segunda-feira, 14 de maio de 2018

Aparecido Raimundo de Souza (Havia Uma Ponte Lá Na Fronteira)

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Aparecido escreveu a Mini Série em 12 capítulos 
exibida na Rede Globo, "Ligações Perigosas"
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De calças curtas e pezinhos no chão, o nariz escorrendo um catarro amarelo e intermitente, o menino tentava voos ambiciosos com seu pequeno aviãozinho de matéria plástica. E conseguia. Em meio a um enorme jardim, se erguia imponente, um típico casarão provincial de paredes largas, com cerâmicas dispostas em simetria irrepreensível. Várias janelas e portas se destacavam pintadas de um amarelo muito vivo. Circundando a enorme construção, um muro alto feito de lajotas sem reboco, parecia absorver o tom mormacento da primavera.

Nesse paraíso, o garoto corria incessantemente de um extremo ao outro, puxando, quase aos trambolhões, o brinquedo preso ao barbante sujo e malcheiroso, desenhando, no ar, proezas cadenciadas como se participasse de uma dança repleta de ritmos alucinantes. Acima dele persistia um abafadiço queimoso e radiante, espalhando e derramando, sobre a cabecinha loira, um brilho majestosamente invulgar, cujo encantamento somente era percebido pela solidão mansa dos olhos sequiosos de Deus.

A alguns metros da porta da cozinha, uma puxada coberta por telhas coloniais acolhia os tanques de roupas, e a garagem, onde os empregados guardavam os carros, os caminhões e os tratores que vieram modernizar o cotidiano da fazenda. Um diminuto córrego ordenadamente cimentado empurrava, para adiante, as lavaduras do almoço, fazendo toda a água utilizada escorrer para um regueiro maior. Frontispício à entrada principal, um abacateiro enorme não ascendia a ímpetos genealógicos, embora suas galheiras, cobertas por pálida claridade, carregassem memórias centenárias de um pedaço de chão incrustado por uma cadeia de montanhas verdes salpicadas por espessas nuvens brancas. O grupo mais barulhento no comportamento do lugar vinha enfileirado por quatro cachorros que dominavam todos os arredores com seus aspectos espavoridos. Os vira-latas, na verdade, pareciam estranhas figuras se debatendo e se consumindo em coceiras, saltitando de um lado para outro, como almas penadas esmagando as folhas secas espalhadas por todo o terreiro. O silêncio também se quebrava em seu enfeitiçamento, quando as locomotivas, resfolegando furiosamente, sobressaiam cruzando, indo ou vindo, da capital, puxando uns cem fins de vagões carregados de minério de ferro.

No mais, predominava a natureza em seu melhor toque de realeza, resvalada por contornos harmoniosos e sutis. A se perder no horizonte, fora dos muros que protegiam o casarão, o cafezal em flor se misturava, num amplexo, às folhas verdes dos canaviais. Em grau paralelo, aformoseando a quinta, laranjais em flor concebiam um quadro à parte, incrivelmente belo e majestoso. 

E o guri, impertinente e fogoso, continuava rodopiando e saltando sem parar. De vez em quando passava o dedo pelo nariz melecado e cheio de sujeira e terra. Parecia não conhecer o cansaço. Em suas mãozinhas frágeis, a miniatura de um BOEING 737 se arrebentava feio em pancadas insistentes aqui e acolá. O barbante que o detinha, incrivelmente não enroscava nos ramos da vegetação espontânea. Parecia protegido por uma fada madrinha e sua varinha de condão encantada. O tempo, em paralelo, prosseguia numa lentidão estonteante. As horas, morosas e melancólicas, arrastavam os ponteiros, obstruindo a chegada da tarde. De repente, vindo lá de dentro, surgia em cena um ancião. Vértice superior e base de tudo, o senhorzinho pintava no umbral da varanda tateando as paredes com pronunciada lentidão. Nessa pachorra, assomava, quase sem fôlego, o alpendre. Dali espichava os olhos compridos e atentos para o noviço.

Esse homem possuía, no físico, a rudeza dos valentes, a força de mil leões e a coragem de um exército. No entanto, agora, só uma casquinha leve mesclava a aparência de superioridade bailando no rosto carcomido. Andar cansado, os cabelos brancos e os ombros curvados, essa criatura se tornou inconfundível e única pela raridade dos predicados que acumulou durante toda a existência. Contudo, hoje, não passava de um ser desprotegido e débil, pego pela insensatez dos anos vividos. João Tomé, proprietário de tudo, gritava o neto. Sempre que chegava naquela parte da varanda, gritava o neto. Seu grito, porém, saia débil e fraco, quase inaudível. Parecia, entretanto, acontecer um milagre. O pequeno captava a voz arrastada do avô. Ao fazê-lo, estancava atônito. A aeronave abortava a rota e aterrissava, de barriga. As asas soltavam turbinas e flapes, enquanto outras partes minúsculas da fuselagem desmantelavam assentos e janelas. Bonecos imitando passageiros e tripulação, a um só tempo, viravam uma confusão única, perdidos entre bananeiras e jaqueiras.

Derramando em choro convulso, o infante corria ligeiro, as mãos estendidas, para o aconchego dos braços que se punham em sua direção. Acariciando o moleque, com movimentos vagarosos, o velhinho sussurrava palavras carinhosas em seu ouvido. Prometia solenemente “amanhã bem cedinho” logo ao acordar, consertar o aviãozinho e “arranjar” um jeito de colar as asas e as rodinhas que afrouxaram. 

Nessa hora, o astro rei, mais baixo, começava a se recolher para um descanso merecido. Com a ponta dos dedos, seu João sinalizava à Maria Preta que aprontasse a bacia de água quente e as roupas de dormir. E o mais importante: que servisse o jantar. Enquanto esperava, conduzia o neto até outro extremo da sacada, onde duas redes armadas convidavam a um repouso merecido.

— Hoje uma surpresa lhe espera.

— Qual, vovô?

— Não posso dizer.

A criança colocava o polegar na boca e assumia uma expressão travessa na carinha redonda:

— Eu sei vovô, eu sei. Papai vai chegar de carrão com a mamãe lá daquela cidade bem longe que o senhor me falou...

— Você passou longe.

— Me dá uma chance!

— Não teria graça se abrisse o bico.

O coração do sapeca exultava de contentamento.

— O Senhor vai me levar pra ver o “trem bonito?”.

                                     ***
Quando o piá se referia ao “trem bonito” aludia ao noturno de luxo que conduzia passageiros para o interior de São Paulo. Esse comboio geralmente cruzava muito tarde, normalmente quando todos dormiam a sono solto. Entretanto, uns pares de vezes, seu João Tomé aguentava o rojão pacientemente lutando contra o relógio e o esgotamento da lavoura a enfrentar dia seguinte. Ao ouvir o apito, ainda distante, acorria com o neto para a beira da via. O mocinho adorava essas aventuras. Explodia a alma em emoções descomedidas, vendo a luz forte surgindo longínqua, se aproximando velozmente e clareando os trilhos compridos sobre os dormentes justapostos em fileira constante. À noite como que se rasgava em quase dia por mágicos minutos. A composição passava ruidosa e veloz, com a maior parte das janelas acesas, até que perdia o brilho da pompa numa curva que desfigurava completamente a visão. Todo o desvario da emoção murchava, dava um retrocesso infeliz. Sem saída, o menino sufocava os soluços pungentes na garganta, para que o pranto não rolasse e aparecesse a tristeza indiscreta lhe deformando a forma primitiva da sensação de regozijo. Um tédio estático caia pesadamente sobre o lugar e distendia uma solidão enfadonha que vagava quilômetros.
                                           ***

Algum tempo depois, de banho tomado e encadernado no pijama novo, Maria Preta servia o jantar. Lá fora, a escuridão insistia. Esparramava sua presença pesada, fria, densa e pegajosa. No infinito, estrelas sacudidas do manto do Criador brilhavam e resplandeciam como um bando de vaga-lumes irrequietos. Em volta da sede, os cachorros faziam a roda e se acomodavam enleados. De vez em quando ladravam com estridência colossal. Sapos coaxavam num brejo próximo ao paiol de milho. Morcegos voavam. O tempo, inexorável, se deixava ser consumido e, com eles, as horas construindo um abismo gigantesco em torno do nada.

De barriguinha cheia, o pequerrucho acomodava a estafa do dia no colo do avô.

Maria Preta, sentada na cadeira de balanço diante da televisão, roncava atrapalhando o sossego. De boca aberta, babava sonhos irrealizáveis. Os braços caídos, pendidos para o vácuo, pareciam sem vida, à mercê de um vazio de proporções entediosas.

— Então se não é o trem bonito, qual a surpresa?

— Se você ficar quietinho...

—... Meus olhinhos estão cansados! — murmurava a uma vozinha fraca — Conta uma historinha?

— Qual você quer? — dizia o avô, acorrendo com a sua solicitude.

— Aquela do menino que ia atravessar uma... Uma... Uma ponte... E...

— Era uma vez...!!!

Fonte:
SOUZA, Aparecido Raimundo de. Havia uma ponte lá na fronteira. 
São Paulo: Ed. Sucesso, 2012.

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