sábado, 19 de maio de 2018

Nilto Maciel (Calvário)

Faca no cós, blusa aberta, calça arregaçada, João chegou à estrada, olhou para cima e para baixo e tomou o rumo da direita. Muito adiante, antigamente, havia uma cruz fincada no chão, junto à cerca, a indicar o lugar onde seu pai sofreu morte sangrenta. Não sabia quem, mas um espírito de porco, um cabra sem-vergonha, um filho de uma égua teve a petulância de arrancá-la e quebrá-la em dez pedaços.

Coitado do velho Luiz, não sossegava nem depois de morto. Primeiro mataram seu irmão José, de emboscada. Vingou-se, matando um dos criminosos. Nem bem se satisfez, o povo do morto o matou.

– Sina mais desgraçada!

João olhava para os destroços da cruz de seu pai. Pedaço aqui, pedaço ali. Então para que morrer, ser enterrado e ter uma cruz? Para quê?

O sol do meio-dia crestava o mundo, a cabeça de João, e seus olhos ardiam e se empapavam de água salgada, suor. Correu, correu, correu. Outra cruz remexia-se à sua frente. Deu-lhe um chute, quebrou-a. Abaixou-se para arrancá-la de vez. E lançou os pedaços no meio da estrada. Ferido nas mãos, seguiu a gritar blasfêmias e porcarias. Um caminhão cobriu tudo de poeira e buzinadas. Tropicou na segunda cruz. Arrancou-a, quebrou-a.

E durou léguas sua insânia.

À entrada da cidade, quando se voltava contra mais um entrançado de varas, o jipe dos soldados o cercou. E o agarraram, aos socos e pontapés.

Amarrado ao carro, o cortejo seguia. Nenhuma cruz carregava João, escoltado pelos inimigos, que o açoitavam e riam.

Tanto tempo durou o trajeto que ainda no meio do caminho se acercaram do jipe a molecada e o povo de João. Sua mãe gritava, chorava, agarrava-se a ele, mordia os soldados, e caía, desgrenhava-se, feria-se. Seus irmãos lutavam para livrá-lo das cordas e nunca João devia chegar à delegacia.

Despertada pelo fuzuê, aos poucos toda a cidade se juntou para ver de perto a perversidade dos soldados. Os tantos olhos fitos naquele horror buscaram então as pedras da rua e os galhos das árvores. E se deram pedradas e pauladas a torto e a direito. Os mais zangados buscaram foices e facões, espingardas e bacamartes. Golpes mais fundos e tiros mais doidos se cruzaram no meio da rua.

Na confusão, ninguém sabia contra quem brigava, a quem feria, matava, porque já os soldados haviam tombado, João e seus parentes não viviam. E uns corriam, gritavam, outros gemiam moribundos, pisoteados, a arrastarem-se inutilmente pelo chão coberto de trapos e sangue.

Fonte:
Nilto Maciel. Babel (contos). 
Brasília/DF: Editora Códice, 1997.

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