sexta-feira, 23 de abril de 2021

Silmar Böhrer (Croniquinha) 22

Se me fosse dado comparar e descrever musicalmente este dia, eu começaria dizendo que pela manhã - cedo - a orquestra tomava o seu lugar no palco do espaço para a grande apresentação de hoje (ouvia-se o barulho de instrumentos, viam-se luzes que se cruzavam, sentia-se que algo de muito importante seria apresentado).

Como intróito os músicos encenaram uma melodia de ritmo bastante rápido - uma sinfonia de Beethoven, talvez - e então passaram para um huapango mexicano, no melhor estilo do Caribe. Como o ritmo foi se tornando mais suave, executaram um sublime bolero, daqueles que fazem lembrar as casas noturnas de Acapulco.

Após a apresentação destas melodias, por volta da onze horas, os grandes músicos instalados no proscênio do espaço iniciaram uma valsa vienense, no mais puro sabor europeu, e alcançaram a tarde neste ritmo entre dócil e sonífero que, penso, embalará meus sentimentos ao longo das horas.

Quase desnecessário dizer-se que a sinfônica é composta por elementos respeitáveis - as nuvens, os ares, a gravidade - e os instrumentos têm acústica e sonoridade formidáveis, todos com um desempenho perfeito dentro do conjunto do tempo - parte integrante da orquestra da natureza.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Voltaire (Sonho de Platão)

Platão sonhava muito, e não menos se tem sonhado até agora. Imaginava ele que o ser humano era outrora duplo e que, como castigo de suas faltas, foi dividido em macho e fêmea.

Demonstrara que não pode haver senão cinco mundos perfeitos, porque, na matemática, só há cinco corpos regulares. A sua República foi um de seus grandes sonhos. Sonhara ainda que o dormir nasce da vigília e a vigília do dormir, e que se perde infalivelmente a vista contemplando um eclipse, a não ser numa bacia d’água.

Eis aqui um de seus sonhos, que não é dos menos interessantes. Fantasiou que o grande Demiurgo, o eterno Geômetra, depois de povoar o infinito de globos inumeráveis, quis experimentar a ciência dos gênios que haviam testemunhado o seu trabalho. Deu a cada um deles uma pequena porção de matéria para que a afeiçoasse a seu modo, da mesma forma que Fídias e Zeuxis distribuiriam a seus discípulos o material para fazerem estátuas e quadros, se é permitido comparar as pequenas coisas às grandes.

Demogórgon recebeu, como partilha a porção de lama que se chama a terra; e, tendo-a arranjado tal como hoje a vemos, julgava ter feito uma obra-prima. Pensava haver subjugado a inveja e esperava elogios, até mesmo de seus confrades; muito surpreso ficou de ser recebido com forte vaia.

Um deles, que não poupava gracejos, disse-lhe: — Na verdade, fizeste um excelente trabalho: dividiste o teu mundo em dois e puseste um grande espaço d’água entre os dois hemisférios, a fim de que não houvesse comunicação entre ambos. Os humanos vão enregelar-se nos teus dois polos e morrer de calor na tua linha equatorial. Distribuíste prudentemente, pelas terras, grandes desertos de areia, para que os viajantes morressem de fome e de sede. Estou muito satisfeito com os teus carneiros, as tuas vacas e as tuas galinhas; mas, francamente, não vou muito com as tuas cobras nem com as tuas aranhas. As tuas cebolas e alcachofras são excelentes; mas não concebo qual foi a tua intenção ao cobrir a terra de tantas plantas venenosas, a menos que tivesses o desejo de envenenar seus habitantes.

Parece-me, por outro lado, que formaste umas trinta espécies de macacos, muito mais espécies de cães e apenas quatro ou cinco espécies de homens; é verdade que deste a este último animal aquilo a que chamas razão; mas, para te falar com toda a sinceridade, essa tal razão é demasiado ridícula e muito se aproxima da loucura.

Parece-me aliás que não fazes grande caso desse animal de dois pés, visto lhe haveres dado tantos inimigos e tão pouca defesa, tantas doenças e tão poucos remédios, tantas paixões e tão pouca sabedoria. Pelo que se vê, não queres que fiquem muitos desses animais sobre a face da terra: pois, sem contar os perigos a que os expões, arranjaste de tal modo as coisas que um dia a varíola arrebatará regularmente todos os anos a décima parte dessa espécie e a irmã dessa varíola envenenará a fonte da vida nos nove décimos restantes; e, como se ainda não bastasse, fizeste de modo que metade dos sobreviventes se ocupará em demandas e a outra metade em matar-se. Eles, sem dúvida, muito te ficarão devendo, e fizeste na verdade uma bela obra.

Demogórgon enrubesceu: bem sentia que na sua obra havia mal moral e mal físico; mas sustentava que havia mais bem que mal.

— É fácil criticar – disse ele, – mas achas tão fácil fazer um animal que seja sempre razoável, que seja livre, e que jamais abuse da sua liberdade. Pensas que, quando se tem de nove a dez mil plantas para fazer proliferar, seja tão fácil impedir que algumas dessas plantas tenham qualidades nocivas? Imaginas que, com certa quantidade de água, de areia, de lama e de fogo, não se possa ter nem mar nem deserto? Acabas, senhor trocista, de arranjar o planeta Marte; veremos como te houveste com os teus costados e que belo efeito não hão de fazer as tuas noites sem lua; veremos se entre a tua gente não há nem loucura nem doença.

Com efeito, os gênios examinaram Marte e caíram de rijo sobre o galhofeiro. Nem o grave gênio que modelara Saturno foi poupado; seus confrades, os fabricadores de Júpiter, de Mercúrio, de Vênus, tiveram cada um de suportar censuras.

Escreveram grossos volumes e brochuras; disseram frases de espírito; fizeram canções, ridicularizaram-se uns aos outros; as facções se desmandaram na linguagem; até que o eterno Demiurgo impôs silêncio a todos:

— Fizestes (lhes disse ele) coisas boas e coisas más, porque tendes muita inteligência e sois imperfeitos; as vossas obras durarão somente algumas centenas de milhões de anos; após o que, já possuindo mais experiência, haveis de fazer coisa melhor: só a mim é dado fazer coisas perfeitas e imortais.

Eis o que Platão ensinava aos discípulos. Quando parou de falar, um deles disse-lhe:

– E aí então vós acordastes.
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Conto escrito na segunda metade do século XVIII.

José Lucas de Barros (Caderno Poético) VI, pantuns


AMOR INFINITO


Trova-tema:

Tudo é tão encantador,
Nosso amor é tão bonito,
"que em cada noite de amor
Ultrapassa o infinito."
(Gislaine Canales - RS +)


Nosso amor é tão bonito!
Até nos leva a cantar...
Ultrapassa o infinito
nossa vontade de amar.

Até nos leva a cantar
baladas e cavatinas...
Nossa alegria de amar
vem das paragens divinas.

Baladas e cavatinas,
canto para ti, querida;
Vêm das paragens divinas,
nos ternos sonhos da vida.

Canto para ti, querida,
meus versos de trovador...
Nos ternos sonhos da vida,
tudo é tão encantador!

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MAU CAÇADOR

Trova-tema:

-Caçador, foste pra o mato,
mataste mil passarinhos,
e eu te pergunto, insensato:
Quem leva comida aos ninhos?
(José Amaral - Natal/RN)

Mataste mil passarinhos
sem a menor piedade.
Quem leva comida aos ninhos,
onde impuseste a orfandade?

Sem a menor piedade,
foste aos sítios inocentes,
onde impuseste a orfandade
e a fome, que tu não sentes.

Foste aos sítios inocentes
com a morte, de surpresa,
e a fome que, que tu não sentes,
para espalhar a tristeza!

Com a morte, de surpresa,
ficou provado em teu ato:
Para espalhar a tristeza,
caçador, foste pra o mato!

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SOM DA VIOLA

Trova-tema:

Na execução de meus dedos,
toco na viola bela;
Ela guarda meus segredos
e eu guardo os segredos dela.
(Chico Mota)


Toco na viola bela,
buscando as rimas do além,
e eu guardo os segredos dela
sem revelar a ninguém.

Buscando as rimas do além,
tanjo a viola querida;
Sem revelar a ninguém,
ela embala minha vida.

Tanjo a viola querida,
ao som que há muito me encanta;
Ela embala minha vida,
faz milagre sem ser santa.

Ao som que há muito me encanta,
ela relembra segredos;
Faz milagre sem ser santa,
na execução de meus dedos.
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SONHO TRISTE

Trova-tema:

– Disfarço meu sonho triste
Nas cordas do bandolim,
porém o chorinho insiste,
sem querer, fala por mim.
(Selma Patti Spinelli – São Paulo/SP)


Nas cordas do bandolim,
eu busco a tranquilidade.
Sem querer, fala por mim
um som de antiga saudade.

Eu busco a tranquilidade
de um coração de criança;
Um som de antiga saudade
me traz querida lembrança.

De um coração de criança,
a flor do sonho mais lindo
me traz querida lembrança,
na aurora que vem sorrindo.

A flor do sonho mais lindo
em minha alma ainda existe...
Na aurora que vem sorrindo,
disfarço meu sonho triste.

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SONHOS DE CRIANÇA

Trova-tema:

– Em meus sonhos de criança,
desejei pescar a lua,
e pus anzóis de esperança
nas poças d'água da rua.
(Delcy Canalles – Porto Alegre/RS)

Desejei pescar a lua
pela imagem refletida
nas poças d'água da rua
que, para mim, tinha vida.

Pela imagem refletida,
embalei doce quimera,
que, para mim, tinha vida
como a flor na primavera.

Embalei doce quimera
buscando o que sempre quis,
como a flor na primavera,
e fui, de fato, feliz.

Buscando o que sempre quis,
fiz com Deus uma aliança,
e fui, de fato, feliz
em meus sonhos de criança.

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TEMPOS DE CRIANÇA

Trova-tema:

– Nos meus tempos de criança,
sem-dores nem pesadelos,
tinha a brisa da esperança
pra brincar nos meus cabelos.
(Antônio Roberto - Campos/RJ)


Sem dores nem pesadelos
no meu coração liberto,
pra brincar nos meus cabelos
minha mãe ficava perto.

No meu coração liberto,
na ternura de meu ninho,
minha mãe ficava perto
pra me apontar o caminho.

Na ternura de meu ninho,
havia um anjo do bem
pra me apontar o caminho...
Fui feliz como ninguém.

Havia um anjo do bem,
a vida era linda e mansa...
Fui feliz como ninguém
nos meus tempos de criança.


Fonte:
José Lucas de Barros. Pelas trilhas do meu chão. 
Natal/RN: CJA Ed., 2014

Luís Fernando Veríssimo (Sissica)

Não sei se fecha com a estatística geral, mas, naquela sala de espera do aeroporto, entre trinta pessoas, uma tinha telefone celular. E ele tocou.

— Alô? Eu. Oi, querida.

As outras vinte e nove pessoas continuaram fazendo o que se faz numa sala de espera de aeroporto quando o avião atrasa. Lendo, tentando dormir, olhando fixo para nada. E fingindo que não ouviam a conversa.

— Não, ainda estou no aeroporto. O avião atrasou. Sei lá. Devo chegar pela meia-noite.

Um homem mais velho sacudiu a cabeça com leve irritação. Saco, ser obrigado a ouvir a conversa dos outros daquele jeito. E não poder ouvir o que estavam dizendo do outro lado.

— Você vai me esperar acordada? Ah, é? Quero só ver. Qual, aquele curtinho? Ai meu Deus. Já estou vendo. E o que é que você vai me dar? Hein?

Houve uma certa inquietação em torno do homem que falava. Um certo mexe-mexe nas cadeiras e arrastar de pés. Um casal que já conversara muito e ficara em silêncio retomou a conversa, animadamente, agora falando mais alto. Alguns olharam para as duas freiras que, a poucos metros do homem do celular, mantinham os olhos baixos e não se mexiam.

— O quê? Estou levando, sim. Está aqui na maleta. E com pilha nova. É. Te prepara, Sissica.

Ao som de “Sissica” o homem mais velho empinou a cabeça num espasmo involuntário e duas outras pessoas levantaram-se rapidamente e dirigiam-se para o bar, para a livraria, para qualquer ponto longe daquele celular e do seu dono. As freiras continuavam de olhos postos no chão.

— Cê vai fazer o quê? Ah, é? Tá bom. Só acho que hoje eu não vou poder, não. Tou com um furúnculo.

Uma mulher soltou uma espécie de grito e depois tentou disfarçar com tosse. O homem mais velho também se levantou, olhou para o relógio, exclamou “Não é possível” e foi procurar alguém da companhia para reclamar do atraso. Afastou-se quase correndo.

— Sei lá. Apareceu hoje. E acho que está supurando. Ta um roxo meio esverdeado.

Mais pessoas saíram de perto, procurando o que fazer. O casal aumentou o volume da sua conversa, tentando falar mais alto do que o homem. Outros também começaram a falar. Pessoas que nunca tinham se visto antes agora puxavam conversa uma com a outra e todas falavam ao mesmo tempo. Mas o homem do celular falava mais alto.

— Onde? É, lá mesmo. Bem na dobra.

Uma das freiras olhou para o alto com um sorriso triste enquanto a outra se encurvou para olhar o chão mais de perto. Um homem, fora de si, veio perguntar se as duas não gostariam de ir ao banheiro. Ele as acompanharia. As duas sacudiram a cabeça. Ficariam firmes, o Senhor lhes daria força.

— Como é que eu sei que ta roxo? Eu olhei, né Sissica. Com um espelho. Rá, cê pensou o quê?

Várias pessoas estavam agora de pé, tomadas de uma súbita revolta com aquela demora no embarque. Caminhavam de um lado para o outro. Por que o avião não saía?

— Cê pensa que eu pedi pra camareira olhar, é? Dá uma olhadinha aqui no meu furúnculo, minha filha, pra ver que cor é. É só levantar o...

Houve uma debandada. Algumas pessoas se precipitaram para o balcão de informações e começaram a bater com os punhos no balcão, exigindo embarque imediato ou explicações. Outras se dispersaram pelo aeroporto, em pânico. Só as duas freiras continuaram sentadas, com os olhos fechados e uma expressão de martírio, entre doce e dolorida, no rosto. Finalmente o homem despediu-se da Sissica, guardou o celular no bolso e disse para as freiras:

— Minha filhinha. Estou levando um joguinho eletrônico para ela e...

Então o homem se deu conta de que a sala de espera estava vazia e perguntou:

— Ué, já chamaram?

Fonte:
VERÍSSIMO, Luís Fernando. Novas comédias da vida privada. 
Porto Alegre: L&PM, 1996.

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Adega de Versos 15: Daniel Maurício

 


Milton S. Souza (Corações floridos)

A Primavera começou, para nós, no dia 23 de setembro. Antes disso, porém, ela já nos manda mensagens coloridas e perfumadas através das flores que nascem exatamente para anunciar que está chegando a mais bonita estação do ano. Flores que mais parecem obras de arte, com suas pétalas macias, seus perfumes inigualáveis e suas cores inimitáveis. Flores que nascem cultivadas, nos jardins, canteiros ou vasos, ou que simplesmente aparecem do nada, no meio da campina ou nos mais improváveis lugares. Flores que invadem todos os nossos sentidos, deixando nos corações e nas almas aquelas mágicas sementes de ternura e de sensibilidade.

Muita gente não se dá conta do quanto as flores falam. Elas conseguem falar coisas que nós, mesmo exercitando ao máximo a faculdade da oratória, não conseguimos exprimir. As flores falam de amor de um jeito que nem o mais apaixonado dos amantes consegue imitar. As flores falam de amizade, daquele jeito simples que só os verdadeiros amigos entendem. As flores falam de saudade, conseguindo dizer, em algumas horas duras, aquelas palavras que ficam presas na nossa garganta sem coragem para sair. As flores passam mensagens de felicidade, carinho e muita alegria. As flores falam a linguagem da ternura, que é entendida imediatamente por todos os corações.

As flores conseguem falar tudo isso. Mas, infelizmente, ainda não nos acostumamos a brindar com flores mais seguidamente aquelas pessoas que nós amamos ou que nos enfeitam com as suas amizades. Quando morre alguém, imediatamente nos lembramos de enviar flores para marcar presença. E muitas vezes não nos damos conta que aquela pessoa falecida conviveu conosco por tanto tempo e, enquanto era viva, jamais recebeu uma simples rosa de presente. E agora, depois que partiu para a eternidade, que já não pode sentir o perfume das flores, que já não pode tocar com os seus dedos a maciez das pétalas, enviamos para a sua última morada as flores mais lindas...

A poetisa Gabriela Mistral é autora de um pequeno poema que diz mais ou menos assim: “Me dê uma flor em vida, uma flor bem colorida para aliviar meus ais. Depois que eu virar saudade, eu não quero mais vaidade: quero prece, e nada mais”. E Gabriela tem toda a razão: por melhor que seja a nossa intenção, quem já partiu não precisa mais de flores. Porém estas pessoas que estão vivas, ao nosso lado, nos brindando com o seu amor ou com a sua amizade, nos fazendo favores e nos ajudando a viver com mais alegria, estas pessoas, sim, merecem receber flores. E poucas vezes nos damos conta disso...

Quem sabe agora nós aproveitamos a Primavera que está iniciando para brindar as pessoas que nos são caras com muitas flores. Um botão de rosa, um ramalhete de amor-perfeito ou um buquê de qualquer flor sempre faz acender um sorriso de gratidão na alma de quem recebe. E nem é preciso esperar a chegada de alguma data especial: uma flor é presente certo em qualquer ocasião, qualquer dia e qualquer hora. Quem dá flores de presente, sem notar, está conseguindo plantar um jardim dentro do seu próprio coração. E nada melhor do que um coração florido para nos transformar em pessoas melhores, mais doces e mais sensíveis. Pessoas que até conseguem entender a magia das flores e da Primavera...

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada de Poemas) – 1

SALSA-ARDENTE*

"Oh! esta é a voz do meu amado!"
(Ct. 2.6)


O amor que vibra em meu peito
Já não tem mais dimensão!
Tomou conta do meu ser,
No meu ser há explosão.

É núcleo de sol em chama,
Doce delícia sem dor;
Vulcão ativo de estrela
- É assim que sinto o amor.

É o fogo da salsa-ardente,
Que arde em brasa incolor;
Vulcão que abrasa e não queima
– Oh, que delícia é o amor!

As vezes, me faz chorar
E de saudade morrer;
Mas, quanta felicidade
Traz o amor em meu ser!

Ele é presente em você,
Foi ele o manjar de Zeus*;
E todo aquele que ama
Tem um pouquinho de Deus.

Com ele, o nada é tudo,
Sem ele, o tudo é nada;
Quem ama só quer amor
E, além do amor, mais nada.
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* Salsa-ardente: Vulcão.
* Zeus: Principal deus da mitologia grega.

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TEUS OLHOS
"Os teus olhos são como
os das pombas."(Ct.1.15)


Que doce expressão!
Olhar sem malícia,
Colírio dos olhos,
Amor e carícia.

Teus olhos são lindos,
Têm puro fulgor,
São cheios de vida,
Traduzem amor.

O amor dos teus olhos,
Tão meigo e tão puro,
É o sonho dos sonhos,
Meu porto seguro.

Se rola uma lágrima,
Eu sinto tua dor;
Recolho-a na alma
Por causa do amor.

Se tenho eu angústia,
Se sofro de tédio,
Procuro teus olhos,
Pra ter meu remédio.

Que doce expressão!
Olhar sem malícia,
Colírio dos olhos,
Amor e carícia.

Mas quanto sofreram
Teus olhos, querida,
E quantas injúrias
Já viram na vida.

Já foram bem tristes.
Sem vida e calor;
Agora estão vivos
– Milagre do amor.

Que cor têm teus olhos?
São claros, escuros?
– A cor é segredo,
Segredo, eu te juro!

Embora distante,
Em meio ao pavor,
Eu penso em teus olhos
E vivo de amor.

Que doce expressão!
Olhar sem malícia!
Colírio dos olhos,
Amor e carícia.
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O TELEFONE
"Vou levantar-me e percorrer
a cidade "(Ct. 3.2)


Naquela noite estava angustiado,
Queria ouvi-la no telefone;
Meu coração, tão inconformado,
Olhava atento o calado fone.

"Corre, ponteiro! Silêncio, passa!"
Silêncio aquele me perturbava;
Eu pressentia perder a graça,
Ao ver minh'alma que soluçava.

Era soluço com dor silente,
Queria tanto meu bem distante;
Aquela dor torturava a mente,
Enlouquecendo-me num só instante.

Estava assim a entregar-me à dor,
Pra mim dizia: "Que infeliz eu sou!
Está bem longe o meu doce amor!"
Foi quando, enfim, o fone tocou...

- "Alô, amor! Meu amor, sou eu!"
Minh'alma foi delirar em riso;
Com a esperança que se acendeu,
Você tornou-se meu paraíso.

Falou-me tanto - doce paixão!
Que foi difícil dizer o adeus:
- "Tchau, meu amor", foi dizendo, então,
"Um beijo, um beijo!.. Fique com Deus!"

Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. 
Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.
Livro enviado pelo autor.

Marcelo Spalding (Dicas de Escrita) Criação de Personagens

Uma história sempre surge de uma ideia. Mas de onde vêm as boas ideias? Muitas vezes, a primeira ideia que temos é da personagem que queremos criar. Não é por acaso, nesse sentido, que tantos livros e filmes têm no título o nome do protagonista.

Quanto à composição, a personagem deve dar a impressão de que vive, de que é como um ser vivo. Choramos a morte de uma personagem na ficção e muitas vezes somos indiferentes a tragédias informadas no noticiário. Vejamos, então, uma técnica de composição baseada na mescla de reprodução de pessoas reais e invenção do autor.

"Não se preocupe com a trama, mas com as personagens”
Anne Lamott


PERSONAGENS PLANOS X ESFÉRICOS

Personagens Planos

Personagens planas são aquelas que não mudam com as circunstâncias, são facilmente identificadas na narrativa.

Em geral, são coadjuvantes, mas há muitos protagonistas que se comportam de forma plana: super-heróis, vilões, princesas, bruxas.

A personagem plana é aquela que é sempre boa, é sempre má, é sempre apaixonada, é sempre sacana. Não há variação de caráter, ele não hesita.

Nos casos mais radicais, essas personagens são meros estereótipos que funcionam na narrativa como parte do cenário (o mordomo, o ladrão, a vizinha gostosa). No humor e nas histórias infantis esse tipo de personagem costuma fazer muito sucesso.

Personagens Esféricos

São as personagens modernas, capazes de surpreender de maneira convincente. É o herói que tem medo, raiva, rancor, é o vilão que mostra sua face humana, é a esposa romântica e apaixonada que olha para o vizinho ao lado.

Segundo Cândido, a marcha do romance moderno foi no rumo de uma complicação crescente da psicologia da personagem; deste ponto de vista, poderíamos dizer que a revolução sofrida pelo romance no século XVIII consistiu numa passagem do enredo complicado com personagem simples para o enredo simples (coerente, uno) com personagem complicada.

Questionário para criação de Personagens

Essa é uma sugestão de questionário para ajudá-lo na composição dos personagens.

Claro que você não precisa responder a todas as perguntas e nem mesmo fazer uma reflexão tão profunda de todos os seus personagens.

Muitos escritores de conto fazem essa composição apenas mentalmente, não passando suas ideias para o papel. Mas acredite, planejar com cuidado seu texto e fazer esse tipo de exercício irá ajudá-lo muito, especialmente para quem está iniciando na criação literária.

Nome Completo
Cidade em que nasceu e onde mora atualmente
Data de Nascimento / signo
Estado civil / orientação sexual / com ou sem filhos
Profissão / formação / Nível social
Hobbies
Maior sonho / Maior frustração / Maior medo
Pessoas com quem mais se relaciona
5 coisas que jamais faria / 5 coisas que ainda vai fazer
Papel que terá no conto
Conflito dele no conto (se terá algum)
Outras informações que você considera relevante

O NOME DOS PERSONAGENS

Batize o seu personagem

Eu já batizei personagens e filhos e posso dizer: batizar uma personagem é bem mais difícil. Ocorre que a personagem você batiza depois que ela existe como forma de representar suas características ou pelo menos ajudar nessa composição. Já um filho você batiza sem saber sua cor, sua personalidade, seus sonhos.

Na ficção, não veremos o nome de Clara numa personagem de pele escura, a não ser que esse seja o conflito ou parte do conflito da trama. Não teremos um Pedro dócil, já virou até clichê o nome de Pedro para personagens durões como uma pedra. Não veremos um apelido diminutivo para um bandido ou um personagem grande, a não ser com objetivo cômico. E não teremos um sobrenome de origem alemã numa personagem ou trama que não tenha nenhuma relação com a colonização alemã.

Dar nome aos personagens, portanto, requer cuidado e planejamento. Você deve considerar, em ordem:

1. A personalidade da personagem;

2. A sonoridade do nome;

3. Se o nome não é semelhante a outros nomes da trama;

4. A possibilidade que o nome dá de apelidos ou contrações, a fim de evitar sua repetição excessiva.

PERSONAGENS SEM NOME

É muito comum, principalmente em contos, o autor não dar nome a seus personagens. A vantagem é que esse personagem pode ser qualquer um, aumentando a chance de nos identificarmos com ele. Só que a grande desvantagem é o texto ficar confuso, em especial se há mais de um personagem. Aí seremos obrigados a usar muitos "ele / ela" e isso dificultará nosso texto mais do que ajudará.

O MAIOR ERRO NA CRIAÇÃO DE PERSONAGENS

Maniqueísmo

Há um termo muito utilizado em resenhas literárias e, portanto, em oficinas literárias: o maniqueísmo. Originalmente, o termo remonta a uma filosofia religiosa sincrética e dualística que divide o mundo entre Bem, ou Deus, e Mal, ou o Diabo (Santo Agostinho, por exemplo, a princípio fora influenciado pelas ideias maniqueístas, mas terminará por combatê-las).

Em suma, hoje dizemos que uma obra maniqueísta é aquela que divide as personagens em bons e maus, sendo os bons sempre muito bonzinhos e os maus, sempre muito maus. As personagens, assim, são sempre planas, nunca complexas.

Os exemplos mais tradicionais encontramos nos blockbusters hollywoodianos e nas novelas da Globo, que chegam a ter o núcleo dos bons e o dos maus.

A não verossimilhança do maniqueísmo em textos


Ocorre que, sem entrar em discussões sociológicas ou psicológicas, na vida real nós não somos apenas bons ou apenas maus, até porque sendo assim não sobreviveríamos nesse mundo por muito tempo. Em geral, as pessoas têm medos, receios, preconceitos, ansiedades, e transmitem isso em pequenos detalhes, lutando para fazer o bem, mas naturalmente comportando-se de forma duvidosa vez que outra. Não estou falando que as pessoas seriam capazes de matar, mas tampouco seriam humilhadas e maltratadas sem sequer levantar a voz ou transformar o choro em raiva, como acontece em tantas cenas de novela.

Dessa forma, um texto feito de forma maniqueísta não é verossímil, pelo menos desde meados do século XVIII.

- Cândido
"A marcha do romance moderno foi no rumo de uma complicação crescente da psicologia da personagem; deste ponto de vista, poderíamos dizer que a revolução sofrida pelo romance no século XVIII consistiu numa passagem do enredo complicado com personagem simples para o enredo simples (coerente, uno) com personagem complicada".


O QUE EVITAR

Sendo assim, a não ser que de forma planejada e proposital, evite enredos maniqueístas e protagonistas planos.

As exceções clássicas são a comédia e as obras para o público infantil, mas vale refletir sobre por que as crianças hoje se identificam tanto com o Shrek e tão pouco com o príncipe, os jovens apreciam tanto com o sombrio Batman e tão pouco o belo Super Homem.
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Quer saber mais?
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http://www.oficinaliterariaonline.com.br/


Fonte:
Marcelo Spalding. Criação de Personagens. 
E-book disponível em Escrita Criativa

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Varal de Trovas 494

 

Júlia Lopes de Almeida (O Dr. Bermudes)

A Raimundo Corrêa


Hão de crer? Encontrei esta manhã o Dr. Bermudes, aquele velho boêmio incorrigível, com o seu legendário casacão ruço, as botas cambadas, o colarinho sujo, e o seu ar de fome, olhando pasmado para uma vitrine de bonecos!

Quem não sabe da crônica do Dr. Bermudes? Conhece-a o Rio de Janeiro em peso, desde os lentes da academia, de quem ele fora condiscípulo, até aos caixeiros dos botequins que o levam para o relento das calçadas, a horas mortas da noite, quando as estrelas brilham no céu sobre os telhados mudos da casaria adormecida.

O Bermudes está velho, tem perto de cinquenta anos, e a ventania da desgraça pôs-lhe na pele tons de cobre sujo, e manchas de neve naquelas barbas, que mais parecem ervas hirsutas de uma brenha. Credo!

Quem dirá que aquilo já foi moço, galante, garboso, rico, correndo às aventuras arriscadas, sempre bem vestido e bem falante, enamorando as mulheres com a doçura dos seus olhos, e o espírito dos homens com a faísca das suas palavras ardentes e bombásticas?

A sua passagem deixou rastro na academia; citam-se ainda frases suas e feitos de arreganho em que entrou sempre uma alevantada ideia de justiça. Trazia capa e espada na alma, já que os tempos burgueses não lhas permitiam no corpo. O Bermudes era um D. Quixote, mas novo, bonito, com uma voz que arrastava a gente e cada gesto, cada ideia, de quem tudo domina e nada teme.

Eu conheci-o ainda nos bons tempos da D. Jacinta, a tia velha, que lhe dava dinheiro e o mantinha naquelas doidices da mocidade, com o brilho que a sua imaginação requeria.

E ele aproveitava. Só fumava do bom, comia como um príncipe, e das suas mãos finas as esmolas caíam, como chuvas de verão, no regaço dos pobres. Sujeita, como tudo, às leis da natureza, a D. Jacinta foi muito quietinha para o cemitério, numa formosa tarde de inverno, dessas de nuvens de ouro e de roseiras em flor.

Pela escadaria de pedra do jardim, quantas abas negras de sobrecasacas flutuaram, a caminho das reverências ao Dr. Bermudes, o belo Bermudes, único herdeiro daquela velha milionária? E ele lá estava, na capela ardente, pálido, com a face compungida e as lágrimas luzindo-lhe nas pupilas. Era só então: “Sr. Dr. Bermudes!” – “Sr. Dr. Bermudes!”

Muito respeito, muita piedade e grandes condolências... Lá de um cantinho, o tabelião Taveira, com a papada de porco untando de suor o colarinho e o peitilho da camisa, sorria por dentro, no mistério do seu ofício, daqueles dizeres de tantíssimas bocas. Ele lera ao Bermudes, horas antes, o testamento da tia. A idiota não deixara nem um vintém ao sobrinho; ia toda a fortuna para a sua irmandade de S. Francisco. E o Bermudes nem estremecera. Era como se fosse tudo muito natural. Acabada a leitura, ele ergueu-se e dirigiu-se para o catafalco. O tabelião e as testemunhas pularam, julgando que no rostinho mirrado do cadáver caísse vingativa e irrespeitosamente a mão do Bermudes. Não; ele fora sacudir as moscas, que faziam por entrar na boca de onde só orações tinham saído havia longos anos.

E ninguém mais falou em tal. A velha, que o acostumara aos regalos de uma vida de luxo e dissipação, deixou-o sozinho na miséria. E só o seu confessor sabia as razões disso...

Bermudes ficou sem ter onde dormir, nem onde comer, girando por essas ruas, alegre com uns, condoído de outros, sem rancores, aceitando o jantar do um amigo, o leito de outro, coisas de empréstimo, que foram rareando pouco a pouco, até que se acabaram de todo...

Ele deixou assim de ser o homem de sala para ser o tipo da rua. Afez-se às más companhias e ao mau vinho. E quando bebia sonhava que a tia Jacinta voltara da viagem e que tinha outra vez o seu grande leito de dossel com sanefas* de púrpura, e o seu chocolate quente com pão de ló, trazido pelo criado, o mulato Candinho, antes do banho, nas suas manhãs preguiçosas. Quando o Bermudes acordava da bebedeira, via que o colchão não era o seu antigo, de paina de seda, desfiada pelas crioulas da casa, mas sim o lajedo da rua imunda. A decepção abria-lhe vontade de beber outra vez, e ele bebia para sonhar com os regalos fornecidos pela defunta velhota.

Ainda há senhoras por aí que bem se lembram de ter valsado com ele, o que era um prazer delicado. De uma sei eu que, quando o vê, volta o rosto e sente estragado todo o prazer do seu passeio. Embora a filha lhe pergunte: – Mamãe, por que ficou triste? – Ela não lhe responde e vai andando... Vai andando com a ideia presa à lembrança de outros tempos, quando o Bermudes, moço, rico, estimado, ia vê-la todas as tardes, chamando-a – minha noiva, mesmo nas bochechas do papai e da mamãe... E daquela voz do Bermudes nunca ela se esquecera, nem depois, quando outro homem lhe deu o mesmo título, na mesma casa, ao lado das mesmas pessoas! Ela também já tem os cabelos brancos, mas, porque é rica, como cheiram bem os seus vestidos de seda e os seus manteletes à moda! O marido nunca lhe soube dizer que a amava, como o Bermudes, que lhe plantara na alma um canteirinho de flores odorantes; mas que luxo lhe dava, santo Deus!

O Bermudes é que a não conhece; esqueceu-a, perdoando-lhe assim generosamente... e por aí anda com o seu casacão roto, e os seus passos trôpegos, em que entra já o tremor do alcoolismo...

Um dos seus divertimentos, ora vejam! é ir postar-se em frente às vitrines de bonecos, com uma atenção que nada abala. Sorri para as pastorinhas de avental e chapéu de palha, para os clowns (palhaços), para os velhos do Natal, para os bebês das caixas armadas a rendas e cetins, para os velhos sapateiros batedores de sola e para as carrocinhas tiradas por um burrinho gordo.

A gente da loja já o quis enxotar, dizendo que ele afugentava a freguesia. Entretanto, Bermudes sorri com as crianças que passam, porque, como as crianças, ele sempre amou a ficção. E há de amá-la, até que um dia... Vão ver que a tarde em que o levarem para a sua última cama não há de ser tão bonita como aquela em que levaram a velha tia Jacinta!
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* Sanefas =Tira de tecido que se coloca na parte superior da cortina ou reposteiro, nas vergas das janelas etc.

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Carolina Ramos (Poemas Escolhidos) 11

TANTOS ANOS DEPOIS...

Vinte e cinco anos de feliz união...

Naquele dia em que nos conhecemos,
teria sido bom... tão bom seria!,
se os ternos corações, que nós dois temos,
passassem a pulsar em sintonia!

Quantas dores de amor nós dois sofremos!
Quanta angústia nossa alma evitaria
se as mãos unidas, como agora temos,
ontem se unissem pela poesia.

Mas ninguém foge à sua própria sina!
O tempo que nos sobra, hoje, é só nosso...
e os segundos que voam, quem domina?!

Busquemos, juntos, a felicidade!
Se podes ser feliz e eu também posso,
que o amor nos una pela eternidade!
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RUSGA

Nada dói tanto quanto a despedida
a separar, de um golpe, almas que choram
ao sentir que no adeus se esvai a vida
e tudo o mais que em vida mais adoram!

Assino a carta... e, uma vez mais, relida,
as emoções nas lágrimas se escoram,
retardando a sentença não cumprida,
com temor de arriscar a paz que imploram.

Nosso acervo de amor tem grande saldo!
E esta rusga, tão frágil, se desmente,
ante a ternura que nos dá respaldo!

Se afogo o adeus, num pranto de revolta,
é que esse adeus, dorido e reticente,
nas entrelinhas... leva o apelo: – Volta!
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INTERLÚDIO

Quando a manhã se aloure e o sol amorne as folhas,
o orvalho guarde ainda o arco-íris e recolhas,
filtrada em ouro, a luz que a própria vista embaça,
talvez tudo se iguale em tons pasteis cambiantes,
talvez sejam iguais os pálidos instantes,
se a saudade te fere e a solidão te abraça!

Mas, se a vida desperta… e, na explosão das cores,
o sol acorda e esplende em múltiplos fulgores,
hás de fugir da inércia e do seu beijo frio,
se afastares de ti o abismo escuro e fundo
e se, vencendo a dor, num renascer fecundo,
teu coração se negue a continuar coração vazio!
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ARTE PLENA

Com músicas, versos, telas
e inspiração desmedida,
artistas fazem mais belas
as belas coisas da vida!


A olhar o mundo, com visão serena
de quem ama o que fez e, apaixonado,
reconhece a presença da arte plena
e do talento nunca superado,

notou, o Criador, o quão pequena
era a alma do ser recém criado!
E temeu-lhe o futuro que condena
um sonho ao nada, quando mal sonhado!

E, então, a luz brilhou na noite escura!
E reacendeu-se a flama das conquistas!
- Num mágico lampejo de ternura,

dando-lhes alma e coração de sobra,
Deus criou, tão sensíveis, os Artistas,
humanizando, assim, a própria Obra!
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NÃO CREIAS

Tem cautela... não creias na Poesia!
Poeta sonha… às vezes se arrebata,
burla a si mesmo, abraça a fantasia
e, da palavra, esquece a força exata!...

Volúvel, num constante devaneio,
o Poeta é incapaz de amar alguém!
E, se ama esquece, no incontido anseio
de amar Vida, seu supremo bem!

Sua Poesia, de ilusões repleta,
ilude quando ri, ou quando chora!
Não creias na Poesia… no Poeta...
E, muito menos, no que eu disse agora!

Se fora como eu disse, menos dura
seria a vida de um Poeta! Vida
sem resquícios de mágoa ou de amargura,
e a saudade, até doce... não dorida!

Pode o Poeta rir... mesmo chorando!
E enganar... ao compor falsa alegria,
mas, nunca esconde o amor! E, menos, quando
o entrega inteiro aos braços da Poesia!

O Poeta, quando ama de verdade,
tem seu Amor tal força impressentida,
que assume dimensão de Eternidade
indo além... muito além da própria Vida!

Fonte:
Carolina Ramos. Destino: poesias. São Paulo: EditorAção, 2011.
Livro enviado pela poetisa.

Luís da Câmara Cascudo (Romãozinho)


Folclore do Centro-Oeste

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Filho de negro trabalhador, Romãozinho nasceu vadio e malcriado. Tinha todos os dentes, fisionomia fechada, hábitos errantes, nenhuma bondade no coração. Divertimento era maltratar animais e destruir plantas.

Menino absolutamente perverso.

Um meio-dia, a mãe mandou-o levar o almoço ao pai, que trabalhava num roçado, distante de casa.

Romãozinho foi, de má vontade.

No caminho, parou, abriu a cesta, comeu a galinha inteira, juntou os ossos, recolocou-os na toalhinha, e foi entregar ao pai.

Quando o velho deparou com ossos em vez de comida, perguntou que brincadeira sem graça era aquela.

Romãozinho pretendeu vingar-se da mãe, que ficara fiando algodão no alpendre da casinha:

- É o que me deram... Minha mãe comeu a galinha com um homem que aparece lá em casa quando o senhor não está por perto. Pegaram os ossos e disseram que trouxesse. Eu trouxe. É isso aí...

O negro meteu a enxada na terra, largou o serviço e veio correndo. Encontrou a mulher fiando, curvada, absorvida na tarefa. Dando crédito ao que lhe dissera o filho, puxou a faca e matou-a.

Morrendo, a velha amaldiçoou o filho, que estava rindo:

- Não morrerás nunca. Não conhecerás o céu, nem o inferno, nem o descanso enquanto o mundo for mundo...

Faz muito tempo que este caso sucedeu em Goiás.

O moleque ainda está vivo e do mesmo tamanho; anda por todas as estradas, fazendo o que não presta; quebra telhas a pedradas, espalha animais, assombra gente, tira galinha do choco, desnorteia quem viaja, espalhando um medo sem forma e sem nome; é pequeno, preto, risão, sem ter fé nem juízo.

Homens sérios têm visto Romãozinho.

Furtou uma moça na chapada de Veadeiros; conversou com o coletor de Cavalcanti; virou fogo azul, indo-e-vindo na estrada, perto de Porto
Nacional.

Não morrerá nunca enquanto uma pessoa humana existir no mundo. E, como levantou falso testemunho contra sua própria mãe, nem mesmo no inferno haverá lugar para ele.

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Lendas brasileiras para jovens. 
Projeto Livro para Todos.

terça-feira, 20 de abril de 2021

Adega de Versos 14: Nonato Costa

 


Stanislaw Ponte Preta (Zezinho e o Coronel)

O Coronel Iolando sempre foi a fera do bairro. Quando a patota do Zezinho era tudo criança, jogar futebol na rua era uma temeridade, porque o Coronel, mal começava a bola a rolar no asfalto, saía lá de dentro de sabre na mão e furava a coitadinha. Teve um dia que Zezinho vinha atacando pela esquerda e ia fazer o gol, quando o Coronel da Polícia Militar, naquele tempo ainda capitão, saiu e cercou o atacante, de braços abertos. Parecia um beque lateral direito, tentando impedir o avanço adversário. Por amor ao futebol, Zezinho não resistiu, driblou o garboso militar e entrou no gol com bola e tudo.

Ah! rapaziada... foi fogo. O então Capitão Iolando ficou que parecia uma onça com sinusite. Ali mesmo, jurou que nunca mais vagabundo nenhum jogaria bola outra vez em frente de sua casa. E, com a sua autoridade ferida pelo drible moleque do Zezinho, botou um policial de plantão em cada esquina, durante meses e meses. No bairro havia assalto toda noite, mas o Coronel preferia botar dois guardas chateando os garotos a deslocá-los da esquina para perseguir ladrão.

Isto eu só estou contando para que vocês sintam o drama e morem na ferocidade do Coronel Iolando.

Prosseguindo: ninguém na redondeza conseguia entender como é que aquele Frankenstein de farda podia ter uma filha como a Irene, tão lindinha, tão meiga, tão redondinha. E entre os que não entendiam estava o mesmo Zezinho, cuja patota, noutros tempos, batia bola na rua.

Muito amante da pesquisa, Zezinho foi devagarinho pro lado da Irene. Primeiro um cumprimento, na porta do cinema, depois um papinho rápido ao cruzar com ela na porta da sorveteria e foi-se chegando, se chegando e pimba... desembarcou os comandos. Quando a Irene percebeu, estava babada por Zezinho. Se ele quisesse ela seria até o chiclete dele.

Claro, o namoro foi sempre à revelia do Coronel Iolando, que não admitia nem a possibilidade de a filha olhar pro lado, quanto mais para o Zezinho, aquele vagabundo, cachorro, comunista.

Sem paqueração não há repressão. O pai não sabia de nada e a filha foi folgando, até que — chegou um dia, ou melhor, chegou uma noite — a Irene tinha saído para ir à casa da Margaridinha, de araque, naturalmente, e na volta, depois de ficar quase duas horas agarrada com Zezinho debaixo de uma jaqueira, na segunda transversal à direita, permitiu que o rapaz a acompanhasse até o portão.

Coincidência desgraçada: o Coronel Iolando estava-se preparando para sair e ir comandar um batalhão no combate à passeata de estudantes. Chegou à janela justamente na hora em que Irene e aquele safado chegavam ao portão. Tirou o trabuco do coldre e desceu a escada de quatro em quatro degraus, botando fumacinha pelas ventas arreganhadas. Parecia um búfalo no inverno.

Não deixou que o inimigo abrisse a boca. Berrou para Irene:

- Entre, sua sem-vergonha — e a mocinha escafedeu-se.

Virou-se para o pobre do Zezinho, mais murcho que boca de velha, ali encolhidinho, e agarrou-o pelo cangote, suspendendo-o quase a um palmo do chão, e o rapaz ia até dizer "Coronel, o senhor tirou o chão de baixo de mim", pra ver se com a piadinha melhorava o ambiente, mas não teve tempo:

— Seu cretino — berrou Iolando — está vendo este revólver?

(Zezinho estava)

— Pois eu lhe enfio o cano no olho e descarrego a arma dentro da sua cabeça, seu cafajeste. Está entendendo?

(Zezinho estava)

— E vou lhe dizer uma coisa: está proibido de continuar morando neste bairro. Amanhã eu irei pessoalmente à sua casa para verificar se o senhor se mudou, está ouvindo?

(Zezinho estava)

— Se o senhor não tiver, pelo menos, a cinquenta quilômetros longe desta área, eu passarei a enviar uma escolta diariamente à sua casa, para lhe dar uma surra. Agora suma-se, seu inseto.

O Coronel soltou Zezinho, que, sentindo-se em terra firme, tratou de se mandar o mais depressa possível. O Coronel, por sua vez, deu meia-volta, entrou em casa, vestiu o dólmã e avisou à filha que quando voltasse ia ter.

O Coronel Iolando foi cercar os estudantes na passeata, houve aquela coisa toda que os senhores leram nos jornais e, quando retornou ao lar, encontrou a esposa muito apreensiva:

— Não precisa ficar com esse olhar de coelho acuado, sua molenga — avisou Iolando: — Eu só vou dar uns tapas na sem-vergonha da nossa filha.

— Eu não estou apreensiva por isso não, Ioiô (ela chamava o Coronel de Ioiô). Eu estou com pena é de você.

— De mim??? — o Coronel estranhou.

— É que a Irene e o Zezinho saíram agora mesmo para casar na igreja do Bispo de Maura. Deixaram um abraço pra você.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 7 –


À espreita de um novo encanto,
o orvalho que a noite chora...
É lágrima de acalanto
que beija a face da aurora!
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A humanidade se empenha,
e num esforço profundo...
Eis que a rota panamenha,
encurta as rotas do mundo!
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A poesia se engalana,
mas só se torna completa,
quando se faz soberana
na voz do próprio poeta!
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A travessia mais rude
que entre nós dois, eu desfiz...
Foi não ter tido a virtude
de fazê-la e ser feliz!
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Cadeira velha, esquecida,
sem dono e sem mais ninguém...
Só a saudade atrevida
reclama a ausência de alguém!
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Canta poeta passarinho,
não somos tão desiguais!...
Eu também canto sozinho
preso aos grilhões dos meus ais!
= = = = = = = = = = =

Cascata, teu pranto triste,
parece que não tem fim!...
Comparo ao pranto que existe
doendo dentro de mim!
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Corrupção — é o lado injusto
da mente perversa, insana,
que esquece o preço do custo
do resto da raça humana!
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É mais feliz, afinal,
aquele, que ao ver a luz...
Vê que a estrela do Natal
brilha nos braços da cruz!
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Há uma voz triste e sonora,
nela, suspiros, lamentos!...
É a cachoeira que chora
seu pranto na voz dos ventos!
= = = = = = = = = = =

Mãe que tem fé, não se esquece,
de orar pelos filhos seus!...
Pois, no silêncio da prece,
toda mãe fala com Deus!
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Mamãe!.. Essa dor não finda,
nem cura o silêncio mudo,
de um filho, que guarda, ainda,
tua ausência em quase tudo!
= = = = = = = = = = =

Manassés, teu canto encerra
todo o bem que te conduz,
enchendo de amor a terra
e Maranguape de luz!
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Nas asas de um vento brando,
na espuma branca do mar...
As ondas chegam cantando,
trazendo o sal potiguar!
= = = = = = = = = = =

Natal! Que o planger do sino,
não seja de pranto e dor,
mas seja o toque divino
da voz da "Estrela" do amor!
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No teu adeus, quase mudo,
na resposta tão calada...
imaginei quase tudo,
sem ter certeza de nada!
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O outono da vida ingrata,
chega fazendo atropelos:
Joga tinta cor de prata,
na tinta dos meus cabelos!
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Os Magos, seguindo a trilha,
de uma estrelinha do além...
Acham a luz que mais brilha
noutra "Estrela" de Belém!
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O velho nauta, em seus passos,
olha o céu, põe-se a vogar...
Como se a força dos braços
fosse a das ondas do mar!
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Por mais que a mágoa te doa,
perdoa a quem mal te faz!...
Que a humanidade abençoa
teu gesto de amor e paz!
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Quando a aurora adormecida,
rasga o ventre da alvorada...
Ouve-se o choro da vida
nos braços da madrugada!
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Quando enfim, tu te ajoelhas,
e o teu perdão te refaz...
Serás luz entre as centelhas
do fogo aceso da paz!
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Rasga o manto que te cobre,
mostra teu riso e esplendor...
Pois, a cortina, mais nobre,
não cobre um riso de amor!
= = = = = = = = = = =

São tantas as consequências
ante o amor que se desfaz...
Que há medos temendo ausências
e há gritos pedindo paz!
= = = = = = = = = = =

Se a poesia te renova,
e a violência não te apraz...
Sê mensageiro da trova,
pombo-correio da paz!
= = = = = = = = = = =

Segui teus passos, no entanto,
foi ferindo os pés na estrada
que vi, no teu rastro, o quanto,
sofreste na caminhada!
= = = = = = = = = = =

Tenho um jardim diferente...
E entre nós, há uma aliança;
Por mais que eu mude a semente,
só nasce a flor da esperança!
= = = = = = = = = = =

Tua tristeza parece,
ó, velho mar, dos meus ais,
o choro triste da prece
das mães rezando no cais!
= = = = = = = = = = =

Venci marés violentas,
ondas e mares sem fim...
Só não venci as tormentas
que existem dentro de mim!
= = = = = = = = = = =

Viver por viver somente,
faz teu mundo tão perjuro,
que este teu falso presente,
é o presente do futuro!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Eduardo Affonso (Teimosia)

Ali pelos 15, 16 anos, era mais difícil disfarçar a timidez e/ou a falta de traquejo no convívio social. As cantadas, então, estavam totalmente fora de cogitação. O jeito era deixar que outros dissessem por mim – e nisso a música romântica era imbatível.

Havia bailes; dançava-se de rosto colado; a respiração junto à orelha, a mão dedilhando a alça do sutiã ou descendo pelos quadris, a coxa roçando a coxa – tudo isso ajudava a verbalizar o que a voz não ousava.

E, se houvesse que haver uma voz, que fosse a do Paul McCartney dizendo “uô uô uô uô uô uô uô uô, my love does it good”, a do Elton John pedindo “fly away, skyline pigeon, fly” (eu jurava que era Skylab pigeon, mas isso é assunto para outro texto), ou Junior confessando que ”when you’re near, reality loses its hold and loneliness’ tears wet my soul”. Mas, tirando o uô uô uô uô uô uô uô do Paul, eu não entendia patavina.  O que ajudava bastante.

O problema era quando as letras eram em português.

Em princípio, isso era um facilitador. Bastava cantar junto (ou fingir que cantava, tipo segunda voz de dupla sertaneja) e o recado estava dado. Se colasse, colou. Se não colasse, eu estaria só cantando a música, sem quaisquer décimas oitavas intenções.

Uma das minhas favoritas – para o bem e para o mal – era “Minha teimosia, uma arma pra te conquistar”, do Jorge Ben (ainda não era Benjor).

Era uma cantada perfeita. Direta. Para dançar com direito a olhares de promessa e um arremedo de gingado que podia ajudar na conquista pelo caminho da comiseração – mas, naquela idade, quem liga?

O problema era o meu apego à gramática. Eu tentava cantar corrigindo a letra, o que me tirava totalmente o foco. E, claro, ferrava com a métrica.

“A minha teimosia é uma arma
pra te (2º do singular) conquistar.
Eu vou vencer pelo cansaço
Até você (3º do singular)
gostar de mim, mulher, mulher.
Mulher graciosa, alcança a honra.
Você (3º do singular) alcançou, mulher.
Minha amada, minha querida, minha formosa
Vem (2º do singular) e me fala (2º do singular)
que eu sou o seu (3º do singular) lírio
e você (3º do singular) é minha rosa.
Mostra-me (2º do singular) teu (2º do singular) rosto
Fazei-me (2º do plural!!) ouvir a tua (2º do singular) voz
Põe (2º do singular) estrelas em meus olhos
Músicas em meus ouvidos
Põe (2º do singular) alegria em meu corpo
Junto com amor de você (3º do singular)
Mulher, mulher
Lá, lá, lá, lá
Mulher, mulher.”

Eu tentava pôr tudo na segunda pessoa do singular – e não funcionava. Tudo na terceira pessoa do singular – e não dava certo. E (vejam o nível de desespero) até mesmo tudo na segunda do plural. Em vão. A minha teimosia com as pessoas gramaticais acabou se tornando uma arma para não conquistar ninguém. O jeito era vencer pelo cansaço – e ir de com força no lá lá lá lá do final para tentar apagar a má impressão do gingado.

Estante de Livros (“O Coração Roubado e outras Crônicas”, de Marcos Rey)

Marcos Rey, pseudônimo de Edmundo Donato, nasceu e morreu em São Paulo (1925‐ 1999), cidade que sempre foi cenário de suas crônicas, contos, novelas e romances. Sua carreira, repleta da glória, foi marcada por um drama pessoal dos mais violentos, que permaneceu oculto até a sua morte. Marcos Rey era portador de hanseníase, doença conhecida até meados do século XX como lepra e que desde os tempos bíblicos carrega o estigma de maldição. A partir dos anos 30, a hanseníase passou a ser combatida com ferocidade pelas autoridades sanitárias paulistas, que internavam os doentes à força em sinistros leprosários.

Depois de uma segunda denúncia anônima, em 1941, o jovem Edmundo, que contraíra a doença aos dez ou doze anos, foi levado por uma ambulância enquanto jogava bilhar, em um bar na Praça Marechal Deodoro, no Centro de São Paulo. Começava um pesadelo que duraria seis longos anos, até a sua última fuga do sanatório, em 1945.


SOBRE A OBRA

Coração Roubado é um livro de crônicas. Você sabe o que é uma crônica? O autor, no prefácio, ajuda você a entender um pouco melhor esse gênero literário tão gostoso de ler e cultivado no Brasil por excelentes escritores como Machado de Assis (1839 ‐1908), Cecília Meireles (1901‐1964), Rubem Braga (1913 ‐1990), Fernando Sabino (1923 ‐2004), Ignácio de Loyola Brandão (1936), Moacyr Scliar (1937) e tantos outros...

Vamos ler um trechinho do prefácio.

O que é mesmo uma crônica? Muitos supõem, também erradamente, que a crônica, ramo econômico das letras, sem espaço para alinhavar e aprofundar conclusões, nem tamanho para conferir finais apoteóticos, não passa de malabarismo de entreato, cortina ou número para entretenimento ligeiro, show de bolso, sem grandiosidade. Um quase ‐ literatura de consumo dietético. Mas a crônica é mais, muito mais que isso, mesmo as que não têm fim nem começo.

Escritas de maneira inteligente e instigante, as 26 crônicas de Marcos Rey apresentam uma série de tipos inesquecíveis, vivendo situações as mais diversas. Nas páginas de Coração roubado, você encontrará cenas hilariantes, absurdas, constrangedoras, delicadas... presentes no dia‐a‐dia de qualquer pessoa, em qualquer lugar.

Marcos Rey agrupou as crônicas em três subtítulos:

1 - SITUAÇÕES EMBARAÇOSAS

O CORAÇÃO ROUBADO

Narrada em primeira pessoa, esta crônica relembra o tempo da infância do autor: o momento da conclusão do antigo curso primário. O autor ganhara um livro do pai (O coração, do escritor italiano Edmondo de Amicis), um best‐seller infanto‐juvenil. Na festa de formatura o seu livro desapareceu e ele sofreu uma grande decepção. Encontrou‐o sob a pasta escolar de Plínio, o aluno mais comportado da escola. Com vergonha de denunciá‐lo, pegou o livro de volta sem dizer nada ao ladrão. Mas, a partir daquele dia, perdeu a fé nos seres humanos e passou a vida toda dando o exemplo de Plínio para demonstrar a corrupção humana. Um dia, caíram alguns livros de sua estante, entre eles, o famoso O coração, de Amicis... Procurou a dedicatória de seu saudoso pai e... surpresa! Encontrou a dedicatória do pai de Plínio.

GNOMOS NA GAVETA

Misturando ficção e realidade o narrador nos conta que atravessava um período de dificuldades financeiras quando a mulher lhe deu a ideia de escrever sobre coisas esotéricas. Afirmava ela, que o povo estava cansado da dura realidade da vida e que escrever sobre gnomos poderia lhes dar um bom dinheiro. Ele afirmou que era materialista e que tudo isso era besteira, ilusão, piração. Então, a mulher insistiu: escreva contra os duendes. Nosso problema é financeiro, não importa se o livro é contra ou a favor.

Ele aceitou a sugestão da esposa e ligou para o editor, este lhe deu sinal verde... pode escrever. O título saiu fácil: NÃO ACREDITO EM GNOMOS. E DAÍ? Até adiantamento em cheque ele recebeu. Quando começou a escrever, não saía nada além do título... e o pior, um homenzinho de cinco centímetros não para de dar voltas de bicicleta ao redor de sua máquina de escrever: “...Olha para mim gozador e, com a mão direita, faz gestos obscenos... Quer me enlouquecer. Uso o aspirador.

A ÚLTIMA ENTREVISTA

Um homem sonha em ser um grande repórter, daqueles que fazem entrevistas extraordinárias e perigosas. Imagina entrevistas com marcianos, Santos Dumont, Van Gogh... Acaba entrevistando um perigoso fugitivo de penitenciária que se distrai e é preso pela polícia. Um dia, vai entrevistar um maluco que vai voar num avião até a gasolina acabar. Em terra ele pergunta: O que sente um aviador que sabe que vai morrer quando acabar a gasolina? Depois, entra no avião e decola com o suicida.

Ganhou o primeiro prêmio de reportagem do ano. Seu pai recebeu o troféu por ele. Beleza. Todo banhado a ouro.”

AH! AH! AH!

Esta crônica tece reflexões sobre o RISO. Desde o mais simples até a risada mais intensa. “O humor machadiano, por exemplo, é tão imaterial como o perfume. Exige refinamento do leitor.. Há, na outra ponta, o riso manual, obtido com os dedos através de cócegas. Com habilidade se faz até o conde Drácula dar risada. O riso pode também ser forçado artificialmente por processo mecânico, como se fazia nos circos e parques de diversão, com o antiquíssimo Disco das Gargalhadas. Criava‐se um clima postiço de alegria, com efeito mágico sobre os idiotas”. (p. 32)

Depois, o narrador passa a discorrer sobre o riso embaraçoso, aquele que não deveria ocorrer. O riso durante um velório, durante o casamento, dentro de um elevador... Por fim, a sua própria experiência: fora dar uma palestra sobre Contos. A noite chuvosa, pouca gente escutando... começou a rir da situação e de si mesmo... a plateia foi contagiada, todos começam a rir. Ao final, o prefeito lhe parabeniza:

“Volte sempre. Confesso não ter entendido muita coisa, mas nunca se riu tanto por aqui. O senhor é um show!” (p. 33)

A MISSIVISTA SUICIDA


O assunto é o ofício de cronista. O autor relembra um tempo em que produziu crônicas “melosas” para um programa de rádio, nada especial, tanto é que rasgava todas ao final do programa.

De repente, começou a receber cartas esquisitas: “Diga para o Luís voltar já para casa senão tomo veneno. Ele ouve o programa. Assinado: Julinha da Bela Vista. Letra tremida, papel umedecido de lágrimas.” (p. 39)

Emocionado, o cronista decidiu escrever uma crônica para o Luís. Liga um Luís: “... tudo bem, estou voltando pra casa”. Alívio do cronista. Liga outro Luís: “... já estou chamando um táxi para voltar aos braços da Julinha.” O cronista sente uma sensação de dever cumprido. Liga mais um Luís: “... não adianta ficar escrevendo besteiras, por mim ela pode tomar um tonel de veneno... Não estou nem aí.” O cronista fica perplexo: e agora, qual é o Luís da Julinha?

Outro momento hilário: Alguém escreveu uma carta dizendo chamar‐se Leão, que era o ser mais solitário do mundo, que ligassem pra ele. Comovido, o cronista fez o que não era normal no programa. Deu o telefone do tal Leão. Resultado, o pessoal do zoológico ligou revoltado com tantos telefonemas para falar com o leão.

2 - FLASHES DA VIDA MODERNA

ELE COMPROU TUDO QUE VAN GOGH PINTOU


Crônica divertida lembra o filme Efeito Borboleta, pois trata da volta no tempo.

Um cientista inventara uma máquina para voltar no tempo, mas não divulgara nada. Tinha uma ideia: voltar no tempo e comprar todos os quadros de Van Gogh. Depois voltaria e venderia todos ficando milionário. Começou a fazer testes. Botou uma garrafa de vinho na máquina e atrasou o relógio em um ano. Resultado: voltou um cacho de uvas; experiência 2: colocou uma galinha na máquina... quando a máquina voltou, lá estava um ovo. Pensou em se a máquina funcionava com seres humanos. Convenceu um bêbado (Gera) a entrar na geringonça e atrasou o relógio 50 anos... Gera voltou cantando marchinhas de 50 anos atrás. Deu tudo certo.

Comprou francos velhos (moeda do tempo de Van Gogh) e embarcou na máquina. Encontrou Van Gogh, pobre, desiludido, sem conseguir vender nenhum dos seus quadros. Comprou todos e ainda deu conselhos ao pintor: “Desista de pintar, moço, não nasceu para isso, em seu lugar compraria ações do novo invento, o telefone. Vai ser o maior estouro.” (p. 48)

Ao regressar ao seu tempo, o cientista colocou os quadros à venda... SURPRESA! Ninguém queria os quadros, ninguém conhecia Van Gogh... ao mexer no passado, ele apagara o famoso pintor da história. O que restara era um tal de Van Gogh que ficara rico como acionista da Companhia telefônica.

ESSA MOCIDADE DE HOJE

Reflexão irônica sobre a preocupação dos pais de antigamente e a dos pais de hoje. A crônica é datada como se fosse de 1893, o que é, evidentemente, uma estratégia do cronista para nos surpreender.

Em uma família, os pais estão preocupados. O filho está viciado em cheirar... Quando pensamos em nossos dias, vem à tona: COCAÍNA! Naquela época, o perigo era cheirar rapé, e a consequência era meramente social, já que os viciados em rapé espirravam muito. Por causa disso, o jovem perdia empregos e casamento.

O segundo filho saia no meio da madrugada e os pais, preocupados investigam. O jovem fazia serenatas para as namoradas. O terceiro viciou‐se numa tal de lanterna mágica, os pais ficam alucinados. Era apenas um brinquedo que tentava imitar a magia do cinema e que fez muito sucesso entre as crianças do final do século XIX.

E os pais preocupados dizem: “Este fim de século ameaça destruir nossos jovens.” (p. 53)

MARKETING OPORTUNISTA

Crônica que nos chama a atenção para o oportunismo de algumas pessoas. A história acontece na década de 90, tempo em que os dinossauros e os duendes estão na moda. A Xuxa até chegou a ver alguns, lembra?

O narrador se espanta pela facilidade com que o homem daquele tempo caminha pelos extremos. OU é o duende (minúsculo) ou o dinossauro (gigantesco). Um amigo pergunta se ele está escrevendo alguma coisa e ele diz que está escrevendo uma história que envolve um triângulo amoroso, o amigo não gosta:

− A ideia é velha. Meta um dinossauro carnívoro, feroz, perseguindo esses três tarados.
− Como posso fazer isso? O romance se passa nos tempos de hoje, entendeu?
− Não faz mal, ponha o dinossauro assim mesmo.

− Ora, é uma história urbana, não acontece em nenhuma floresta desconhecida.
− Melhor ainda! Já imaginou o tal dinossauro no viaduto do chá, na hora do rush, pisando nos carros, derrubando postes, engolindo marreteiros?
” (p. 57‐58)

O cronista vai para casa impressionado com o mau gosto. Comenta com a mulher esperando uma risada. Ela diz: dá dinheiro...

De noite, o cronista sonha com dinossauros. Um senador que fez propaganda no pescoço de um dinossauro, Iguanodontes andando na rua e sendo alugados... e algumas pessoas defendendo os dinossauros, preocupados com a sua extinção. De repente ele vê um enorme Tiranossauro Rex amarrado e pergunta por que o imobilizaram daquela maneira. Resposta dos defensores de dinossauros: foi imobilizado assim como marketing sensacionalista de um romance que tratava de um triângulo amoroso. Pergunta se a história fez sucesso. E a resposta é: fez, o inescrupuloso escritor ganhou milhões.

Nesse momento o escritor acorda, vai à cozinha e encontra a mulher somando as contas a pagar e diz:

− Sabe de uma coisa querida? Aquela ideia do dinossauro no viaduto é coisa de louco, sim, mas quem não é hoje em dia?” (p. 60)

3 - FIGURINHAS CARIMBADAS

A primeira figurinha carimbada é o próprio autor. Nasceu pobre, mas seu pai disse que nascera na cidade deserta (São Paulo). Devido ao seu anonimato, brinca com o recenseador, pedindo que ele apareça mais vezes. O homem do censo faz a gente lembrar quem é.

Nas primeiras décadas da vida, não fez nada e aí, por falta de tempo e cansado do esforço de não fazer nada, começou a escrever. Escreveu um romance imenso, chamado Ulisses, mas descobriu que havia um com o mesmo nome e com a mesma história. Atribui isso às coincidências. Começou a escrever sobre Paris, mas lhe deram uma ideia: fale sobre São Paulo, é mais perto e, quando chove, é só ficar olhando da janela.

Fez um filme sem sucesso nenhum, e brinca: “Se tivéssemos vendido saídas, no lugar de entradas, teria ficado rico.” (p. 78)

Fala que fez anúncios e brinca com a história de Van Gogh (pintor que cortou a orelha); O anúncio era de cola tudo, portanto fez a orelha de Van Gogh sendo colada ao contrário com os dizeres: “Agora não tem mais jeito, ruivo!”.

Na televisão também não deu certo. O primeiro livro foi um fracasso, só não desistiu por insistência da mãe. Ao acabar de escrever o vigésimo, tinha chegado ao completo anonimato.

Afirma que, atualmente, está escrevendo um livro de memórias e aconselha a que ninguém perca. Começa assim: “No mês em que nasci São Paulo estava coberta de neve.” E para que ninguém duvide, não coloquei o ano.

ADÃO FLORES, O DETETIVE

Adão é um detetive diferente. Misto de empresário de cantores e mulheres para casas noturnas e detetive, Adão tem seu escritório no próprio carro (um Corcel 69) que fica estacionado em frente a boate. Sua secretária (Maralice) trabalha no banco traseiro, com uma máquina de escrever sobre as pernas.

Resolvera ser detetive quando um pai aflito lhe pedira que localizasse suas duas filhas gêmeas, loiríssimas, que sonhavam em cantar em dupla. Ele as havia contratado, pintava elas com a cor negra e as apresentava como “as irmãs fulô”. Quando a plateia cansava, retornava‐lhes a cor original e elas cantavam como uma dupla de loiras. Também tivera um caso com uma delas antes de se pintarem e com a outra depois de pintada. Os pais choram com a apresentação das filhas.

Adão Flores era gordo (120 quilos, a maior parte na barriga) e Maralice, sua secretária, magra (45 quilos). Um dia um homem lhe procurou para encontrar um cantor que lhe dera um cano. Adão conhecia todos. Era um tal de Ramon Diaz.. Adão o prendeu, mas antes lhe pediu que cantasse o famoso bolero Sabra Dios.

GENTE QUE VAI À FEIRA


O autor começa narrando a mistura de personagens que frequentam às feiras populares. O rico, o pobre, e, às vezes, até mesmo gente famosa. Ele não gosta de feira, lembra do tempo de criança, quando era obrigado a carregar as compras. Sua esposa adora. Um dia uma menina gorducha lhe pediu um autógrafo. Ficou todo feliz, havia acabado de publicar um livro e era bom ser reconhecido. Juntou gente, e ele cada vez mais feliz... até que uma senhora da fila perguntou: quem é? E a outra informou:

“− Não conhece? É o doutor Lilico da novela das 7, o pai da moça... Vai deixar que eles se casem no final? Conte pra gente, conte.” (p. 91)

PROCURANDO TELMA TERNURA

Um jovem repórter está procurando um assunto que emocione os leitores. Lá está, nos arquivos: Telma ternura, a ex‐rainha do sexo em São Paulo, a mãe do espetáculo pornô, sumira. Ninguém sabia do seu paradeiro. Ninguém sabia nem do seu verdadeiro nome. Procurou em todos os lugares e... NADA. Um dia ligaram para a redação e deram o endereço.

Encontrou uma velhinha magra (40 quilos), ela não dava entrevistas sem receber um bom dinheiro. Desesperado para não perder o furo de reportagem, ele vendeu a eletrola, o casaco, obras de Eça de Queirós.. até um papagaio. Pagou e a velhinha começou a entrevista. Não tinha nenhuma vergonha, contava tudo, figurões e famosos com quem tivera casos... tudo. O repórter pediu uma foto e ela provocou: com roupa ou sem roupa?

Terminada a entrevista, o repórter corre para o jornal, está bem feliz e ansioso. Quando mostra o trabalho ao editor, este começa a rir e informa: Telma morreu há 20 anos. Alguém te enganou. Ele corre atrás da velhinha que o enganara, mas, chegando lá, não encontra ninguém, ela já se mudara. Informam que a velha era uma grande inventora de histórias e que gostava de se passar por uma ex‐atriz: Greta Garbo.

Envergonhado, ele sabe que todos ali já sabem que caíra nas mentiras da velhinha.

OS FURTOS DO FURTADO

Furtado era um home sério, respeitado, sempre bem vestido. Todos o achavam careta. Mas o cronista o conhecia desde a infância. Um fino ladrão era isso que o Furtado era.

Estava sempre de olho nos pertences alheios. Jogava o boné e, junto já vinha o compasso. O cronista avisava: Furtado, devolva, eu vi você roubar. E ele corrigia: Roubo é quando se usa violência. Eu apenas furto.

Quando o autor ameaçava denunciar à professora ele dizia: Não faça isso que eu devolvo. Mas não era o compasso que queria devolver, já era a caixa de lápis de cor do denunciante que ele roubara e que devolveria em troca de seu silêncio.

Cresceu dessa maneira, sempre com modos finos e sempre roubando. Já adulto, não resistia ao desejo de contar ao amigo de infância seus furtos. Na feira, no supermercado, nas livrarias... e ainda pedia: Cuidado! Não vá um dia falar de mim em sua crônica.

Fonte:
Algo Sobre

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Sammis Reachers (o Incrível Hulk)


O motorista era um colosso de massa, e seu apelido fazia jus à sua musculatura: Hulk. A empresa, a Mauá.

Vamos conhecer um episódio ocorrido com nosso descontrolado companheiro Hulk.

Certo dia, no meio dos trabalhos, circulando pelo trânsito apertado e estressante de São Gonçalo, Hulk percebeu que a temperatura do motor estava muito elevada. Temendo “belgar o carro” (sujeitar o veículo à quebra), nosso amigo resolve levar a viatura para a garagem. Lá chegando, e depois de estacionar o veículo no pátio, depara-se com nada mais nada menos que o dono da empresa, o Sr. Domênico, que por sinal não estava num bom dia. Mas, até aí tudo bem. O velho que cuidasse dos próprios problemas; Hulk já tinha os seus.

Ao ver o motorista descer do veículo e se dirigir tranquilamente para a área de repouso e espera dos motoristas, Domênico o interpelou:

- Mas que houve aí, rapaz?

Hulk respondeu:

- A temperatura está alta, o radiador periga de ferver. Trouxe o carro pra oficina.

O velho, estressado, diz:

- Mas ora! Este carro é novo! Está bom! Como você diz que está a ferver? Sabe quanto custa um carro desses? Você não quer é trabalhar...

O nosso amigo Hulk, já estressado do dia, acabou de explodir com essa. Apanhou o velho pelo braço, arrastou-o pelo pátio e, levantando-o quase como a uma criança, simplesmente jogou o velho escada acima, praticamente empurrando-o por sobre o capô, e apontando, com seu braço imenso;

- Pois olhe ali, senhor! 170 graus de temperatura! Acha que estou aqui de brincadeira?!!!!

Domênico, que já estava branco de susto e com o bracinho ainda sendo esmagado pela forte manopla de Hulk, só conseguiu gaguejar, bem baixinho:

- Vo-vo-você está ce-certo, meu filho. Fe-fez muito, mu-muito bem em trazer o carro...

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Luiz Damo (Poemas Escolhidos) V

AMANHÃ


O amanhã que nos parece distante
poderá não ser o quanto parece,
palco onde o sonho fulge exuberante
e à luz do agora a saudade floresce.

De raro esplendor, sereno e brilhante,
farto celeiro, o passado enaltece,
pingos de orvalho em noite fulgurante
sombra vibrante, o luar incandesce.

Ancoradouro, de paz transbordante,
onde a jornada jamais recrudesce
eterna prece mesmo itinerante.

Ninguém aos brados em dor esmorece
olhar ereto pro céu palpitante,
num gesto de fé um ser agradece.
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EU TE QUERO I

Eu te quero meu Brasil na humildade
de um filho que procura te seguir,
deixando sulcos de brasilidade
que à posteridade hão de convergir.

Eu te quero meu Brasil, na verdade,
longe da guerra que faz destruir,
onde todos vivam a liberdade
sem maldade que leve a regredir.

Porém, não basta somente querer,
ver tudo mudado no meu redor,
se não começar com o meu viver.

Algo de bom poderei produzir
para tornar este Brasil melhor
e então dos outros também exigir.
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EU TE QUERO II

Eu te quero meu Brasil rico e forte,
sem fronteiras pra tua produção,
invencível desde o sul até o norte
longe da morte, fruto da omissão.

Eu te quero meu Brasil soberano
sendo altivo na determinação,
e a cada gesto ímprobo, rude, insano,
responda com briosa educação.

Nem sempre aquilo que me satisfaz
tem a marca ou selo de qualidade
à mostra no frasco chamado paz.

Plantando no presente sem vaidade
sigo em frente sem olhar para trás,
pois quem busca refaz a sociedade.
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EU TE QUERO III

Eu te quero meu Brasil atuante
e distante da dor quero te ver,
o teu verde amarelo cintilante,
seja preponderante em cada ser.

Eu te quero meu Brasil transbordante
dessa força que a todos contagia,
e o branco anil deste céu tão brilhante
seja constante de noite e de dia.

Tudo quanto posso desenvolver
cabe a mim com prudência discernir
e assim teu nome sempre promover.

Passos largos e um caminho a seguir,
das tempestades nunca me esconder
para então juntos poder prosseguir.
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HERÓIS DO PASSADO

São relevantes os dons revelados
por requintadas personalidades,
doces frutos com ternura velados
no celeiro das perenes vontades.

Grandes talentos serão recordados
à sombra de atrozes adversidades,
vendo seus filhos heróis coroados
orgulho de muitas comunidades.

Com passos firmes e consolidados
foram audazes nas contrariedades
buscando a força nos seus aliados.

Enfrentando as vulnerabilidades,
testemunharam avanços galgados
nos palcos da vida, eternas verdades.

Fonte:
Luiz Damo. Pétalas do Quotidiano. Caxias do Sul/RS: Lorigraf, 2012.
Livro enviado pelo autor.