quinta-feira, 10 de maio de 2018

Malba Tahan (A Noiva do Xeique)

No dia em que meu pai deliberou casar-me com o xeique Ornar Bahil, assaltou-me um desespero sem limites. Triste destino o de tornar-me esposa do homem mais odiento da cidade!

A velha Zenuja, vendedora de perfumes, tintas e colares, que vinha diariamente ao nosso harém (1), vendo-me aflita e chorosa, perguntou-me, penalizada, qual a causa daquela angústia que pesava sobre mim.

Ao saber da triste verdade exclamou, exaltada:

— Não é possível, Jamile querida! Por Maomé! Não poderás te casar com esse velho Bahil, feio e perverso! Seria um crime!

— Nada poderás fazer em meu favor, Zenuja! — respondi, desolada. — Meu pai é teimoso e, além do mais, conta desde já com o valioso dote que o cheique prometeu.

Zenuja, depois de meditar um momento, perguntou-me muito séria:

— Dize-me uma coisa, ó Jamile. O xeique já viu alguma vez o teu rosto mimoso?

— Nunca, ó Zenuja! Nunca! Meu pai foi o único homem que até hoje me viu de rosto descoberto.

A velha fitando-me severa insistiu:

— Só teu pai, menina? Só teu pai?

Afligindo-me o remorso e o receio de ocultar a verdade balbuciei envergonhada:

— Meu pai e... aquele jovem mercador que viste há três dias acenar para mim à entrada do cemitério!

— Está bem Jamile! Pelas barbas do Profeta! Se assim é poderei salvar-te do xeique. Exijo apenas uma condição: Ficarei encarregada de preparar-te para a noite de teu casamento. Tranquiliza o teu namorado para que ele não faça alguma loucura e deixa o resto por minha conta. — E, sorrindo, cheia de orgulho, acrescentou:

— Estou certa de que o xeique irá desfazer o compromisso de casamento!

Confiei cegamente na velha amiga e a ela entreguei a minha sorte. Preocupava-me, entretanto, de modo impressionante, o meu próximo casamento. Que artifício iria empregar a astuciosa Zenuja para afugentar de mim o noivo detestável?

Informei, nessa mesma tarde, o meu namorado de tudo que se passava no harém e aguardei serenamente o dia indesejável de minhas núpcias.

Nesse dia a nossa casa encheu-se de parentes e convidados. Do meu quarto ouvi as risadas dos amigos de meu pai que comentavam futilidades e relembravam as pequeninas intrigas da cidade.

Dezenas de amigas vieram admirar as peças mais ricas de meu enxoval, as rendas, as toalhas e os véus. As vizinhas, sempre indiscretas, bisbilhotavam tudo.

A velha Zenuja, duas horas antes da cerimônia, apareceu no seu papel de “encarregada da noiva”. Vestiu-me uma camisa branca com pequeninas flores bordadas e uma graciosa melahfa (2) de cor clara, que se prendia aos ombros por fitinhas cor-de-rosa. Zenuja teve, ainda, ao pentear-me, cuidados especiais, e em meus cabelos que, na véspera, tingira de castanho-escuro, colocou uma meherma (3) de seda vermelha com barras brancas. O meu vestido azul-claro, com fios de ouro nas mangas e nas pontas da cambusa (4) era, na verdade, encantador.

A habilidosa Zenuja modificou, com uma tinta muito forte, a cor das minhas sobrancelhas; transformou os meus lábios em dois rubis únicos e tentadores; e, com um creme muito fino e perfumado, chegou a fazer-me morena como Fátima e muito mais belo do que eu era realmente.

Ao ver-me, tão formosa, ao espelho, exclamei:

— Pela glória do Profeta, ó Zenuja! Este alindamento que a tua arte incomparável me empresta ao rosto vai ser a causa de minha desgraça! O cheique ao ver-me assim ficará apaixonado e jamais quererá deixar-me!

— Cala-te, menina! O teu nome é Jamile e “Jamile” significa beleza! Tens que parecer bela ao teu esposo, pois só assim poderás ficar livre dele.

Essa velha está louca, pensei, horrorizada. Julga afugentar um noivo enchendo de encantos a noiva desejada. Pobre de mim! Para que fui eu confiar nessa criatura sem senso nem critério?

A minha escrava predileta cantava, numa cadência triste:

— Allah é grande! A menina vai casar...

O henné (5) é raro na casa da noiva...

A mãe saudosa deixa-se estar no tamená.

E reza ao Profeta...

— Para com essa cantoria! — gritou Zenuja, irritada.

 E com a ponta escura de um pequenino bastão fez um sinal negro bem no meio de minha face direita. Era o último retoque à maquilagem.

Com o rosto coberto por um espesso véu fui levada à presença do cádi (6) e das testemunhas.

Realizado o casamento e proferidas as preces do ritual, o meu noivo conduziu-me aos aposentos que já estavam reservados.

Notei que o cheique parecia dominado por uma ansiedade infinita, incalculável. E era natural. Qual é o marido que não deseja ver o rosto encantador daquela que vai ser sua esposa?

Ao erguer o véu o cheique ficou trêmulo, tomado de indizível espanto. O meu semblante, que a velha Zenuja tanto aformoseara, parecia causar-lhe uma impressão terrível e dolorosa.

— Por Allah! — vociferou cheio de incontida cólera. — Teu pai garantiu-me que não eras trigueira e que os teus cabelos eram castanhos-claros! É horrível! Vejo que és muito diferente daquela que eu imaginava!

E, arrebatado por um rancor inexplicável, exclamou como louco:

— Oh! Jamile! Nosso casamento é impossível! Eu te repudio três vezes! (7)

Com essa terrível declaração o meu tresloucado marido desfazia, para sempre, o nosso casamento e tornava-me livre, não podendo mais exigir a restituição do dote que já havia pago a meu pai.

A velha Zenuja não pôde receber de mim os agradecimentos do que se fizera merecedora, pois, apareceu morta, no dia seguinte, sob as tamareiras do oásis de Asbor.

Três meses depois, passada a impressão causada pelo escândalo do meu divórcio, casei-me com o jovem mercador que o meu coração elegera para meu esposo.

Um dia meu pai perguntou-me:

— Que ideia foi aquela, minha filha, de fazeres-te, na noite de teu casamento, parecida com Zobeida, a primeira esposa do cheique? Não sabias, então, que ele, preso por um juramento, estava impedido de casar-se com mulher que se parecesse com Zobeida?

Essa pergunta veio esclarecer, para mim, o misterioso episódio do meu divórcio. A velha Zenuja conhecia o segredo do cheique e valeu-se disso para salvar-me.

E ainda hoje, nas preces que faço, rogo ao Altíssimo que tenha em sua eterna paz a bondosa e fiel Zenuja, minha amiga e salvadora.

Uassalã!
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Notas:
1 Harém — Parte da habitação destinada exclusivamente às mulheres.

2 Melahfa, peça do vestuário feminino de uso corrente em Marrocos. É uma espécie de corpinho. 

3 Meherma, véu muito fino que as Jovens adotam para prender o cabelo. 

4 Cambusa, espécie de saiote que fica sob o vestido com a barra aparecendo.

5 Henné — substancia empregada para pintar as pálpebras e as sobrancelhas; tamená, varanda da casa.

6 Cádi — Juiz entre os muçulmanos. Julga, em geral, todas as causas de direito civil, criminal e religioso.

7 Repudiar 3 Vezes – Segundo as instituições muçulmanas, quando um marido repudia a esposa uma ou duas vezes, pode recuperá-la, sem mais formalidades, ao fim de três meses e dez dias; quando, porém, o repúdio é feito pela terceira vez, ou mediante a fórmula: — “Eu te repudio três vezes” — o casamento está definitivamente rompido e o ex-marido não pode contrair novo casamento com a mesma mulher, senão depois de se ter ela casado com outro homem e pelo novo marido ter sido, igualmente, repudiada.

Fonte:
Malba Tahan. Minha Vida Querida.

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