quinta-feira, 10 de abril de 2014

Antologia Jovem Escritor de Teófilo Ottoni/MG (Contos) I

SARA MENDES ROCHA
Ensino Médio da Escola  Particular Pequeno Príncipe

Troca natural

Hoje acordei sem pauta, sem mundo, sem cor, sem nada! Estava fincada na terra, sujando meu tênis de marca preferida, não conseguia sair, estava preso. Tentei aclamar para os meus pais, mas ninguém apareceu para me socorrer. Não sentia fome nem frio e muito menos minhas pernas. Quando parei para olhar ao meu redor, percebi estar no meio de uma floresta humana, uma floresta má, reclamona e barulhenta. Uma floresta que se recusava a produzir oxigênio para as árvores respirarem.

As árvores humanas não se importavam com ninguém, só queriam saber delas, quem era mais bela, vistosa e exuberante. Aos pés dessas maldosas, estavam árvores afetuosas, bondosas e inocentes, que com toda a bondade do mundo, cuidavam dos maldosos sem reclamar. Esse não era o objetivo delas, mas mesmo assim elas o faziam com amor. A que encontrei aos meus pés a me regar, tomei minha petulância e ousei perguntar:

– Com licença boa senhora! Mas, que fazes aqui a me regar e a adubar minhas raízes?

– Formosa princesa! Encontro–me aqui à disposição daqueles que prezam pela minha sobrevivência! Trato com carinho e amor aqueles que, seu trabalho apenas por nós realiza. É infelizmente a única maneira que tenho de agradecer, pois se houvesse outra, a faria, nem que custasse minha vida, pois sei que aqueles da nova geração seriam gratos! Deixaríamos para eles um mundo melhor do que aqueles que encontramos! – Disse senhora árvore indignada com a minha pergunta, mas com a mais doce voz por mim antes já ouvida.

– Mas senhora – Disse ainda indignada com a atitude da boa árvore – Se já é de teu conhecimento a falta de piedade dos humanos, ainda persistes em fazer o bem, para quem não te faz nem o necessário?

– Mas, linda! – disse ela com voz meio sarcástica – e como é que sobreviverei sem saber o que teria acontecido se tivesse ao menos tentado lutar pela sobrevivência de meus ancestrais? Quem serei se não ousar ser quem eu quero ser? Ou seja, a diferença, que parte do coração de cada um de nós a atos que se tornam grandes e transformam o planeta? – Ela concluiu com uma pena lastimável a minha juventude à flor da pele e à falta de iniciativa presa em mim.

Ela me olhava agora, pronta para responder mais uma de minhas perguntas indesejáveis, mas intrigantes para ela, para que assim possa quem sabe convencer–me a produzir sua fonte de vida. Olhando para o chão e tentando refletir a respeito de sua resposta, ousei–me a indagar mais uma vez:

– Dona árvore, mas como é que se pode produzir tão bem assim sem aproveitar os recursos que o mundo lhe oferece? Se são eles os mais produtivos?

– E quem disse que não aproveito? – Disse ela sorridente – eu os respiro, os como, bebo e ainda me divirto com eles, que mais posso eu apenas uma árvore satisfeita querer? Eu desenvolvo como que o meu mundo bondoso me oferece, destruição nunca foi e nunca será sinônimo de desenvolvimento. Desenvolvimento é conciliar o que podemos consumir com nossa grandiosa inteligência que nos é dada. Somos todos bons e sustentáveis, pois somos produtos desse meio que possui essas mesmas características, se não, quem nós há de ser? – Terminou gargalhando.

– Mas senhor... Retruquei confusa.

– Meu trabalho não é fácil,mas não desisto. Tenha um bom dia, e não se esqueça que terei apenas um bom amanhã se com sua ajuda puder contar! – e já cansada de minha voz inconveniente, saiu ela contarolando.

Eu olhava ao redor com a mente mais confusa do mundo. Refletia nas palavras da boa árvore. E imaginava inúmeras soluções para o caos que o mundo em que vivemos se encontrava. Projetos e iniciativas sustentáveis invadiram e persuadiram todo o meu minúsculo ser.Eu estava pronta para seguir os conselhos daquela senhora, tinha agora uma sede insaciável de imitá–la, ser a diferença que o mundo quer ver.

Eu estava pensando em como seria se de repente todas as plantas se recusassem a produzir oxigênio, o que seria de nós: eu não as culparia por essa atitude, elas teriam razão, quem somos nós para destruir aquilo que foi concedido a todos nós seres vivos? Isso não estava certo, eu tinha uma necessidade gigante de reverter essa situação.

Quando de repente parei e olhei ao meu redor, estava num mar de sangue e mortandades, consegui apenas ver destruição e ao avistar uma placa perto de mim, pude ler 21/09/2500. Não sabia como o cenário tinha mudado tão drasticamente. Meus olhos se sujaram com situações que não desejaria ver!

Estava no ponto máximo do inferno, e contava os segundos para ser libertada daquele lugar, desejando com todas as minhas forças poder estar em casa com minha família. Quando em um pulo acordei suada e ofegante em minha cama, eu tinha sonhado com uma lição de vida que jamais esqueceria.

Fonte:
3a. Antologia Jovem Escritor. Academia de Letras de Teófilo Ottoni.
Participação dos estudantes do ensino fundamental, médio e superior classificados no 3º Prêmio Jovem Escritor promovido, em 2013, pela Academia de Letras de Teófilo Otoni, União Estudantil de Teófilo Otoni e o Movimento Pró Rio Todos os Santos e Mucuri.

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 2


Machado de Assis (Ayres e Vergueiro)


Era muito alva, cheia de corpo, assaz bonita e elegante, a esposa de Luís Vergueiro.

Chamava-se Carlota. Contava 22 anos e parecia destinada a envelhecer muito tarde. Não sendo franzina, não tinha nenhuma ambição de parecer vaporosa, pelo que era dada à boa mesa, e detestava o princípio de que uma moça para parecer bonita deve comer pouco. Carlota comia sofrivelmente, mas em compensação só bebia água, uso que, na opinião do marido, era causa de se lhe não afoguearem as faces como convinha a uma beleza robusta.

Reqüestada por muitos rapazes no ano da Maioridade, deu ela a preferência ao sr. Luís Vergueiro que, posto não fosse mais bonito que os outros, tinha qualidades que o punham muito acima de todos os rivais. Destes se podia dizer que os movia a ambição; tinham geralmente pouco mais que nada; Vergueiro não era assim. Iniciava um negociozinho de fazendas que lhe ia dando esperanças de enriquecer, ao passo que a amável Carlota apenas tinha aí uns dez contos, dote feito pelo padrinho.

Caiu a escolha em Vergueiro, e o casamento foi celebrado com alguma pompa, sendo padrinhos um deputado maiorista e um coronel do tempo da revolução de Campos.

Nunca houve casamento mais falado que aquele; a beleza da noiva, a multiplicidade dos rivais, a pompa da cerimônia, tudo deu que falar durante uns oito dias antes e depois, até que a vadiação do espírito público achou novo alimento.

Vergueiro alugou a casa que ficava por cima da sua loja, e para lá levou a mulher, satisfazendo assim as obrigações públicas e privadas, consorciando facilmente a bolsa e o coração. A casa era na Rua de S. José. Daí a pouco tempo comprou a casa, e isto fez dizer que o casamento, longe de lhe pôr um cravo na roda da fortuna, veio antes ajudá-lo.

Tinha Vergueiro uma irmã casada no interior. Morre-lhe o marido, e a irmã veio para o Rio de Janeiro onde foi recebida pelo irmão com todas as demonstrações de afeto. As duas cunhadas simpatizaram logo uma a outra, e esta presença de uma estranha (para recém casados todos são estranhos) não alterou a felicidade doméstica do casal Vergueiro.

Luísa Vergueiro não era bonita, mas tinha uma graça especial, uns modos todos seus, uma coisa que se não explica, e esse misterioso dom, essa qualidade indefinível encadeou para sempre o coração de Pedro Ayres, rapaz de trinta anos perfeitos, morador na vizinhança.

Digam-lhe lá o que pode fazer uma pobre viúva ainda moça, que apenas esteve casada dois anos. Luísa não era da massa das Artemisas. Tinha chorado o esposo, e se tivesse talento, podia escrever uma excelente biografia dele, honrosa para ambos. Mas isso era tudo que se podia exigir dela; não possuía um túmulo no coração, possuía um ninho; e um ninho deserto é a coisa mais triste deste mundo.

Não foi Luísa insensível aos olhares requebrados de Pedro Ayres, e serei justo dizendo que ocultou quanto pôde a impressão que o moço fazia nela. Ayres pertencia àquela raça de namoradores que não abatem armas logo à primeira resistência. Insistiu nos olhares entremeados com alguns sorrisos; chegou a interrogar miudamente um moleque da casa, cuja discrição não pôde resistir a uma moeda de prata. O moleque foi além; aceitou uma carta para a viuvinha.

A viuvinha respondeu.

Daqui em diante correram as coisas com aquela celeridade natural entre dois corações que se querem, que são livres, que não podem viver um sem o outro.

Carlota percebeu o namoro, mas respeitou a discrição da cunhada, que nenhuma confissão lhe fez. Vergueiro estava no extremo oposto da perspicácia humana; e além disso as suas ocupações não lhe davam tempo para perceber os namoros da irmã.

Não obstante, sorriu complacentemente quando Carlota lhe disse o que sabia.

— Pensas que eu ignoro isso? perguntou o marido brincando com a corrente do relógio.

— Alguém to contou? perguntou a mulher.

— Ninguém me contou nada, mas para que tenho eu olhos senão para ver o que se passa à roda de mim? Sei que esse rapaz anda cá a namorar a Luísa, estou a ver em que param as coisas.

— É fácil de ver.

— Casamento, não? — Que dúvida! Vergueiro coçou a cabeça.

— Nesse caso, disse ele, acho bom indagar alguma coisa da vida do pretendente; pode ser algum tratante...

— Eu já indaguei tudo.

— Tu? Carlota passou-lhe os braços à roda do pescoço.

— Eu, sim! As mulheres são curiosas; vi o Tobias entregar uma cartinha à Luísa; interroguei o Tobias, e ele disse-me que o rapaz é um moço sério e tem alguma coisa de seu.

— Tem, tem, disse Vergueiro. Que achas? — Que os devemos casar.

— Entende-te tu com ela, e conta-me o que souberes.

— Bem.

Carlota cumpriu fielmente a ordem do marido, e Luísa nada lhe ocultou do que se passava em seu coração.

— Queres então casar com ele? — Ele deseja isso mesmo.

— E estão calados! Parecem-me aprendizes.

Carlota era sincera no prazer que tinha em ver casada a irmã do marido, sem se preocupar com o resultado disso, que era tirar-lhe a companhia a que já se acostumara.

Vergueiro refletiu na inconveniência de confiar nas informações de um moleque ignorante, que devia ter a respeito da probidade e da distinção idéias sumamente vagas. Para suprir esta inconveniência, lembrou-se de ir em pessoa falar com Pedro Ayres, e assentou que o faria no domingo próximo. A mulher aprovou a resolução, mas o pretendente cortou-lhe as vazas, indo ele mesmo no sábado à casa de Vergueiro, expor os seus desejos e títulos.

Pedro Ayres era homem bem apessoado; tinha grandes suíças e um pequeno bigode.

Vestia com certa elegância, e tinha os gestos desembaraçados. Algum severo juiz podia achar-lhe um inexplicável horror à gramática; mas nem Vergueiro, nem Carlota, nem Luísa, estavam em melhores relações com a mesma senhora, de maneira que este pequeno senão passou completamente despercebido.

Ayres deixou a melhor impressão em toda a família. Desde logo ficou assentado que se esperasse algum tempo, a fim de completar o prazo do luto. Isso, porém, não embaraçou as vindas de Ayres à casa da noiva; começou indo lá três vezes por semana, e acabou indo todos os dias.

Ao cabo de poucas semanas, já Vergueiro dizia: — Ó Ayres, queres mais açúcar? E Ayres respondia: — Dá cá mais um pouco, Vergueiro.

Estreitou-se a amizade entre ambos. Eram necessários um para o outro.

Quando Ayres não ia à casa de Vergueiro, este passava a noite mal. Ayres detestava o jogo; mas a amizade que tinha a Vergueiro bastou para que depressa aprendesse e jogasse o gamão, a ponto que chegou a vencer o mestre. Nos domingos, Ayres jantava com Vergueiro; e dividia a tarde e a noite entre o gamão e Luísa.

As duas moças, longe de se zangarem com este namoro dos dois, pareciam contentes e felizes. Viam nisso uma fiança de futura concórdia.

Um dia entrou Ayres na loja de Vergueiro e pediu-lhe uma conferência particular.

— Que temos? disse Vergueiro.

— Daqui a dois meses, respondeu Ayres, é o meu casamento; vou ficar indissoluvelmente ligado à tua família. Tive uma idéia...

— Uma idéia tua deve ser excelente, observou Vergueiro abaixando o colete que havia fugido insolentemente do seu lugar.

— Tenho uns contos de réis. Queres-me para sócio? Ligaremos deste modo o sangue e a bolsa.

A resposta de Vergueiro foi menos circunspecta do que convinha em casos tais.

Levantou-se e caiu nos braços do amigo, exatamente como faria um sujeito falido a quem lhe oferecessem uma tábua de salvação. Mas nem Ayres teve semelhante suspeita, nem acertaria se a tivesse. Vergueiro nutria pelo futuro cunhado um sentimento de entusiástica amizade, e achou naquela idéia um documento da afeição do outro.

No dia seguinte deram os passos necessários para organizar a sociedade, e dentro de pouco tempo foi chamado um pintor para traçar nos portais da loja estes dois nomes, já agora indissoluvelmente ligados: Ayres & Vergueiro.

Vergueiro insistiu em que o nome do amigo estivesse antes do seu.

No dia desta pintura, houve jantar em casa, e a ele assistiram algumas pessoas íntimas, todas as quais ficaram morrendo de amores pelo sócio de Vergueiro.

Estou a ver o meu leitor aborrecido com esta singela narração de ocorrências prosaicas e vulgares, sem nenhum interesse romanesco, sem que apareça nem de longe a orelha de uma peripécia dramática.

Tenha paciência.

É verdade que, feita a sociedade, e casado o novo sócio, a vida de toda esta gente não poderá oferecer interesse nenhum que valha dois caracóis. Mas aqui intervém uma personagem nova, a qual vem destruir tudo o que o leitor pode imaginar. Não é só uma personagem; são duas, irmãs ambas poderosas: a Doença e a Morte.

A doença entrou por casa de nosso amigo Vergueiro e prostrou na cama durante dois longos meses a viúva-noiva. Não se descreve o desespero de Ayres vendo o estado grave daquela a quem ele amava mais que tudo. Esta circunstância de ver o amigo desesperado, aumentou a dor de Vergueiro, que já devia sentir bastante com os padecimentos da irmã.

Do que era a moléstia, divergiram os médicos; e todos eles com sólidas razões. O que não provocou nenhuma divergência da parte dos médicos, nem das pessoas da casa, foi o passamento da moça que se verificou às 4 horas da madrugada de um dia de setembro.

A dor de Ayres foi tremenda; atirou-se ao caixão quando os convidados o vieram buscar para o coche, e não comeu um pedaço de pão durante três dias.

Vergueiro e Carlota recearam pela saúde e até pela vida do malfadado noivo, pelo que foi assentado que ele se mudaria para a casa de Vergueiro, onde seria vigiado de mais perto.

Seguiu-se à expansão daquele imenso infortúnio um abatimento prolongado; mas a alma readquiriu as forças perdidas, e o corpo com ela se foi restabelecendo. No fim de um mês já o sócio de Vergueiro assistia ao negócio e dirigia a escrituração.

Com verdade se diz que é nos grandes infortúnios que se conhecem as verdadeiras amizades. Ayres encontrou da parte do sócio e da mulher a mais sublime dedicação.

Carlota foi para ele uma verdadeira irmã; ninguém levou mais longe e mais alto a solicitude. Ayres comia pouco; arranjou-lhe ela comidas próprias para lhe vencer o fastio.

Conversava com ele longas horas, ensinava-lhe alguns jogos, lia-lhe o Saint Clair das Ilhas, aquela velha história de uns desterrados da ilha da Barra. Pode-se afiançar que a dedicação de Carlota foi o principal medicamento que restituiu à vida o nosso Pedro Ayres.

Vergueiro aplaudia in petto o procedimento de sua mulher. Quem meu filho beija, minha boca adoça, diz um adágio; Vergueiro tinha para com o sócio extremos de pai; tudo o que se fizesse ao Ayres, era agradecido por ele do fundo da sua grande alma.

Nascida da simpatia, criada no infortúnio comum, a amizade de Ayres e Vergueiro assumiu as proporções do ideal. Na vizinhança, já ninguém recorria às expressões proverbiais para significar uma amizade íntima; não se dizia de dois amigos: são unha e carne; dizia-se: Ayres com Vergueiro. Diógenes teria achado ali um homem, e realmente ambos formavam uma só criatura.

Nunca mais sucedeu andarem com roupa de cor, fazenda ou feitio diferentes; vestiam-se igualmente, como se até nisso quisessem mostrar a perpétua aliança de suas nobres almas. Faziam mais: compravam chapéus e sapatos no mesmo dia, ainda que um deles os houvesse estragado menos que o outro.

Jantar, baile ou passeio a que um fosse havia de ir o outro por força, e ninguém se animava a convidá-los separadamente.

Não eram, pois, dois sócios simples que procuravam dos seus esforços juntos obter cada qual a sua riqueza.

Não.

Eram dois amigos íntimos, dois corações iguais, dois irmãos siameses, eternamente vinculados na terra, labutando para alcançar os bens da sorte, mas sem nenhuma idéia de os separarem jamais.

E a fortuna os ajudou, por maneira que dentro de dois anos já havia idéia de liquidar o negócio, e irem os dois e mais Carlota viver tranquilamente em uma fazenda, comendo o ganhado na graça de Deus e pleno esquecimento dos homens.

Que mau demônio, que ruim espírito veio meter-se entre eles para lhes impedir esta excelente idéia? A fortuna varia como a mulher; depois de os haver favorecido, começou a desandar.

Meteram-se eles em negócios arriscados e perderam alguma coisa. Todavia ainda tinham um bom pecúlio.

— Vamos liquidar? perguntou um dia Ayres a Vergueiro.

— Vamos.

Inventariaram as fazendas, cotejaram o seu valor com a soma das dívidas, e repararam que, se pagassem integralmente aos credores, ficariam com uma soma mesquinha para ambos.

— Continuemos o negócio, disse Ayres; trabalharemos até resgatarmos a antiga posição.

— Justo... mas eu tenho uma idéia, disse Vergueiro.

— E eu tenho outra, respondeu o sócio. Qual é a tua? — Dir-ta-ei domingo.

— E eu comunicarei nesse mesmo dia a minha idéia, e veremos qual delas serve, ou se se combinam ambas.

Seria coisa extremamente nova, e até certo ponto digna de pasmo, que aqueles modelos da verdadeira amizade tivessem idéias divergentes. A idéia anunciada para o domingo seguinte era a mesmíssima idéia, tanto no cérebro de Ayres, como no de Vergueiro.

Consistia em liquidar à sorrelfa: iriam vendendo pouco a pouco as fazendas, e sairiam da corte sem dizer adeus aos credores.

A idéia não era original; bonita parece que também não; mas era útil e praticável.

Ficou assentado que esta resolução não seria comunicada à mulher de Vergueiro.

— Reconheço, dizia Ayres, que é uma senhora de alta prudência e rara discrição...

— Não tem dúvida.

— Mas o espírito das senhoras é cheio de alguns escrúpulos, e se ela nos fosse à mão, tudo ficaria perdido.

— Estava pensando a mesma coisa, observou Vergueiro.

Concordes na promessa, não menos o foram na infidelidade. No dia seguinte, Ayres ia comunicar confidencialmente o plano à esposa de Vergueiro, e começou a dizer: — Nós vamos liquidar aos poucos...

— Já sei, respondeu Carlota, ele já me disse tudo.

Façamos justiça a esta distinta moça; depois de tentar dissuadir o marido do projeto, tentou dissuadir o sócio, mas tanto um como o outro ostentaram uma tenacidade de ferro em suas opiniões. Divergiam no modo de encarar a questão. Vergueiro não contestava a imoralidade do ato, mas achava que o benefício compensava a imoralidade; reduziu a dissertação a esta expressão popular: ande eu quente e ria-se a gente.

Ayres não admitia que o projeto ofendesse as leis da moral. Ele começava separando a moral e o dinheiro. O dinheiro é coisa de si tão mesquinha, que não podia penetrar na região sublime da moral.

— Deus, observava ele, não quer saber quanto pesam as algibeiras, quer saber quanto pesam as almas. Que importa que as nossas algibeiras estejam pejadas de dinheiro, contanto que as nossas almas estejam leves de pecados? Deus olha para as almas, não olha para as algibeiras.

Carlota alegou triunfalmente um dos dez mandamentos da lei de Deus; mas o sócio de Vergueiro fez uma tão complicada interpretação do texto bíblico, e falou com tanta convicção, que o espírito de Carlota não achou resposta suficiente, e aqui parou a discussão.

A que se não acostuma o coração humano? Lançada a má semente no coração da moça, depressa germinou, e o plano secreto passou a ser assunto de conversa entre os três conjurados.

A execução do plano começou e prosseguiu com espantosa felicidade. A firma Ayres & Vergueiro era tão honrada, que os portadores de letras e outros títulos, e até os que não tinham títulos, foram aceitando todas as delongas que os dois sócios lhes pediam.

As fazendas começaram a ser vendidas a resto de barato, não por anúncio, o que seria dar na vista, mas por informação particular que passava de boca em boca.

Nestas e noutras ocupações se abismava o saudoso espírito de Pedro Ayres, já agora deslembrado da desditosa Luísa. Que querem? Nada é eterno neste mundo.

Nada liga mais fortemente os homens que o interesse; a cumplicidade dos dois sócios apertou os vínculos da sua proverbial amizade. Era ver como eles delineavam entre si o plano da vida que os esperava quando estivessem fora do Império. Protestavam gozar do dinheiro sem recorrer às alternativas do comércio. Além dos prazeres comuns, Vergueiro possuía os do coração.

— Tenho Carlota, dizia ele, que é um anjo. E tu, meu Ayres? Por que te não casarás também? Ayres desatou do peito um suspiro e disse com voz trêmula: — Casar? Que mulher há mais neste mundo que possa fazer a minha felicidade? Ditas estas palavras com outra sintaxe que eu não reproduzo por vergonha, o desditoso Ayres sufocou dois ou três soluços e fitou os olhos no ar; depois coçou o nariz e olhou para Vergueiro: — Olha, eu não me considero solteiro; não importa que tua irmã morresse; estou casado com ela; separa-nos apenas o túmulo.

Vergueiro apertou com entusiasmo as mãos do sócio e aprovou a nobreza daqueles sentimentos.

Quinze dias depois desta conversa, Vergueiro chamou Ayres e disse que era necessário pôr termo ao plano.

— É verdade, disse Ayres, as fazendas estão quase todas vendidas.

— Subamos.

Subiram e foram ter com Carlota.

— Vou para Buenos Aires, começou Vergueiro.

Carlota empalideceu.

— Para Buenos Aires? perguntou Ayres.

— Crianças! exclamou Vergueiro, deixem-me acabar. Vou para Buenos Aires com o pretexto de negócios comerciais; vocês demoram-se aqui um a dois meses; vendem o resto, põem o dinheiro a bom recado, e partem para lá. Que lhes parece? — A idéia não é má, observou Ayres, mas está incompleta.

— Como? — A nossa ida deve ser pública, explicou Ayres; eu declararei a todos que tu estás doente em Buenos Aires e que mandas buscar tua mulher. Como alguém há de acompanhá-la, irei eu, prometendo voltar daí a um mês; a casa fica aí com o caixeiro, e... o resto... creio que não preciso dizer o resto.

— Sublime! exclamou Vergueiro; isto é que se chama estar adiante do século.

Assentado isto, anunciou aos amigos e credores que uma operação comercial o levava ao Rio da Prata; e tomando passagem no brigue Condor deixou para sempre as plagas da Guanabara.

Não direi aqui as saudades que sentiram aqueles dois íntimos amigos, quando se separaram, nem as lágrimas que verteram, lágrimas dignas de inspirar mais adestradas penas do que a minha. A amizade não é um nome vão.

Carlota não menos sentiu aquela separação, posto fosse de pequeno prazo. Os amigos da firma Ayres & Vergueiro viram bem o que era um quadro de verdadeira afeição.

Ayres não era pêco, apressou a venda das fazendas, realizou em boa prata o dinheiro da caixa, e antes de seis semanas recebeu de Buenos Aires uma carta em que Vergueiro dizia que estava de cama, e pedia a presença de sua querida mulher.

A carta terminava assim: “ O plano era excelente, e Vergueiro, lá em Buenos Aires, esfregava as mãos de prazer saboreando os aplausos que receberia do amigo e sócio pela idéia de disfarçar a letra.

Ayres aplaudiu efetivamente a idéia, e não menos a aplaudiu a amável Carlota.

Determinaram, entretanto, não sair com a publicidade assentada no primeiro plano, em vista da qual o sagaz Vergueiro escrevera a referida carta. Talvez mesmo já esse projeto fosse anterior.

O certo é que daí a dez dias, Ayres, Carlota e o dinheiro saíram furtivamente... para a Europa.

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

Augusto dos Anjos (Santuário de Poesias) 2

   
O MORCEGO

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

“Vou mandar levantar outra parede...”
— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

    PSICOLOGIA DE UM VENCIDO

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

VERSOS A UM CÃO

Que força pôde, adstrita a embriões informes,
Tua garganta estúpida arrancar
Do segredo da célula ovular
Para latir nas solidões enormes?!

Esta obnóxia inconsciência, em que tu dormes,
Suficientíssima é para provar
A incógnita alma, avoenga e elementar
Dos teus antepassados vermiformes.

Cão! — Alma de inferior rapsodo errante!
Resigna-a, ampara-a, arrima-a, afaga-a, acode-a
A escala dos latidos ancestrais...

E irá assim, pelos séculos, adiante,
Latindo a esquisitíssima prosódia
Da angústia hereditária dos teus pais!

BUDISMO MODERNO

Tome, Doutor, esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

SONHO DE UM MONISTA

Eu e o esqueleto esquálido de Esquilo
Viajávamos, com uma ânsia sibarita,
Por toda a pró-dinâmica infinita,
Na inconsciência de um zoófito tranqüilo.

A verdade espantosa do Protilo
Me aterrava, mas dentro da alma aflita
Via Deus — essa mônada esquisita —
Coordenando e animando tudo aquilo!

E eu bendizia, com o esqueleto ao lado,
Na guturalidade do meu brado,
Alheio ao velho cálculo dos dias,

Como um pagão no altar de Proserpina,
A energia intracósmica divina
Que é o pai e a mãe das outras energias!

    SOLITÁRIO

Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos conforta...
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
— Velho caixão a carregar destroços —

Levando apenas na tumbal carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!

    MATER ORIGINALIS

Forma vermicular desconhecida
Que estacionaste, mísera e mofina,
Como quase impalpável gelatina,
Nos estados prodrômicos da vida;

O hierofante que leu a minha sina
Ignorante é de que és, talvez, nascida
Dessa homogeneidade indefinida
Que o insigne Herbert Spencer nos ensina.

Nenhuma ignota união ou nenhum nexo
À contingência orgânica do sexo
A tua estacionária alma prendeu...

Ah! de ti foi que, autônoma e sem normas,
Oh! Mãe original das outras formas,
A minha forma lúgubre nasceu!

O LUPANAR

Ah! Por que monstruosíssimo motivo
Prenderam para sempre, nesta rede,
Dentro do ângulo diedro da parede,
A alma do homem polígamo e lascivo?!

Este lugar, moços do mundo, vede:
É o grande bebedouro coletivo,
Onde os bandalhos, como um gado vivo,
Todas as noites vêm matar a sede!

É o afrodístico leito do hetaírismo,*
A antecâmara lúbrica do abismo,
Em que é mister que o gênero humano entre,

Quando a promiscuidade aterradora
Matar a última força geradora
E comer o último óvulo do ventre!

ÚLTIMO CREDO

Como ama o homem adúltero o adultério
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro — este ladrão comum
Que arrasta a gente para o cemitério!

É o transcendentalíssimo mistério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um
Que matou Cristo e que matou Tibério!

Creio, como o filósofo mais crente,
Na generalidade decrescente
Com que a substância cósmica evolui...

Creio, perante a evolução imensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular que eu ontem fui!

SOLILÓQUIO DE UM VISIONÁRIO

Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto!

A digestão desse manjar funéreo
Tornado sangue transformou-me o instinto
De humanas impressões visuais que eu sinto,
Nas divinas visões do íncola etéreo!

Vestido de hidrogênio incandescente,
Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais...

Subi talvez às máximas alturas,
Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que inda eu suba mais!

A UM CARNEIRO MORTO

Misericordiosíssimo carneiro
Esquartejado, a maldição de Pio
Décimo caia em teu algoz sombrio
E em todo aquele que for seu herdeiro!

Maldito seja o mercador vadio
Que te vender as carnes por dinheiro,
Pois, tua lã aquece o mundo inteiro
E guarda as carnes dos que estão com frio!

Quando a faca rangeu no teu pescoço,
Ao monstro que espremeu teu sangue grosso
Teus olhos — fontes de perdão — perdoaram!

Oh! tu que no Perdão eu simbolizo,
Se fosses Deus, no Dia do Juízo,
Talvez perdoasses os que te mataram!

VOZES DA MORTE

Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,
Tamarindo de minha desventura,
Tu, com o envelhecimento da nervura,
Eu, com o envelhecimento dos tecidos!

Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos!
E a podridão, meu velho! E essa futura
Ultrafatalidade de ossatura,
A que nos acharemos reduzidos!

Não morrerão, porém, tuas sementes!
E assim, para o Futuro, em diferentes
Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos,

Na multiplicidade dos teus ramos,
Pelo muito que em vida nos amamos,
Depois da morte, inda teremos filhos!

Fonte:
Augusto dos Anjos. Eu e outras poesias.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Antologia Jovem Escritor de Teófilo Ottoni/MG (Crônicas) IV

VINÍCIUS PEREIRA MARTINS
Ensino Médio da Escola Estadual Ione Lewick Cunha Melo

Meu sonho!

Meu sonho é ser milionário; não para poder esbanjar dinheiro, mas para poder dar ao morador de rua, um lar; aquela mãe com seu filhinho no leito de um hospital, certeza de que ele estava finalmente curado.

Mas meu dinheiro não seria só para isso; eu também queria pagar o quanto fosse necessário, para poder tornar as águas dos nossos rios potáveis, próprias para o consumo, para que a tarde, eu pudesse passar às margens dos rios e ver algumas crianças se banhando, de outro lado, velhinhos pescando e contando as famosas “histórias de pescador” isso em pleno centro da cidade.

Meu sonho era fazer da praça central, um grande jardim de rosas, para que nas manhãs de primavera, os transeuntes pudessem aspirar o perfume das flores e se encantarem com os pássaros e as borboletas. Queria que à tarde pudessem todos, parar um pouco no centro, para ouvirem o sabiá com sua infinita música, e o João de Barro, que mesmo construindo sua casa na paineira, não pára com sua melodia. Queria que nas noites de lua cheia, todos apagassem as luzes para contemplarem o luar. Queria eu, que nessa cidade, reinassem o amor e a paz; que não existissem desavenças, que pela manhã, todos pudessem olhar para o céu azul e dizer: “Obrigado Senhor!!

Queria eu ser milionário e fazer essa cidade ser Teófilo Otoni.

Fonte:
3a. Antologia Jovem Escritor. Academia de Letras de Teófilo Ottoni.
Participação dos estudantes do ensino fundamental, médio e superior classificados no 3º Prêmio Jovem Escritor promovido, em 2013, pela Academia de Letras de Teófilo Otoni, União Estudantil de Teófilo Otoni e o Movimento Pró Rio Todos os Santos e Mucuri.

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 1

Clique sobre a imagem para ampliar

Marcelo Spalding (O Desafio de Publicar um Livro)

  
  Publicar um livro ainda é o grande sonho de quem gosta de escrever, mas, para muitos, um tortuoso caminho.

    De forma simples, podemos identificar três processos depois do ponto final em um texto. Primeiro, descobrir a dificuldade que é publicar, especialmente pela primeira vez. Segundo, entender o porquê dessa dificuldade (excesso de escritores, escassez de leitores, mercado com leis capitalistas e alto custo do papel são algumas pistas).

    Terceiro, encontrar uma solução para superar tais entraves.
   
Uma dica importante é não desistir tão fácil. Melhor do que desistir seria tomar a consciência do tamanho da literatura, muito superior a qualquer outra arte, e reescrever mil vezes o texto, melhorando-o cada vez mais antes da publicação apressada. Porque só a literatura compete de forma tão evidente com toda a sua história, uma história milenar. Na mesma prateleira de um romance estará Dom Quixote e Madame Bovary, na mesma estante de um teatro estarão os de Shakespeare e Ibsen. Um conflito, aliás, muito bem representado por Carlos Henrique Schroeder em A Rosa Verde (tema da próxima coluna): “eles continuam ali, rindo, me ameaçando com suas obras grandiosas, criativas, geniais, me reduzindo, intimidando”. Se a intimidação servir de estímulo para a releitura, para a visão crítica do que se produziu ótimo, estamos no caminho certo.

    E então o texto está pronto e relido, aí há três caminhos:

    É evidente que qualquer escritor começará pela primeira, mas raramente terá sucesso. As editoras comerciais são mais comerciais que editoras. E nós não somos (ainda) o Pedro Bial biografando a vida do chefe. Então passaremos para a segunda. Conheço muita gente que começou por um concurso ou financiamento público, pode ser uma alternativa. Mas requer, além de qualidade, muita paciência.

    O terceiro caminho é o mais traiçoeiro e viável. Antes, vale ressaltar que sempre se pagou para publicar (de Augusto dos Anjos a James Redfield). A auto-publicação não é errada e se existe preconceito é pela quantidade de lixo que se publica por conta própria. O que torna traiçoeira esta alternativa são as falsas editoras que mal fazem o papel de gráfica, diagramando e imprimindo o livro para o jovem escritor por um preço muito superior ao que se conseguirá pelas vendas. Especialmente porque, depois do ponto final e do cheiro de papel, há outro problema, a distribuição.

    Mas voltando à publicação, ela não atribui, por si só, qualidade a um texto. A gente pensa que publicar trará reconhecimento, mas não basta ver nossa história eternizada em papel. É preciso ter boas histórias, acima de tudo. E bem contadas. As que forem realmente boas acabarão no papel. Porque o mercado editorial tem lá suas regras, parecidas com as de um banco, uma loja ou um canal de televisão. Ele está atolado no mercado, nas leis liberais deste, e só de vez em quando estica os olhos para a novidade, para a arte. Cabe a nós, iniciantes aventureiros malucos escritores em busca de espaço, aprimorar nossos textos para que se aproximem desta tal arte. E assim sejam percebidos nessas esticadas de olhos do mercado.

    Dicas para quem tem um original pronto e não sabe o que fazer com ele:


        Procure um bom primeiro leitor, de preferência algum escritor, professor ou leitor exigente que aponte mais defeitos do que qualidades;

         Envie o texto para uma revisão, preferencialmente profissional;

        Registre seu texto na Biblioteca Nacional (clique aqui);

         Se você quiser enviar para editoras e concursos, mapeie quais estão adequadas ao perfil do livro. É importante conhecer a editora, pois você tem mais chances de publicar um livro de contos na Cia. das Letras do que na Sextante, por exemplo;

        Prepare um original sem erros de digitação, diagramado com fonte de boa legibilidade e espaço no mínimo um e meio entre as linhas; acrescente antes do texto uma breve carta de apresentação sua e, depois, uma sinopse do livro que seja curta e eficiente;

         Entregue o livro pessoalmente ou, se não for possível, envie pelo correio. E não hesite em enviar para mais de uma editora ao mesmo tempo. Mas se você for aceito por alguma, é no mínimo elegante avisar as demais;

        Se você optar por uma edição paga, vá adiante, mas cuidado, principalmente, com a editora que vai escolher. Tente se informar sobre suas obras anteriores, converse com autores da editora, procure saber o que ela oferece em contrapartida e sua reputação no mercado;

        Se você quiser fazer uma edição do autor, tenha em mente que pode ser importante o código de barras e a ficha catalográfica para a colocação em livrarias e até alguns prêmios literários;

        Cuide, no caso de livros publicados por conta própria, com os custos de impressão em relação a tiragem e com a divulgação e distribuição da obra. Devido ao fotolito, é sempre mais barato o custo unitário do livro para tiragens maiores;

        Não deixe de continuar produzindo e, especialmente, participando da comunidade literária enquanto seu livro não é aceito por nenhuma editora. Infelizmente ter um nome (re)conhecido é tão importante quanto um bom texto.

Fonte:

Raimundo Correia (Poemas Escolhidos)

Anoitecer

Esbraseia o Ocidente na agonia
O sol... Aves em bandos destacados,
Por céus de ouro e púrpura raiados,
Fogem... Fecha-se a pálpebra do dia...

Delineiam-se além da serrania
Os vértices de chamas aureolados,
E em tudo, em torno, esbatem derramados
Uns tons suaves de melancolia.

Um mudo de vapores no ar flutua...
Como uma informe nódoa avulta e cresce
A sombra à proporção que a luz recua.

A natureza apática esmaece...
Pouco a pouco, entre as árvores, a lua
Surge trêmula, trêmula.... Anoitece.

Rima

Rondo pela noite
Imaginando mil coisas
Meditando sozinho
Até a madrugada
Isto tudo é tão contrário
Medo e coragem
Amor e ódio
Revolta e compreensão
Mas nada rima nesse mundo
Apenas eu e você restávamos
Resto do que o mundo já foi
Intensamente, imensamente, eternamente
Até mesmo nós sucumbimos
Reavaliamos nossa condição
Indiferentes, deixamos de rimar
Menos um casal no mundo
Agora ando sozinho
Meditando noite adentro
Imaginando e esquecendo mil e uma coisas
Rondando até a madrugada

Saudade

Aqui outrora retumbaram hinos;
Muito côche real nestas calçadas
E nestas praças, hoje abandonadas,
Rodou por entre os européis mais finos...

Arcos de flores, fachos purpurinos,
Trons festivais, badeiras desfraldadas,
Girândolas, clarins, atropeladas
Legiões de povo, bimbalar de sinos...

Tudo passou! Mas dessas arcarias
Negras, e desses torreões medonhos,
Alguém se assenta sobre as lájeas frias;

E, em torno os olhos úmidos, tristonhos,
Espraia e chora, como Jeremias,
Sobra a Jerusalém de tantos sonhos!.

Horas malditas

Há umas horas na noite,
Horas sem nome e sem luz,
Horas de febre e agonia
Como as horas de Maria
Debruçada aos pés da cruz.

Tredos abortos do tempo,
Cadeias de maldição,
Vertem gêlo nas artérias,
E sufocam, deletérias,
Do poeta a inspiração.

Nessas horas tumulares
Tudo é frio e desolado;
O pensador vacilante
Julga ver a cada instante
Lívido espectro a seu lado.

Quer falar, porém seus lábios
Recusam-lhe obedecer,
Medrosos de ouvir nos ares
Uma voz de outros lugares
Que venha os interromper.

Se abre a janela, as planícies
Vê de aspecto aterrador;
As plantas frias, torcidas,
Parece que esmorecidas
Pedem socorro ao Senhor.

As charnecas lamacentas
Exalam podres mismas;
E os fogos fosforescentes
Passam rápidos, frementes
Como um bando de fantasmas.

E a razão vacila e treme,
Coalha-se o sangue nas veias,
Mas as horas sonolentas
Vão-se arrastando cruentas
Ao som das brônzeas cadeias.

Oh! essas tremendas
Tenho-as sentido demais!
E os males que me causaram,
Os traços que me deixaram
Não se apagarão jamais!

Névoas

Na hora em que as névoas se estendem nos ares,
Que choram nos mares as ondas azuis,
E a lua cercada de pálida chama
Nas selvas derrama seu pranto de luz;
Eu vi... Maravilha! Prodígio inefável!

Um vulto adorável, primor dos primores,
Sorrindo às estrelas, no céu resvalando,
Nas vagas boiando de tênues vapores!
Nos membros divinos, mais alvos que a neve,
Que os astros, de leve, clareiam formosos,
Nas tranças douradas, nos lábios risonhos
Os gênios e os sonhos brincavam medrosos!

Princesa das névoas! Milagre das sombras!
Das róseas alfombras, dos paços sidéreos.
Acaso rolaste, dos anjos nos braços,
Dos vastos espaços aos mantos etéreos?

Os prantos do inverno congelam-te a fronte,
Os combros do monte se cobrem de brumas,
E queda repousas num mar de neblina
Qual pérola fina num leito de espumas!

Nas nuas espáduas, dos astros algentes,
O sopro não sentes raivoso passar?
Não vês que se esvaem miragens tão belas?
A luz das estrelas não vês se apagar?
Ai! vem que nas nuvens te mata o desejo
De um férvido beijo gozares em vão!
Os astros sem alma se cansam de olhar-te,
Nem podem amar-te, celeste visão!

E as auras passavam e as névoas tremiam,
E os gênios corriam no espaço a cantar,
Mas ela dormia, gentil, peregrina
Qual pálida ondina nas águas do mar!
Estátua sublime, mas triste, sem vida,
Sem voz envolvida no hibérneo sudário,
Verás, se me ouvires, trocado por flores,
Por palmas de amores teu véu mortuário!

Ah! vem, minh'alma! Teus loiros cabelos!
Teus braços tão belos, teus seios tão lindos,
Eu quero aquecê-los no peito incendido...
Contar-te ao ouvido meus sonhos infindos!

Assim eu falava, nos amplos desertos,
Seguindo os incertos lampejos da luz,
Na hora em que as névoas se estendem nos ares
E choram nos mares as ondas azuis.

As brisas d'aurora ligeiras corriam,
As flores sorriam nas verdes campinas,
Ergueram-se as aves do vento à bafagem,
E a pálida imagem desfez-se em neblinas!

Sextilhas

Amo o cantor solitário
Que chora no campanário
Do mosteiro abandonado,
E a trepadeira espinhosa
Que se abraça caprichosa
À forca do condenado

Amo os noturnos lampírios
Que giram, errantes círios,
Sobre o chão dos cemitérios,
E ao clarão das tredas luzes
Fazem destacar as cruzes
De seu fundo de mistérios

Amo as tímidas aranhas
Que lacerando as entranhas
Fabricam dourados fios
E com seus leves tecidos
Dos tugúrios esquecidos
Cobrem os muros sombrios

Amo a lagarta que dorme,
Nojenta, lânguida, informe,
Por entre as ervas rasteiras
E as rãs que os pauis habitam
E os moluscos que palpitam
Sob as vagas altaneiras

Amo-os, porque todo o mundo
Lhes vota um ódio profundo,
Despreza-os sem compaixão
Porque todos desconhecem
As dores que eles padecem
No meio da criação.

Biografia em
http://singrandohorizontes.blogspot.com.br/2009/05/raimundo-correia-13-maio-1859-13.html

Mais poesias de Raimundo em
http://singrandohorizontes.blogspot.com.br/2009/05/raimundo-correia-teia-de-poesias.html


Fonte:
Casa do Bruxo

Marcelo Spalding (Curso de Criação Literária Online)

Curso de Criação Literária Online

O curso de Criação Literária Online traz conceitos e técnicas de criação literária para aprimorar o texto de quem aprecia literatura ou quer ser escritor. O curso é indicado tanto para quem é escritor e quer aprimorar o seu ofício com técnicas e teorias quanto para quem quer se iniciar na vida literária, pois a troca de textos com o professor permitirá um olhar mais técnico e crítico de seu trabalho.

• Curso a distância: faça de onde e quando quiser pela internet;
• Atividades lidas e comentadas pessoalmente pelo Prof. Dr. Marcelo Spalding;
• 15 aulas + 18 conceitos-chave + 4 desafios de escrita criativa;
• Todas as aulas já publicadas no início do curso, dando liberdade a você;
• A oficina literária online com maior quantidade de material exclusivo;
• Mais de 200 alunos só nos primeiros dois anos do curso;
• Início imediato.

Duração: 3 meses (30 horas/aula)
Investimento: R$ 180,00 para o curso todo




Conteúdos do Curso de Criação Literária

Aulas
01: O que é um bom texto literário?
02: A estética do texto literário: pecados e virtudes
03: Planejando uma boa história
04: Os elementos da narrativa
05: Personagem
06: O diálogo e a linguagem na literatura
07: O narrador
08: Espaço e tempo na narrativa
09: Criando cenas: mostrar e não dizer
10: O começo e o fim de uma história
11: Escrevendo narrativas curtas: o conto e a crônica
12: Escrevendo narrativas longas: o romance e a novela

Aulas extras/especiais incluídas no curso
> Tópicos de Língua Portuguesa
> O desafio de publicar
> Literatura e novas tecnologias

Conceitos abordados pelo curso
Catarse, mimese, desmedida, verossimilhança, subtexto, concisão, clichê, rima pobre e cacofonia, intertextualidade, fluxo de consciência, polifonia, metáfora, metonímia, sinestesia, assonância, aliteração, personificação, hipérbole, outras figuras de linguagem.



Sobre o professor

O grande diferencial dos nossos cursos é o envolvimento pessoal de um professor qualificado. Este professor não apenas elaborou o material do curso com exclusividade para as plataformas digitais como lê os textos dos alunos e responde pessoalmente a seus emails.
Professor do curso Marcelo Spalding é jornalista, professor e escritor, com 6 livros individuais publicados. Doutor em Letras pela UFRGS, atua como professor universitário, editor-executivo da Editora UniRitter e coordenador do Pós Graduação em Produção e Revisão Textual da UniRitter. É o idealizador do Movimento de Literatura Digital. Mais informações em www.marcelospalding.com.

Machado de Assis (Aurora sem Dia)

Naquele tempo contava Luís Tinoco vinte e um anos. Era um rapaz de estatura meã, olhos vivos, cabelos em desordem, língua inesgotável e paixões impetuosas. Exercia um modesto emprego no foro, donde tirava o parco sustento, e morava com o padrinho cujos meios de subsistência consistiam no ordenado da sua aposentadoria. Tinoco estimava o velho Anastácio e este tinha ao afilhado igual afeição.

Luís Tinoco possuía a convicção de que estava fadado para grandes destinos, e foi esse durante muito tempo o maior obstáculo da sua existência. No tempo em que o Dr. Lemos o conheceu, começava arder-lhe a chama poética. Não se sabe como começou aquilo. Naturalmente os louros alheios entraram a tirar-lhe o sono. O certo é que um dia de manhã acordou Luís Tinoco escritor e poeta; a inspiração, flor abotoada ainda na véspera, amanheceu pomposa e viçosa. O rapaz atirou-se ao papel com ardor e perseverança, e entre as seis horas e as nove, quando o foram chamar para almoçar, tinha produzido um soneto, cujo principal defeito era ter cinco versos com sílabas de mais e outros cinco com sílabas de menos. Tinoco levou a produção ao Correio Mercantil, que a publicou entre os a pedido.

Mal dormida, entremeada de sonhos interruptos, de sobressaltos e ânsias, foi a noite que precedeu a publicação. A aurora raiou enfim, e Luís Tinoco, apesar de pouco madrugador, levantou-se com o sol e foi ler o soneto impresso. Nenhuma mãe contemplou o filho recém nascido com mais amor do que o rapaz leu e releu a produção poética, aliás decorada desde a véspera. Afigurou-se-lhe que todos os leitores do Correio Mercantil estavam fazendo o mesmo; e que cada um admirava a recente revelação literária, indagando de quem seria esse nome até então desconhecido.

Não dormiu sobre os louros imaginários. Daí a dois dias, nova composição, e desta vez saiu uma longa ode sentimental em que o poeta se queixava à lua do desprezo em que o deixara a amada, e já entrevia no futuro a morte melancólica de Gilbert. Não podendo fazer despesas, alcançou, por intermédio de um amigo, que a poesia fosse impressa de graça, motivo este que retardou a publicação por alguns dias. Luís Tinoco tragou a custo a demora, e não sei se chegou a suspeitar de inveja os redatores do Correio Mercantil.

A poesia saiu enfim; e tal contentamento produziu no poeta que foi logo fazer ao padrinho uma grande revelação.

– Leu hoje o Correio Mercantil, meu padrinho? perguntou ele.

– Homem, tu sabes que eu só lia os jornais no tempo em que era empregado efetivo.

Desde que me aposentei não li mais os periódicos...

– Pois é pena! disse Tinoco com ar frio; queria que me dissesse o que pensa de uns versos que lá vêm.

– E de mais a mais versos! Os jornais já não falam de política? No meu tempo não falavam de outra coisa.

– Falam de política e publicam versos, porque ambas as coisas tem entrada na imprensa.

Quer ler os versos? – Dá cá.

– Aqui estão.

O poeta puxou da algibeira o Correio Mercantil, e o velho Anastácio entrou a ler para si a obra do afilhado. Com os olhos pregados no padrinho, Luís Tinoco parecia querer adivinhar as impressões que produziam nele os seus elevados conceitos, metrificados com todas as liberdades possíveis do consoante. Anastácio acabou de ler os versos e fez com a boca um gesto de enfado.

– Isto não tem graça, disse ele ao afilhado estupefato; que diabo tem a lua com a indiferença dessa moça, e a que vem aqui a morte deste estrangeiro? Luís Tinoco teve vontade de descompor o padrinho, mas limitou-se a atirar os cabelos para trás e a dizer com supremo desdém: – São coisas de poesia que nem todos entendem, esses versos sem graça, são meus.

– Teus? perguntou Anastácio no cúmulo do espanto.

– Sim, senhor.

– Pois tu fazes versos? – Assim dizem.

– Mas quem te ensinou a fazer versos? – Isto não se aprende; traz-se do berço.

Anastácio leu outra vez os versos, e só então reparou na assinatura do afilhado. Não havia que duvidar: o rapaz dera em poeta. Para o velho aposentado era isto uma grande desgraça. Esse, ligava à ideia de poeta a ideia de mendicidade.

Tinha-lhe pintado Camões e Bocage, que eram os nomes literários que ele conhecia, como dois improvisadores de esquina, espeitorando sonetos em troca de algumas moedas, dormindo nos adros das igrejas e comendo nas cocheiras das casas grandes. Quando soube que o seu querido Luís estava atacado da terrível moléstia, Anastácio ficou triste, e foi nessa ocasião que se encontrou com o Dr. Lemos e lhe deu notícia da gravíssima situação do afilhado.

– Dou-lhe parte de que o Luís está poeta.

– Sim? perguntou-lhe o Dr. Lemos. E que tal lhe saiu o poeta? – Não me importa se saiu mau ou bom. O que sei é que é a maior desgraça que lhe podia acontecer, porque isto de poesia não dá nada de si. Tenho medo que deixe o emprego, e fique aí pelas esquinas a falar à lua, cercado de moleques.

O Dr. Lemos tranquilizou o homem, dizendo-lhe que os poetas não eram esses vadios que ele imaginava; mostrou-lhe que a poesia não era obstáculo para andar como os outros , para ser deputado, ministro ou diplomata.

– No entanto, disse o Dr. Lemos, desejarei falar ao Luís; quero ver o que ele tem feito, porque como eu também fui outrora um pouco versejador, posso saber se o rapaz dá de si.

Luís Tinoco foi ter com ele; levou-lhe o soneto e a ode impressos, e mais algumas produções não publicadas. Estas orçavam pela ode ou pelo soneto. Imagens safadas, expressões comuns, frouxo alento e nenhuma arte; apesar de tudo isso, havia de quando em quando algum lampejo que indicava da parte do neófito propensão para o mister; podia ser ao cabo de algum tempo um excelente trovador de salas.

O Dr. Lemos disse-lhe com franqueza, que a poesia era uma arte difícil e que pedia longo estudo; mas que, a querer cultivá-la a todo o transe, devia ouvir alguns conselhos necessários.

– Sim, respondeu ele, pode lembrar alguma coisa; eu não me nego a aceitar-lhe o que me parecer bom, tanto mais que eu fiz estes versos muito à pressa e não tive ocasião de os emendar.

– Não me parecem bons estes versos, disse o Dr. Lemos; poderia rasgá-los e estudar antes algum tempo.

Não é possível descrever o gesto de soberbo desdém com que Luís Tinoco arrancou os versos ao doutor e lhe disse: – Os seus conselhos valem tanto como a opinião de meu padrinho. Poesia não se aprende; traz-se do berço. Eu não dou atenção a invejosos. Se os versos não fossem bons, o Mercantil não os publicava.

E saiu.

Daí em diante foi impossível ter-lhe mão.

Tinoco entrou a escrever como quem se despedia da vida. Os jornais andavam cheios de produções suas, umas tristes, outras alegres, não daquela tristeza nem daquela alegria que vem diretamente do coração, mas de uma tristeza que fazia sorrir, e de uma alegria que fazia bocejar.

Luís Tinoco confessava singelamente ao mundo que fora invadido do ceticismo byroniano, que tragara até às fezes a taça do infortúnio, e que para ele a vida tinha escrito na porta a inscrição dantesca. A inscrição era citada com as próprias palavras do poeta, sem que aliás Luís Tinoco o tivesse lido nunca. Ele respingava nas alheias produções uma coleção de alusões e nomes literários, com que fazia as despesas de sua erudição, e não lhe era preciso, por exemplo, ter lido Shakespeare para falar do to be or not to be, do balcão de Julieta e das torturas de Otelo. Tinha a respeito de biografias ilustres noções extremamente singulares. Uma vez, agastando-se com a sua amada, - pessoa que ainda não existia, - aconteceu-lhe dizer que o clima fluminense podia produzir monstros daquela espécie, do mesmo modo que o sol italiano dourara os cabelos da menina Aspásia. Lera casualmente alguns dos salmos do padre Caldas, e achou-os soporíferos; falava mais benevolentamente da Morte de Lindóia, nome que dava ao poema de J. Basílio da gama, de que só conhecia quatro versos.

Ao cabo de cinco meses tinha Luís Tinoco produzido uma quantia razoável de versos, e podia, mediante muitos claros e páginas em branco, dar um volume de cento e oitenta páginas. A ideia de imprimir um livro sorriu-lhe; daí a pouco era raro passar por uma loja sem ver o mostrador de protesto assim concebido.

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

Fagundes Varela (Cântico do Calvário)

(À memória de meu Filho morto a 11 de dezembro de 1863)

Eras na vida a pomba predileta
Que sobre um mar de angústias conduzia
O ramo da esperança. Eras a estrela
Que entre as névoas do inverno cintilava
Apontando o caminho ao pegureiro.

Eras a messe de um dourado estio.
Eras o idílio de um amor sublime.
Eras a glória, a inspiração, a pátria,
O porvir de teu pai! - Ah! no entanto,
Pomba, - varou-te a flecha do destino!

Astro, - engoliu-te o temporal do norte!
Teto, - caíste!- Crença, já não vives!
Correi, correi, oh! lágrimas saudosas,
Legado acerbo da ventura extinta,
Dúbios archotes que a tremer clareiam
A lousa fria de um sonhar que é morto!

Correi! um dia vos verei mais belas
Que os diamantes de Ofir e de Golconda
Fulgurar na coroa de martírios
Que me circunda a fronte cismadora!
São mortos para mim da noite os fachos,
Mas Deus vos faz brilhar, lágrimas santas,
E à vossa luz caminharei nos ermos!

Estrelas do sofrer, gotas de mágoa,
Brando orvalho do céu! Sede benditas!
Oh! filho de minh'alma! Última rosa
Que neste solo ingrato vicejava!
Minha esperança amargamente doce!

Quando as garças vierem do ocidente
Buscando um novo clima onde pausarem,
Não mais te embalarei sobre os joelhos,
Nem de teus olhos no cerúleo brilho
Acharei um consolo a meus tormentos!

Não mais invocarei a musa errante
Nesses retiros onde cada folha
Era um polido espelho de esmeralda
Que refletia os fugitivos quadros
Dos suspirados tempos que se foram!

Não mais perdido em vaporosas cismas
Escutarei ao pôr-do-sol, nas serras,
Vibrar a trompa sonorosa e leda
Do caçador que aos lares se recolhe!
Não mais! A areia tem corrido, e o livro
De minha infanda história está completo!

Pouco tenho de andar! Um passo ainda
E o fruto de meus dias, negro, podre,
Do galho eivado rolará por terra!
Ainda um treno, e o vendaval sem freio
Ao soprar quebrará a última fibra
Da lira infausta que nas mãos sustenho!

Tornei-me o eco das tristezas todas
Que entre os homens achei! o lago escuro
Onde o clarão dos fogos da tormenta
Miram-se as larvas fúnebres do estrago!
Por toda a parte em que arrastei meu manto
Deixei um traço fundo de agonias!...

Oh! quantas horas não gastei, sentado
Sobre as costas bravias do Oceano,
Esperando que a vida se esvaísse
Como um floco de espuma, ou como o friso
Que deixa n'água o lenha do barqueiro!

Quantos momentos de loucura e febre
Não consumi perdido nos desertos,
Escutando os rumores das florestas,
E procurando nessas vozes torvas
Distinguir o meu cântico de morte?

Quantas noites de angústias e delírios
Não velei, entre as sombras espreitando
A passagem veloz do gênio horrendo
Que o mundo abate ao galopar infrene
Do selvagem corcel!... E tudo embalde!

A vida parecia ardente e doida
Agarrar-se a meu ser!... E tu tão jovem,
Tão puro ainda, ainda n'alvorada,
Ave banhada em mares de esperança,
Rosa em botão, crisálida entre luzes,
Foste o escolhido na tremenda ceifa!

Ah! quando a vez primeira em meus cabelos
Senti bater teu hálito suave:
Quando em meus braços te cerrei, ouvindo
Pulsar-te o coração divino ainda;
Quando fitei teus olhos sossegados,
Abismos de inocência e de candura,
E baixo e a medo murmurei: meu filho!

Meu filho! Frase imensa, inexplicável,
Grata como o chorar de Madalena
Aos pés do Redentor... ah! pelas fibras
Senti rugir o vento incendiado
Desse amor infinito que eterniza
O consórcio dos orbes que se enredam
Dos mistérios do ser na teia augusta
Que prende o céu à terra e a terra aos anjos!

Que se expande em torrentes inefáveis
Do seio imaculado de Maria!
Cegou-me tanta luz! Errei, fui homem!
E de meu erro a punição cruenta
Na mesma glória que elevou-me aos astros,
Chorando aos pés da cruz, hoje padeço!

O som da orquestra, o retumbar dos bronzes,
A voz mentida de rafeiros bardos,
Torpe alegria que circunda os berços
Quando a opulência doura-lhes as bordas,
Não te saudaram ao sorrir primeiro,
Clícia mimosa rebentada à sombra!

Mas, ah! se pompas, esplendor faltaram-te,
Tiveste mais que os príncipes da terra!
Templos, altares de afeição sem termos!
Mundos de sentimento e de magia!
Cantos ditados pelo próprio Deus!

Oh! quantos reis que a humanidade aviltam,
E o gênio esmagam dos soberbos tronos,
Trocariam a púrpura romana
Por um verso, uma nota, um som apenas
Dos fecundos poemas que inspiraste!
Que belos sonhos! Que ilusões benditas!

Do cantor infeliz lançaste à vida,
Arco-íris de amor! luz da aliança,
Calma e fulgente em meio da tormenta!
Do exílio escuro a cítara chorosa
Surgiu de novo e às virações errantes

Lançou dilúvios de harmonia! O gozo
Ao pranto sucedeu. As férreas horas
Em desejos alados se mudaram.
Noites fugiam, madrugadas vinham,
Mas sepultado num prazer profundo
Não te deixava o berço descuidoso,
Nem de teu rosto meu olhar tirava,
Nem de outros sonhos que dos teus vivia!

Como eras lindo! Nas rosadas faces
Tinhas ainda o tépido vestígio
Dos beijos divinais, - nos olhos langues
Brilhava o brando raio que acendera
A bênção do Senhor quando o deixaste!

Sobre teu corpo a chusma dos anjinhos,
Filhos do éter e da luz, voavam,
Riam-se alegres, das caçoilas níveas
Celeste aroma te vertendo ao corpo!

E eu dizia comigo:- teu destino
Será mais belo que o cantar das fadas
Que dançam no arrebol, - mais triunfante
Que o sol nascente derribando ao nada
Muralhas de negrume!... Irás tão alto
Como o pássaro-rei do Novo Mundo!

Ai! doido sonho!... Uma estação passou-se
E tantas glórias, tão risonhos planos
Desfizeram-se em pó! O gênio escuro
Abrasou com seu facho ensangüentado
Meus soberbos castelos. A desgraça
Sentou-se em meu solar, e a soberana
Dos sinistros impérios de além-mundo
Com seu dedo real selou-te a fronte!

Inda te vejo pelas noites minhas,
Em meus dias sem luz vejo-te ainda,
Creio-te vivo, e morto te pranteio!...
Ouço o tanger monótono dos sinos,
E cada vibração contar parece
As ilusões que murcham-se contigo!

Cheias de frases pueris, estultas,
O linho mortuário que retalham
Para envolver teu corpo! Vejo esparsas
Saudades e perpétuas, sinto o aroma
Do incenso das igrejas, ouço os cantos
Dos ministros de Deus que me repetem
Que não és mais da terra!... E choro embalde.

Mas não! Tu dormes no infinito seio
Do Criador dos seres! Tu me falas
Na voz dos ventos, no chorar das aves,
Talvez das ondas no respiro flébil!
Tu me contemplas lá do céu, quem sabe?
No vulto solitário de uma estrela.

E são teus raios que meu estro aquecem!
Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho!
Brilha e fulgura no azulado manto,
Mas não te arrojes, lágrima da noite,
Nas ondas nebulosas do ocidente!

Brilha e fulgura! Quando a morte fria
Sobre mim sacudir o pó das asas,
Escada de Jacó serão teus raios
Por onde asinha subirá minh'alma.

Biografia do Poeta em
http://singrandohorizontes.blogspot.com.br/2009/03/fagundes-varela-1841-1875.html

Mais poesias de Fagundes Varela
http://singrandohorizontes.blogspot.com.br/2009/03/fagundes-varela-teia-de-poesias.html


Fonte:
Fagundes Varela. Cantos e fantasias e outros cantos. Ed. Martins Fontes.

domingo, 6 de abril de 2014

Antologia Jovem Escritor de Teófilo Ottoni/MG (Crônicas) III

GUSTAVO LORENTZ RODRIGUES FIGUEIREDO
Ensino Médio da Escola Particular Santo Agostinho

A beleza de antigamente


É bem clara a maneira que nos contam de como a natureza há algum  tempo era retratada, sempre mais detalhada e completa. Na nossa cidade viviam várias preguiças, um bicho muito estranho, que anda muito devagar e tem unhas gigantes, mas se formos olhar bem de perto são bem interessantes e muito bonitas também.

Mas agora o que houve? Ninguém mais as vê, e muito, mas muito raramente nos dão a cara para se ver, é realmente muito complicado o que nós mesmos causamos ao lugar em que vivemos, destruímos nossa própria casa, sem nem ao menos pensar duas vezes no que estamos realmente fazendo, e que estamos prejudicando a nós mesmos, destruímos nosso planeta.

Temos de mudar nossos costumes e passar a pensar não somente em nós mesmos, mas sim nos outros, e de como seria se todos cuidássemos uns dos outros, como nossas vidas melhorariam. E assim poderíamos viver num mundo cheio de vida, com a natureza a nosso favor.

A cidade se transformaria, teria mais vida, com grandes árvores, várias flores e de toda as cores, e muitos frutos, uma beleza natural tão bonita que está sendo desprezada e que não é cuidada. Um lugar melhor para todos. Seria aquela mesma cidade das histórias que as nossas avós e avôs nos contavam quando éramos crianças.

E assim, se vão todas as esperanças de uma vida melhor ao se olhar para a atual situação da nossa cidade, mas infelizmente não é somente aqui que isso acontece, em todos os lugares há um pouco disso, mas mudará em breve, e tudo melhorará, como numa história para criança.

Fonte:
3a. Antologia Jovem Escritor. Academia de Letras de Teófilo Ottoni.
Participação dos estudantes do ensino fundamental, médio e superior classificados no 3º Prêmio Jovem Escritor promovido, em 2013, pela Academia de Letras de Teófilo Otoni, União Estudantil de Teófilo Otoni e o Movimento Pró Rio Todos os Santos e Mucuri.

Helenice Sardenberg (Poemas Escolhidos)

Helenice é de Niterói/RJ

ARTE

Arte é conversar com a vida
Escutar os anjos
Não esconder as emoções
Deixar-se levar pela paixão

Arte é não duvidar do amor
É crer que o impossível é possível
Que a natureza é sábia
E que dela surge o inusitado, o imponderável

Arte é fazer da vida poesia
Espraiar-se em versos
Estrofes
Com rimas, sem rimas

Arte é brincar com prosa
É brindar-se em risos
É contagiar-se de alegria
É se deixar levar...

BAILARINA

Sola de sapato,
meia arrastão,
luva no bolso,
gravata no chão,
pura loucura...
Só confusão!
Eu bailarina,
você cafetão!
Vamos à festa?
Mais confusão!
Você me vigia, controla, assedia...
Quero bagunça, dança, alegria...
Você me esvazia, não me sacia...
Eu, bailarina, dançando sozinha...
No meio da rua,
olhando pra lua,
no meio do mundo,
é só solidão!

BRINDO A VIDA

Brindo a vida, mais que tudo
Brindo o amor, sua plenitude
Busco na realidade
A concretização dos sonhos
E sonho com novas possibilidades
Brindo as memórias
Que me constituíram
Brindo a lua, o sol
As forças da natureza
Entendo as dificuldades cotidianas
Supero-as acreditando no amanhã
Vislumbro novos amanheceres

ESSÊNCIA

Me descubro um ser sensível
Em eterno estado de apaixonamento
Desabrochando em emoções
Me descubro um ser capaz
De ver além da aparência
Desvelando suavemente a essência
A coisa em si
Que se esconde e que se revela
Às vezes escapa
E nada nunca é demais…

Amor de outono
Amor de outono
Amor que acarinha
Que coloca no colo
Que aconchega
E que de mansinho
Aquece o coração

AMOR DE OUTONO

Amor que escuta
Que entende os silêncios
Que devolve com palavras
Afeto e emoção

Amor de outono
Amor pleno de poesia
Que se espraia devagarinho
Preenchendo toda e qualquer lacuna
Que exista no coração

Amor de outono
Amor sábio
Que celebra
Que se desenrola
Se desenvolve
Pronto pra próxima estação

NAVEGANDO

Navego em seu corpo
Mergulho nos seus sonhos
Viajo em seus beijos
É tanto desejo
Sou feliz por tê-lo comigo
Sentindo o seu hálito banhado em frescor
Suas mãos percorrendo suavemente meu rosto
Sorriso que se revela
Olhares secretos
Repletos de segredos
Confidências
Juras e promessas de amor
Navego em seu corpo
Há a magia do encontro
Sou toda sua
Sem medo
Encontro de almas
Contato sublime
Eterno apaixonamento
Momento sagrado
Só nós dois: amor!

PROMESSA

Da terra seca e árida brota o amor
A lua inconteste reflete o desejo dos amantes
Corações densos de paixão
Busca intensa pelo prazer
Esperança no amanhã

Os amantes choram, pois há plenitude
Suas lágrimas são como gotas de chuva
Incessantes, lavam a alma
Limpam o terreno aberto à sedução
Extrapolam o limite do agora, amor-paixão!

PALAVRAS

Palavras ditas
Não ditas
Malditas
Palavras que se debruçam em minha garganta
Palavras silenciadas
Sofridas
Gritos
Sussurros
Feridas
Quero curá-las
Quero vencê-las!

NA ESQUINA

Na esquina
Na dobra
Na curva
Perímetro urbano
Limites do coração
Enganado, enganando a si próprio
Mundano
Coração desarrumado
Que faz pirraça
E que deixa espraiar a melancolia
Coração que se perdeu
Na curva
Na dobra
Na esquina

Fonte:
http://www.recantodasletras.com.br/poesias/4648186

Artur Eduardo Benevides (Dos mortos e de seus veleiros invisíveis)

I

Os que vão morrer
não sabem o que é a morte.
Só os mortos são grandes. E fortes.
Artifícios não têm. Ou sarabandas.
E imóveis estão, em finíssimas varandas,
atrás dos vitrais de sua solidão.
O seu ficar-em-si
é como um espelho entrando num espelho
ou os reflexos da tarde num rubi.
Ninguém os turbará. Eles já são
iguais a velas, à noite, nos conventos,
ou a imóveis e puros pensamentos
ao brilho estelar das estações.
De seu sono nos vêm. Na realidade
são semáforos quase evanescentes
da verdade.
E todos estão
bem mais em nossa dor do que no chão.

II

Livres de mágoas ou de precisões,
ou do incessante ulular das multidões,
os mortos são iguais aos talismãs
ou aos ventos gemendo nas manhãs
sem saber que gemem.
Mesmo assim se cumprem. E vão
pelos entardeceres da canção
pondo o seu olhar que tudo diz
ao pé de um invisível chafariz.
E alguns são belos
como um vago cantar que não cantamos.
E se os lembramos,
há uma chuva lá fora, mesmo que não chova,
e tudo, semelhando alguém que nos socorra,
busca levar-nos aos seus mediterrâneos.

III

Os mortos nada pedem, mas pesam no silêncio
de sua ausência e pura transcendência.
Em seu vasto doer e solidão,
são versos exaustos da canção de velha serenata.
Em sua face inexata
tudo é exílio qual coche a se afastar
ao final de delírios,
tentando retornar.
Mas, para quê? Para onde?
O que lhes pertencia já em nós se esconde.
E em todas as salas do nosso infortúnio
crescem plenilúnios.

IV

Os mortos preservam-se. E prosseguem
com a força do frio em largos icebergs.
Seus gestos já desaconteceram,
mas alguns, de tão jovens, reamanheceram
como romãs nas árvores de Deus.
Outros, viraram camafeus
que senhoras carregam pregados as vestidos.
Muitos, contudo, permanecem esquecidos.
E a morte é noturna. É uma invisível urna
de cristal.
Ou um solo de órgão
em catedral.
E os mortos escutam sem medo
as chaconas que cobrem os dobres e segredos.
Alguns, às vezes, passam, em perdição,
e numa asa de canção
sorriem.

V

Ai, na morte
surpresas não há: só grandeza.
Acima do tempo ou das navegações,
ela alimenta a noite
em nossa dimensão.
É igual às crianças que jamais nasceram
ou não chegaram nunca com seu riso.
E num vôo, na tarde, se perderam
e só retomarão no Grande Juízo.
Virão tristes, alegres, ou caladas?
Ou ficarão para sempre encantadas?
Mas, alguns saem da paz dos ataúdes
seguindo os sons de estranhos alaúdes
que procuram endormir profundamente
as almas já cansadas.

VI

Eles não necessitam de relógios,
ou dos ruídos das solenidades.
São simples e belos, iguais à irrealidade
de seu silêncio sempre tão real.
Mesmo alados, estão paralisados
ante córregos imóveis a olhar
o Mar do mar.
E por eles choraram assírios e hebreus,
macedônios, caldeus e babilônios,
as mulheres de Esparta e os lutadores jônios,
ou as violas sensuais de Andaluzia
no final do dia.
Ou as cornamusas nas noites de Sião.
E tudo é solidão. Tudo são fráguas.
E o cadáver de Ofélia sobre as águas?
Os escravos de Jó? Ou os que em Jericó
feriram as cabeças junto aos muros
em momentos terríveis ou escuros?
E enquanto atravessamos lonjuras e fronteiras,
as chamas se apagam, lentas, nas fogueiras.

VII

Os mortos, nas camarinhas de sua hospedaria,
sustêm a ponte pênsil de longa travessia,
amarrando-a em réquiens e em gestos piedosos
daqueles que, au delà, esperam todo dia
seu nunca regressar.
E a verdade da morte, tão única e púnica?
Às vezes, é mais terrível do que um grito nas muralhas,
ao trágico esplendor de chamas e batalhas.
E tudo em silêncio e abandono cai,
nas tardes de Avignon, nas ruas de Xangai,
em terras de Espanha e areias de Portugal,
na Serra da Aratanha e no Canal
da Mancha. Ou em Bruxelas.
E o vento, soturno, bate nas janelas
enquanto a morte, sempre insaciada,
sorve o néctar que molha
os ramos, em alvoradas.
Oh, os mortos, nas arcas da história,
ou na obscura nudez de sua vã memória!
Quantos sonetos e epitáfios
gravados a seus pés!
De seu grande convés eles nos olham
a barlavento e a sotavento, além.
E continuam a olhar, às vezes com desdém,
e com tal força de convencimento,
que amadurecem qual grave pensamento
ante a visão do mar.
Tudo neles é um túnel
circular. Ou uma árvore
sem água e sem ar.
À luz de suas lanternas
a eternidade hiberna.
E é nossa missão cantar seu cantochão.
Ou mastigar, em nossa consciência,
as amêndoas amargas ou o sal
de sua inexistência.

VIII

Os mortos
(os únicos seres que não envelhecem)
chorados não sejam, mas amados.
Cada dia devemos imaginar
que eles de repente podem retornar.
E são iguais a borboletas no chifre de um bisão
ou a esquilos a saltar, nas sombras, sobre a vida,
enquanto os santos e os monges rezam
e o inverno aproxima-se fatal
como em despedida.

IX

Praticamos lágrimas.
Somos hóspedes
do fluir de vãs recordações.
E solitudes sentam-se em nós
e alteram nossa voz
como o vento da terra se altera nos verões.
Mas tudo, afinal, é um infindo
morrer. Um que fazer
sem fim. Ou um trampolim
de nada.
Não há sol entre os mortos.
Só lâmpadas de azeite
entre as brumas e os ócios
de seus vagos portos.
E as cores são baças. Ou lânguidas. E há
entre portões cinzentos uma indizível
paz.
Muito mais do que nós eles estão
completamente sós.
E não há notícias de novas madrugadas.
As portas estão entrecerradas.
E pelas frestas percebe-se lá fora
a triste beleza de sua imóvel aurora.

Fonte:
http://www.jornaldepoesia.jor.br/artur1.html#esperanca