Na célebre e turbulenta cidade de Bagdá — a dileta dos califas — Vivia outrora um negociante que se chamava Chebac, homem dotado de bom-senso e cuja vida era equilibrada e conduzida ao ritmo suave da honestidade tranquila.
Esse bom mercador era viúvo e tinha cinco graciosas filhas cujos nomes (se Allah quiser!) serão indicados no decorrer desta singular narrativa.
O extraordinário cuidado que Chebac dispensava à educação de suas filhas poderia merecer o excepcional qualificativo de al-monetib — vocábulo que os filósofos não sabem (é pena!) traduzir com verdadeira fidelidade. A sua ambição máxima, na vida, era vê-las casadas, e vivendo em perfeita harmonia com os seus esposos. Que sonho mais radiante poderia iluminar a imaginação de um pai?
Casar bem cinco filhas! Eis o grande e terrível problema que o diligente mercador cumpria resolver, dentro de um prazo relativamente curto.
Obter para uma filha um noivo desejável e rico já é tarefa bastante delicada e difícil. Mas casar bem cinco filhas... Só mesmo com o auxilio de Allah, o Altíssimo, o Único, o Onipotente!
— Allahur Akbar! — exclamam os verdadeiros crentes. — Allahur Akbar quer dizer: Deus é grande! Não deve haver na vida lugar para desânimo e fraquezas! O fraco é como o camelo atacado de congestões.
Continuemos, porém, a história.
Quis a vontade do Onipotente que o mercador Chebac se sentisse obrigado, pelos seus deveres religiosos, a fazer uma peregrinação a Meca, a Cidade-Santa.
Como partir para uma jornada tão longa, durante a qual a fadiga, sendo imensa, ainda é menor do que o perigo, deixando as suas queridas filhas ao desamparo num centro populoso como a tumultuosa Bagdá?
Levá-las? Eis uma solução que qualquer pasteleiro da aldeia repeliria sem hesitar um segundo.
O deserto, como todos sabem, é infestado por beduínos ferozes que sonham com viagens impossíveis.
Sentindo-se embaraçado, em dúvida, sobre a melhor resolução a tomar, o mercador achou que seria de bom-aviso ouvir a opinião de seu judicioso amigo Al-Tarik, que exercera o cargo de Primeiro-Conselheiro na Corte do saudoso califa Al-Mamum. Al-Tarik era um ulemá, isto é, um xeique dotado de notável saber. (Allah, porém, é mais sábio).
— O teu caso é muito sério, meu caro Chebac — respondeu o ulemá. — Não posso aconselhar que leve as tuas cinco filhas no meio da caravana; seria sacrificá-las no deserto, fazendo-as, talvez, cair nas mãos dos audaciosos beduínos traficantes de escravos, homens que são mais perigosos que o simum. Deixá-las, porém, sozinhas em Bagdá, não é medida que um árabe prudente e sensato possa aprovar. As seduções da cidade, e a perniciosa companhia dos maus, arrastam as jovens para o fundo dos abismos e dos erros mais degradantes.
Ao chegar a casa reuniu as meninas e repetiu, com paternal carinho, para que elas ouvissem, a fantasiosa história das cinco pérolas, salientando o grave embaraço em que se achava.
E, depois de meditar algum tempo, disse o sábio Al-Tarik:
— Só vejo, no momento, uma solução, para o caso que se me afigura complicado. Quando chegares, hoje, a tua casa, dirás às tuas filhas o seguinte: — “Minhas queridas meninas! O dever sagrado de crente obriga-me a fazer uma peregrinação à Meca, a cidade de Deus, o Santuário da Fé. Tenho, entretanto, cinco pérolas que são para mim de inestimável valor. Não posso levar comigo esse tesouro, pois a jornada que vou empreender é longa e não isenta de graves riscos. Parece-me que não seria prudente deixar as preciosas pérolas e partir; durante a minha ausência, quem poderá livrá-las, como sempre tenho feito, da cobiça insaciável dos aventureiros, rapinantes e ladrões? Que devo, pois, fazer, nessa emergência, minhas filhas?” Ouvirás com a maior atenção todas as respostas das jovens. Interessa-me conhecer a opinião de cada uma delas. Só então poderei dar um conselho acertado e seguro sobre a melhor forma de resolver a dificuldade. Combinado? Uassalã!
O negociante fez precisamente como lhe havia aconselhado o discreto ulemá.
Ao chegar a casa reuniu as meninas e repetiu com paternal carinho, para que elas ouvissem a fantasiosa história das cinco pérolas, salientando o grave embaraço em que se achava. E interpelou-as afinal:
— “Que devo, pois, fazer, minhas filhas?”
A mais velha, que se chamava Quetir (Quetir dos Olhos Verdes), assim falou:
— Acho, meu pai, que deveis vender as cinco pérolas por bom preço e comprar um terreno em boas condições. O negócio será altamente vantajoso e seguro. Durante a vossa ausência o terreno ficará valorizado e poderá ser vendido, mais tarde, com um bom lucro. O dinheiro ganho nessa transação será, para o futuro, um descanso tranquilo para a vossa velhice, justa recompensa às vossas fadigas e trabalhos.
Respondeu a segunda, a deliciosa e meiga Ahizil:
— Penso, meu pai, que seria mais prudente deixar as vossas pérolas nas mãos de um homem sério, honrado, que fosse de absoluta confiança. Não possuis, meu pai, um amigo digno da vossa confiança? A boa amizade, para os ricos, serve de glória; para os pobres, de renda; para os desterrados, de pátria; para os fracos, de esforço; para os enfermos, de medicina; e até para os mortos, de vida! Confiai o vosso tesouro aos cuidados de vosso maior amigo!
Amine, a terceira, convidada a falar, não hesitou. Em Amine, o principal traço de formosura era o sorriso de bondade e candura que bailava em seus lábios. Disse Amine:
— Se o dever religioso vos obriga, meu pai, a uma jornada, por que vos preocupais tanto com os bens materiais que nada valem? Confiai em Deus, meu pai! Allah pode ouvir as queixas surdas de nosso coração e ler os nossos desejos na cor invisível de nossos pensamentos. Allah é poderoso, é justo, e sabe premiar, com infinita bondade, os crentes dedicados e sinceros! Esquecei as cinco pérolas que não passam de um mísero tesouro da terra, para pensar apenas nas cinco preces diárias que são os grandes tesouros do Céu. A oração, meu pai, é uma das expressões mais íntimas e delicadas da vida piedosa. Allahur Akbar! Deus é grande! Se colocardes Deus em tudo o que fizerdes encontrá-lo-eis em tudo o que vos suceder.
A formosa Astir, que admirava os poetas e sonhava com as coisas mais românticas da vida, não soube conter os arroubos e fantasias de sua imaginação exaltada. Eis como Astir resolveria o caso:
— Tenho uma ideia, meu pai, que parece genial. Com as cinco pérolas fareis um lindo adereço, que será, por vossas mãos, entregue ao califa, nosso amo e senhor. O monarca surpreendido exclamará: “Que belo diadema!” E perguntará a razão de ser daquele rico presente. Direis então: — “Ó rei poderoso, sombra de Allah na terra! Essas cinco pérolas colhidas nos mares da Arábia, não passam de humilde homenagem de um pobre e esforçado peregrino viúvo, pai de cinco filhas solteiras. Esquecer o desvalor deste insignificante presente é a maior caridade que podeis fazer ao ofertante!” Encantado com essa delicada resposta, tão cheia de modéstia, o califa, que é generoso e bom, dirá, com toda certeza: — “Se vais fazer uma peregrinação, ó muçulmano!, precisas, imediatamente, de um bom auxílio.” E determinará que sejam postos à vossa disposição cinco mil dinares de ouro; uma caravana; dez cameleiros e cinco guardas bem armados. E o glorioso califa (que Allah o conserve!) acrescentará afinal: — “Com os valiosos recursos que ponho agora à tua disposição, ó peregrino, poderás ir à Cidade Santa, levando, em tua companhia, as tuas cinco filhas, que devem ser lindas como a lua de Ramadã(1). Essa viagem, cheia de episódios, será utilíssima para elas!” E assim, meu pai, iríamos todos conhecer o Santuário Da Fé, a milagrosa Caaba, no coração do Islã (2).
A mais moça de todas, a encantadora Leilá, compreendendo que chegara, enfim, a sua vez de falar, disse:
— Essa original história, meu pai, das cinco pérolas, que acabais de nos contar, não passa, a meu ver, de um símbolo muito bem-imaginado. Às cinco pérolas que afirmais possuir, somos nós, com certeza, as vossas filhas. Aconselha a prudência que um pai não leve suas filhas moças a jornadear pelos caminhos inseguros dos desertos, infestados de chacais e aventureiros da pior espécie. Ao vosso coração, entretanto, não agrada deixar-nos sozinhos no burburinho desta Bagdá. Se o problema é assim tão grave, deveis, a meu ver, consultar os vossos amigos mais sérios e judiciosos, antes de tomardes qualquer resolução. Atentai, meu pai, nas palavras do filósofo: “A perfeição moral consiste em fazermos por inspiração do amor o que faríamos por exigência do dever”.
O mercador foi ter novamente com o prudente Al-Tarik e repetiu-lhe fielmente as diversas respostas formuladas por suas filhas.
Disse o judicioso e nobre ulemá:
— Esse caso tornou-se interessantíssimo e merece ser analisado com a maior atenção. Logo mais, depois da última prece, devo fazer, a pedido do califa, uma conferência na mesquita. Nessa conferência, que é destinada aos nobres e xeiques, vou tomar por tema os diversos aspectos sob os quais se apresentam as respostas de tuas filhas. Quero conhecer sobre o caso, a opinião dos homens mais cultos da cidade.
A conferência feita pelo ilustre Al-Tarik causou profunda impressão ao seu numeroso auditório. No dia seguinte, na alta sociedade de Bagdá, não se comentava outra coisa senão a situação complicada do mercador e a diversidade das originais sugestões formuladas pelas cinco jovens.
E a palestra do sábio polemista teve, ainda, outras consequências mais interessantes que passaremos a relatar.
Ao cair da tarde achava-se o bom Chebac trabalhando em sua loja, quando foi procurado por cinco rapazes, pertencentes às famílias mais ricas e prestigiosas da cidade.
Intrigado com a inesperada visita dos nobres, o mercador perguntou-lhes o que desejavam.
Ao ser interpelado, disse o primeiro cheique:
— Alimentei sempre a esperança de casar com uma jovem boa, sensata, e que tivesse uma compreensão clara, perfeita e prática da vida. A vossa filha Quebir revelou, a meu ver, qualidades excepcionais. Aquela lembrança de vender as pérolas e comprar um terreno é maravilhosa! Venho, portanto, pedi-la em casamento, pois é com uma mulher ajuizada e perita em transações, que eu desejo vivamente casar.
O segundo visitante, que era um dos rapazes mais brilhantes de Bagdá, assim falou:
— Fui informado hoje da admirável resposta proferida pela vossa filha Ahizil no caso das Cinco Pérolas. Demonstrou ser uma jovem sensata e prudente. Sabe confiar naqueles que são dignos e repelir os perversos. Fez da verdadeira amizade o maior elogio que já ouvi. Essa jovem demonstrou possuir uma alma boa, límpida, livre do peso das desconfianças torturantes que nublam os afetos e perturbam a vida. Venho, pois, pedir em casamento a vossa filha Ahizil.
Aproximou-se o terceiro visitante e dirigindo-se ao mercador declarou o seguinte:
— O meu sonho dourado, senhor Chebac, era escolher, sem possibilidade de erro, uma esposa dotada de elevados sentimentos religiosos. Sou adepto da moral religiosa; a moral sem Deus é falsa e ridícula. A esposa religiosa é, a meu ver, a esposa ideal. Virgem, esposa, mãe ou filha, a mulher religiosa é sempre um agente de Deus nas obras de Seu amor. Deus fê-la bálsamo de todas as dores, alívio de todas as tristezas, amparo de todas as desventuras, e não há uma só miséria na vida de que Deus não tenha feito da mulher o anjo libertador. A vossa filha Amine, pela resposta que proferiu, demonstrou possuir um nobre coração e ser uma crente sincera. É, pois, Amine que eu venho pedir em casamento. Queira Allah que ela possa ter por mim o mesmo e infinito amor que eu sinto, desde já, por ela.
Antes que o bom Chebac pudesse despertar do assombro em que se achava, o quarto cheique, que era prosador e poeta, tomou da palavra e confessou sem mais preâmbulos:
— A vossa filha Astir, ó mercador!, é um sonho de poeta que os gênios bondosos fizeram viver neste mundo. A sua imaginação prodigiosa deslumbrou-me; o seu talento incomparável arrebatou o meu coração. Os atos do coração parecem ridículos quando é o espírito que os julga. Estou loucamente apaixonado por Astir e considerar-me-ia o mais feliz dos mortais se ela se dignasse aceitar-me por esposo!
O quinto cheique aproximou-se do velho Chebac, fez um respeitoso salã (3) e declarou, com voz firme e pausada:
— Todas as vossas filhas, ó mercador!, revelaram possuir predicados excepcionais. As respostas que elas formularam, no caso das Cinco Pérolas, dariam assunto para dez lindos poemas em prosa e verso. Leilá, a mais moça, demonstrou, porém, ser a mais inteligente de todas, pois foi a única que compreendeu o simbolismo do caso. A mulher inteligente, cordada e obediente (dizem os maiores filósofos) é a companheira ideal, é a esposa invejável. A mulher perfeita, segundo ensina o Alcorão, deve possuir três predicados, cinco virtudes e sete atributos. Os três predicados são: bondade, inteligência e beleza. Venho, pois, pedir em casamento a mão de vossa filha Leilá, a criatura mais fina e mais espirituosa do mundo! Exaltado seja Allah, que criou a Mulher, a Beleza e o Amor!
Allahur Akbar! Foi assim que Chebac, o mercador, resolveu o complicadíssimo problema das “Cinco Pérolas”.
Casou muito bem as suas filhas e partiu tranquilo, em meio de uma grande caravana de peregrinos, para ir beijar, como bom devoto, a pedra negra da Caaba, na Cidade Santa de Meca.
E, dois anos depois, quando regressou a Bagdá, veio encontrar as suas filhas diletas, vivendo felizes e radiantes com seus dedicados esposos: foi recebido, também, por cinco lindos netinhos que já exclamavam em árabe (parece incrível!) estendendo, risonhos, os braços morenos:
— Jedê! Jedê! (Vovô! Vovô!).
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Nota:
1- Ramadã — período do ano muçulmano (28 dias) durante o qual o jejum é obrigatório aos crentes do Islã. Esse jejum só deve durar entre o nascer e o por do Sol. Quando a Lua aparece no céu (lua-cheia) começam logo as festas e banquetes. A lua de Ramadã é, por esse motivo, apontada como a “lua” mais linda do céu.
2– Islã — significa “resignação”. Conjunto de países cujos povos adotaram a religião de Mafoma. Caaba é um templo, de forma cúbica, que é venerado em Meca.
3- Salã quer dizer paz. É a expressão de que se servem os árabes em suas saudações.
Fonte:
Malba Tahan. Minha Vida Querida.
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