sala, quando a infeliz tentava apanhar o livro estatelado aos seus pés. – Não pegue nisso, é porcaria. E continuou a falar do matador de índios, assassino, desalmado, monstro. E berrava: Queime isso, esse Pedro Amaro é um demônio.
Despachou a moça, que apanhou o livro e o levou para os fundos do quintal. Chamou-a de ladra e imediatamente telefonou para a polícia: “Roubou um livro meu, peça rara, documento histórico adquirido por uma fortuna.”
“Ao chegarem os policiais, há muito se havia arrependido da acusação. Lia para a empregada o livro. E recebeu as visitas com extrema inquietação. – Escutem só esta maluquice.”
Figura curiosa a daquele velho português. Verdadeiramente um bicho, mas todo bicho é curioso ao homem. Para que ter medo da realidade? Ali estava um estranho personagem. Necessário reler aquelas confissões. Teria sido um louco? Vissem: “Perguntado se era lembrado dizer alguma hora que seu preço era mais alto do que o de el-rei, disse que si, porque nunca tivera receança, posto não dormisse, nem sofresse, nem falasse, mas que antes não era de capitania, era só e elle”.
Relia o livro tintim por tintim, devagar, olhos grudados nas letrinhas miúdas, esquecido de cheques e notas fiscais, fumando feito uma caipora, consultando dicionários e enciclopédias, detendo-se nesta e naquela palavra, neste e naquele parágrafo, coçando o queixo, pensando, sonhando. Intrigava-o a insolência do colonizador: “Perguntado se dizia ele que se siso fosse bom era era regedor de poder, capitão de regimento, disse que si, e que sua sanha era só de esfolar, porque nunca teve coita, durão e brabo de peito e coração.”
Entendia já termo por termo e sentia-se convencido da existência real de Pedro Amaro. – Passou à história, embora em rodapé, como o típico colonizador. Porém alguma coisa ainda escapava ao seu entendimento, inclusive certos vocábulos em desuso e que nem os dicionários mais completos mencionavam. Mister então ler, reler, tresler o texto, como o joalheiro que olha, reolha, tresolha a pedraria que engasta na joia.
Não perdia ocasião de abrir o livro, sempre à mão, como antes conduzia a pasta repleta de documentos mercantis. Ao acordar, em vez de ler os jornais, lia o interrogatório.
Certa feita pôs-se a ler para um amigo, em plena rua, trechos do livro, assim de repente, como se o outro soubesse do seu interesse: “Perguntado si disse alguma hora que não havia de nunca vestir costume de rei, disse que si e disse mais que andar carecia de sujidade e feitio de onça, para assustar os medrosos, e que seu aspeito era esse de bicho do mato, sem respeito à vida”. O amigo ouvia calado, mas, como se aborrecesse com o prolongado da leitura, riu e o interrompeu para saber o que significava aquilo. Pedro mostrou-se surpreso: – Então o amigo não conhecia o interrogatório de Pedro Amaro? À negativa, expôs sua opinião a respeito do colonizador, no que foi contestado pelo outro: – Pelo que acabei de ouvir, trata-se de um criminoso dos mais bárbaros. Pedro irritou-se, defendeu com unhas e dentes seu homônimo, concluindo ter sido apenas um homem forte no meio de um magote de selvagens, e que seus atos, chamados de crimes, podiam ser muito bem explicados, embora tivessem sido praticados com alguma crueldade. – Vamos levar em conta o meio em que os praticou.
De sua mesa de trabalho ordenou que a moça retirasse os papelórios e as pastas. Não queria desviar os olhos do livro. Necessitava de ler mais o texto antigo. Também não o interrompesse à toa.
Há tempos andava daquele jeito. Se a empregada vinha dar recados, irritava-se. Não lhe tomasse o tempo com recadinhos idiotas. Se lhe vinha pedir ordens, só faltava espaldeirar a coitada. Resolvesse tudo sozinha, não torrasse sua paciência.
Deixava cheques por assinar, documentos bancários esquecidos, relatórios por ler e abraçava o livro com sofreguidão de colegial aplicado. Balançava a cabeça como que aprovando as respostas do interrogado: “Perguntado si era lembrado dizer alguma hora que lugar de argel era debaixo dos sete palmos do chão, fosse galalau ou tamborete-de-forró, que o bicho era ele, disse que si e que isso devia merecer aplausos até dos bugiadões.”
A cada dia mais se tornava irresponsável com os próprios negócios. Em vez de discutir preços com os fregueses, discutia a personalidade do outro Pedro Amaro, sempre a defendê-lo. Súbito encheu-se de fúria, pegou o revólver e disparou seis vezes contra a moça.
E voltou ao livro.
Fonte:
Nilto Maciel. Babel (contos).
Brasília/DF: Editora Códice, 1997.
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