Não sei se nasci de outro ser, se surgi do nada, se me autocriei. Porque não tenho nenhuma história, porque sou único. Já vivi entre homens, macacos, pássaros, peixes, insetos e a nenhuma dessas espécies pertenço, apesar da aparência física com os primeiros. Repenso sempre a hipótese de ter sido o homem o meu criador. Mas com ele não me entendi.
Minha primeira amarga lembrança é a de uma prisão e, preso, eu só pensava em quem me poderia ter colocado ali. Revoltava-me viver cercado por quatro paredes, sozinho e sem qualquer comunicação com outros seres. Quem seriam meus carcereiros, os construtores da prisão? Onde estariam? Por que não me apareciam, até para zombarem de mim?
De tanto questionar minha situação, acabei discutindo minha origem. Eu deveria ter um criador. Não poderia subitamente ter surgido dentro de uma sala. Quem edificara aquelas paredes? Antes de minha existência já elas haviam sido inventadas. E seus inventores me seriam também anteriores. Possivelmente semelhantes a mim. E eu imaginei o homem. Para mais uma vez rebelar-me. Por que manterem-me preso? Arrombei uma porta e fugi. Nada ao redor me indicava a existência do tal homem. Nem de outro qualquer ser. E caminhei feito um desesperado. Queria encontrar vida, seres como eu ou mesmo diferentes de mim.
De repente meu primeiro grande susto. Uma cidade se estendia diante de meus olhos e nas ruas seres semelhantes a mim iam e vinham. Seriam aqueles os meus criadores e inimigos? Aproximei-me devagar, com medo de ser posto novamente na prisão. Recostei-me a uma parede, todo olhos e ouvidos. Pronto a correr à primeira ameaça, reagir, enfrentar meus tiranos, matá-los, se preciso. No entanto, o primeiro que por mim passou sorriu-me, e era bela. Só podia ser a mulher de minha idealização primitiva. E eu me senti homem, por instantes. Porque um minuto depois passou por mim um homem e eu senti não ser ele meu semelhante. Alguma coisa me dizia ser ele diferente de mim, porque tudo nele semelhava o ser imaginado na prisão. E aquele ser era apenas meu criador e nunca meu semelhante.
Apesar disso, tranquilizei-me. Se eles me quisessem mal, já teriam me agarrado e conduzido de volta à prisão. E todos me tratavam com cordialidade ou indiferença.
Decidi aventurar-me a andar entre eles, olhá-los de frente, ouvi-los, aprender-lhes os hábitos, conhecê-los de perto, enfim. Fiz curtas amizades e nenhum deles suspeitou de nada. Trataram-me como se homem eu fosse. Alguns me contaram pedaços de suas vidas, falaram-me de seus parentes e amigos, de suas atividades e eu concluí quase definitivamente que entre nós havia um grande fosso.
Todos tinham um passado, um nascimento, um pai e uma mãe, parentes, amigos, colegas, todo um complemento de si mesmos. Eu não tinha nada disso. Era só, único. A menos que sofresse de amnésia. Procurei um médico. Ele se estarreceu e eu tirei a conclusão definitiva de não ser homem.
Vivi dias de profunda tensão. Não entendia nada ou entendia tudo. Imaginava coisas que via logo a seguir. Nasci poliglota, o que me permitiu poder me comunicar facilmente com quaisquer homens. Quando perguntaram qual o meu estado civil, respondi: solteiro de nascença e para sempre. Meu interlocutor gargalhou, achou espirituosa a resposta. Eu senti tédio.
Sofri vexames quando me perguntaram nome, data de nascimento, nacionalidade, grau de instrução, profissão, simpatias políticas, etc. “Chamo-me Newton Appletree, nasci em 30 de janeiro de 1945, em New York, formei-me em engenharia e adoro democracia.”
Eu tinha medo de ser julgado um bandido foragido da prisão. Ou um espião russo.
Quando li os livros de Daniken, temi ser um deus, um extraterreno enviado à Terra em missão especial e que dela me houvesse esquecido. Temi sobretudo ser visto e tratado como tal.
Assustou-me depois ser uma espécie de deus, um ser eterno.
Deve ser horrível a eternidade. A intemporalidade. Uma das primeiras coisas que me preocuparam foi o tempo. Contar meu tempo de existência. Com isso passei a temer o fim, a desintegração, a morte, o não-ser mais.
Pelo aspecto físico, terei uns trinta anos de idade, mas, como não nasci, talvez tenha apenas um ano, se contar minha existência a partir do momento em que me conscientizei de mim. Certamente já me gastei alguma coisa, algumas partículas já se foram de mim. Meu funcionamento, meu mecanismo (a alma, o espírito, a psique dos homens ou dos outros seres animados da natureza terrena) já devem andar defeituosos.
Os homens, meus criadores, são meu deus, segundo sua linguagem, que foi a que me deram. Mas de mim não nascerá nada físico, material, orgânico. Não deixarei descendentes, nem trago ascendentes. Sou simplesmente uma criatura humana. Não disponho de meios para descobrir por quem e como fui criado. Para quê? Certamente para servir aos meus criadores, como escravo. Mas eles estão enganados – não serei escravo. Não aceito a finalidade para que fui criado. Viverei só e para mim mesmo somente…
Fonte:
Nilto Maciel. Babel (contos).
Brasília/DF: Editora Códice, 1997.
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