sábado, 22 de julho de 2023

Daniel Maurício (Poética) 56

 

Sílvio Romero (O Preguiçoso)

(Folclore do Pernambuco)

Havia um homem muito preguiçoso que nada fazia. 

Um dia veio um velho e pediu-lhe rancho em casa; o velho cansou-se de lhe bater na porta e nada do homem se animar a levantar-se para abrir a porta. Ao final, desenganado, o velho pediu à dona da casa que lhe guardasse ali uma toalha que levava, mas que a não abrisse. 

O velho seguiu seu caminho. A mulher guardou a toalha, mas teve curiosidade e abriu-a. Apareceu logo uma grande mesa com tudo quanto é de bom e melhor de que a mulher se regalou. Ela escondeu a toalha, e, quando o velho veio procurar a toalha, a mulher deu-lhe outra em vez da sua. 

Chegando o velho em sua casa, mandou a toalha se estender e a toalha quieta. O velho calou-se e no outro dia foi à casa do preguiçoso e deixou lá ficar uma cabra pedindo-lhe que a guardassem até a sua volta, mas que tivessem o cuidado de não lhe dizer: «Berra, cabra!» 

O velho retirou-se. 

A mulher foi e disse: «Ora, isto é mistério; aqui temos novidade! Berra, cabra!» 

Entrou a cabra a berrar e começou a cair muito dinheiro de ouro e prata da boca da cabra. Logo que a mulher viu isto, trocou a cabra por outra, e quando o velho veio saiu enganado. 

Chegando em casa mandou a cabra berrar, e nada, e nada! Percebeu que estava enganado e calou-se. 

Chegou por fim um trabalhador do velho e lhe pediu ao amo o seu jornal. Respondeu o velho: «Meu filho, eu não tenho, mais dinheiro; mas dou-te um porrete, que aqui tenho, que te há de fazer feliz.»

O rapaz recebeu o porrete e seguiu. Foi ter justamente na casa do preguiçoso. Pediu rancho e deu o porrete para guardar. 

A mulher trocou o porrete por outro, e no dia seguinte o moço disse: «Dê-me o meu porrete, que me quero ir.» 

porrete entrou a dar bordoadas de criar bichos no marido e na mulher. Puseram-se eles a gritar, e o rapaz ficou admirado de ver aquela virtude do porrete.

A mulher aflita gritou: «Meu senhor, mande seu porrete parar, que eu lhe dou o que me deu o velho para guardar. 

O moço disse: «Para, porrete, e tudo pra cá!» 

porrete parou, e a mulher entregou ao rapaz a toalha e a cabra. O moço tudo recebeu e voltou para casa do seu amo, e lhe contou o que se tinha dado com ele na casa do preguiçoso. 

O velho então lhe disse: «Esta toalha e esta cabra têm virtude; quando tiveres fome, estende esta toalha, e te há de aparecer comida da melhor; e esta cabra quando berra bota dinheiro pela boca.» 

O rapaz ganhou o mundo com seus três presentes.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Lisboa/Portugal: Nova Livraria Internacional, 1885.
Disponível em Domínio Público.
Atualização do português por J.Feldman

Caldeirão Poético LXV


CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Calçadão de Minha Rua…

Alvinegra passarela
em mosaicos definida…
sempre que passo por ela,
a repassar me convida.

Calçadão de minha rua,
a imitar ondas do mar…
à luz do sol ou da lua,
aonde irás me levar?!

Meu destino, irrelevante,
me fez boa caminheira
e assim vou seguindo adiante,
até quando Deus o queira!

Calçadão de minha rua,
talvez que em dia já breve,
minha vida, que se estua,
não te pise… nem de leve!

E, então, guardarás silente,
nos mosaicos desgastados,
passos meus… passos de ausente
… marcas de passos passados..
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DOROTHY JANSSON MORETI
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Enlevo

Às vezes, quando a insônia bate à porta,
envolvo a mente em requintados véus,
e nela deixo apenas o que importa
para elevar meu pensamento aos céus.

Afasto a lógica indistinta e torta
que quer ligar-me ao jugo dos incréus,
e imersa na Poesia, que conforta,
de olhos cerrados “vejo” os meus troféus.

Cada um deles revela , em minha história,
o momento fugaz de alguma glória
que conquistei ao dom que Deus me deu.

A insônia vai fugindo lentamente…
E em canção de ninar macia e quente,
me entrego inteira aos braços… de Morfeu
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FRANCISCO NEVES MACEDO
Natal/RN, 1948 – 2012

Amigo! Um irmão que a gente escolhe…

Fazer escolhas, nesta minha vida,
é o dia a dia que se faz dever,
e quando eu erro vem todo um sofrer,
mas, se a escolha é banal, fica esquecida.

Um carro, um disco, um anel, uma bebida,
uma mulher, um livro para ler,
a nossa fé, time para torcer,
uma viagem, um som, uma comida.

Fiz tantas vezes essa escolha errada,
usei o livre-arbítrio para nada!
mas, quem está na chuva, que se molhe…

Há uma escolha que é definitiva,
e eu me baseio nesta afirmativa:
Amigo é aquele irmão que a gente escolhe.
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HAROLDO LYRA
Fortaleza/CE

Coisificadas

Hoje é comum mulher tirar a roupa
pra revelar nas bancas de jornal,
despudoradamente o colossal
segredo da virtude, já tão pouca.

Desnuda-se, aos apelos do mural;
na crapulosa folha a pose louca
que a revista conduz de boca em boca
e faz dessa mulher coisa venal,

que assim exposta nua à sordidez;
dependurada à espreita do freguês,
nem percebe aonde e como vai chegar.

Mas chega ao pai, os sonhos carcomidos,
por ver da filha os garbos preteridos,
e oferecida a quem puder pagar.
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LUIZ OTÁVIO
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1977, Santos/SP

O Ideal

Esculpe com primor, em pedra rara,
o teu sonho ideal de puro artista!
Escolhe, com cuidado, de carrara
um mármore que aos séculos resista!

Trabalha com fervor, de forma avara!
Que sejas no teu sonho um grande egoísta!
Sofre e luta com fé, pois ela ampara
a tua alma, o teu corpo em tal conquista!

Mas, quando vires, tonto e deslumbrado,
que teu labor esplêndido e risonho
ficará dentro em breve terminado,

pede a Deus que destrua esse teu sonho,
pois nada é tão vazio e tão medonho
como um velho ideal já conquistado!…
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OLGA MARIA DIAS FERREIRA
Pelotas/RS

Meus Conflitos

Amargo pranto escorre em minha face,
enorme dor sufoca este meu peito,
saudade imensa, já, não mais desfaz-se,
nem abandona as sombras do meu leito..

A nuvem negra deste desenlace,
mostra-me a cor de nosso lar desfeito,
e luto intenso em minha alma faz-se,
na falta deste amor… quase perfeito..

Ah, meus conflitos já cristalizados,
revelam mágoas, dores e pecados,
numa constância e impertinência louca…

Pelos momentos, já, ultrapassados,
por tantos sonhos por nós dois sonhados,
nesta saudade… beijo a tua boca!
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Fonte:
Ademar Macedo. Mensagens Poéticas. 2012.

Goulart Gomes (Fazenda Solidão)

Mormente o chão ficar dessa tez, que nem asa de graúna, mode o piche chamado asfalto, as coisas pouco mudaram. Desta varanda, donde meu pai espichava os ossos, na madorna depois do almoço, só se enxergava ocre, cor de terra pisada e estrume de boi, até o horizonte.

As coisas se eternizavam. Mal o sol acordava já os galos seguiam seu rastro. Nós, depois. Dentes limpados com folha de juá e o cheiro de estrume saudava, antes do vapor do bule de café. Pilado ali mesmo, com porretadas firmes: tum - tum – tum - creque - tum - tum - tum - creque. 

E o resto do dia era relando o traseiro na sela da montaria, catando gado como quem cata piolho, nas carapinhas do sertão, entre um e outro aboio.

— Pintado, Pintado! Malhada, Malhada! Estrelinha, Estrelinha! Tinhoso, Tinhoso! Ê, gado, ê gado!

A bênção do Velho Chico, matando a sede, lavando roupas e almas. Honra, não, que essa só sangue afoga, todo caboclo sabe.

Mas falava do almoço, e meu pai nele.

Comida vária, cachaça e pimenta-de-cheiro. Malagueta, às vezes, de dar escorredeira nas ventas e água nos olhos. Isto para mim, que era moleque. Meu pai esmagava, mascava, ruminava, feito suas reses. Pior só seu rapé, misturado com folha moída de umburana e demais. Guardava-o numa bolsa, fixa na algibeira.

Mas falava do almoço, e meu pai nele.

Silêncio de sacristia. Sem camisa, não. Peito guardado do vento, por respeito e resguardo. Convém evitar espinhela caída. O velho à cabeceira, a mãe, da cozinha para a sala, no vai-e-vem de pratos, travessas e panelas de ferro. Todos os irmãos, presença obrigatória. E comida farta, como farta inda é. 

Só não os filhos, que nenhum Deus me deu. Irmão sempre procura desavença: uma carne mais torrada, a coxa do frango, a casca do pão... E meu pai sério por fora e sorrindo por dentro, hoje eu sei, dos nossos rompantes. Crescidos, tomaram rumos vários. Quase todos na querência de serem "doutores" de anel no dedo, e arribaram para não sei quantas e quantas capitais. As mulheres, casadoras e parideiras, hoje cuidam dos filhos seus. 

Eu por aqui me acoitei, vendo as coisas mudarem lentamente, cada vez mais grisalhos os cabelos. Até um pé de parabólica, que plantei, nasceu.

Fui eu quem fechou os olhos do velho, derradeira diligência, e atendi seu último desejo:

— Fio, panhe acolá uma ruma de terra do currá e me faça um trabisseiro. Quero suspirar com esse cheiro nas venta.

E assim foi. Tenho para mim que morreu contente, se morte é coisa que se alegre. Pensei de ver, também, filho meu crescendo como os pé-de-pau. Quem vai fazer meu travesseiro de estrume? Talvez Noêmia, servidora de forno, fogão e esteira.

— Alô.

— Alô. Ernesto? Como vai?

— Aqui, como Deus quer. E você?

— Bem, obrigada. Liguei porque Fábio vai fazer aniversário, sexta-feira, e queria lhe convidar para uma festinha que vamos fazer para ele. Você sabe, ele vai fazer dois anos... é o tempo que eu não lhe vejo.

— Carecia ter trabalho? Agradeço pela lembrança mas, você sabe, é uma tirada e tanto até aí. Fica para outra vez. Oportunidade não haverá de faltar, né?

— Está bem. Um abraço. Tchau.

— Outro. Até mais.

Não sei da tenência desse telefonema. Ela sabia que eu não iria. Certamente a saber se vivo estou. Dois anos, já. Dez anos que a conheço. Não fui e não vou. Ela devia de estar abancada aqui, tomando conta de mim e deste mundo de coisas. Mas não, preferiu os cinemas, as praias, os chópingues, as coisas da cidade. Viagem para a Europa, Estados Unidos, roupas caras, joias? Isto eu também podia lhe dar, e bem mais. E nem fazia questão de amor, que isso é coisa de poeta, bastava me aquentar o corpo. Mas não. Agora fica assim, ligando como quem faz caridade. Um marido que nem lhe tem serventia. Dizem que nem cria ele sabe fazer.

Dessa arte eu lhe dei conta, ela sabe, meses antes de se casar. Agora não lhe quero, nem que me desse o filho que já tem. Casou emprenhada, para amarrar o besta. Quem bem sabe? Deus escreve certo em arame farpado. 

Nem quero saber que fim leva essas terras, sem um dono, que um dia tudo se acaba. E acaba infestada de bandeiras vermelhas, ou cheia d'água. O sertão não vira mar? O sertão Todo não virá a amar? O ser tão mar não vira? O ser... não... vir... amar... tão - tão - tão. Zoada de porrada desamassando panela. Eu carecia mesmo era de não olhar tanto para trás. 

Ver, além de mim, um fruto, um futuro: um filho, para falar de seu pai aos seus filhos. Mas ela, já vai tarde!

— Noêmia! Bota a mesa pra janta que já tem lua! E bote dois travesseiros na cama, que hoje é sábado, dia de dormir mais tarde.

– Diacho de rede que me acaba as costas!

Fonte:
Goulart Gomes. Todo tipo de gente. Poético Edições, 2011.

Coelho Neto (O Príncipe de Laos)

Quando lhe disseram que o físico pedira, além da condução, uma guarda de fortes cavaleiros que lhe garantissem a vida nos andurriais (lugares ermos) assolados pelos bandidos e tantas moedas de ouro quantos fossem os dias que passasse no castelo, ergueu-se no leito o ríspido suserano bramindo, a apontar a arca em que guardava o tesouro :

— Dali não sai moeda para tão refalsado vilão! O que lamento é não ter forças para montar o meu ginete e empunhar uma lança, porque havia de mostrar-lhe como costumo responder a afrontas da ralé. Dali não sai moeda.

Disse e caiu no leito prostrado e gemendo.

Foi tamanho o furor, tão violento o arranque, tão despejados os movimentos do ancião que se lhe abriram as feridas do peito e o sangue jorrou a golfadas. Solícita e ligeira, a filha acudiu a tempo de estancar a copiosa hemorragia e, com palavras meigas e sossegadas, serenou o ânimo do pai contendo-lhe o sufocamento e os protestos coléricos da avareza e, para distrai-lo, à falta de menestrel ou jogral que lhe cantasse, ao som da rota, uma cantilena, tomando o fuso, a fiar, improvisou o romance do Príncipe de Laos.

“Logo que subiu ao trono o príncipe galhardo, o cavaleiro mais requintado e a melhor lança do reino, ordenou se fizessem grandes obras militares ao longo da fronteira, se dotasse a esquadra de navios possantes, se alistassem no exército os mancebos das principais famílias. Queria os jovens e de boa sombra, armados com esplendor para que todos que os vissem ficassem deslumbrados. Assim foi feito. Restauraram-se as muralhas, armaram-se galés altivas, escolheram-se os esbeltos infantes e os mais gentis cavaleiros.

“O que maravilhava, porém, não era a espessura das muralhas, não era o porte dos navios, nem era tampouco, o número da soldadesca, mas o fausto que em tudo se notava. As muralhas eram pintadas como paredes de paços, as naus andavam sempre enfeitadas, como em festa, com a campanha vestida de linho alvo, vergando remos que eram de sândalo; os infantes, mais pareciam donzéis de paço, vestidos de púrpura com arcos que trescalavam, escudos que eram baixelas, lanças com espículos de prata e que direi dos cavaleiros? Se os telizes (panos para sela) eram de trama de ouro, podeis imaginar como seria o mais.

“Toda essa ostentação era apenas para a vista: nem as muralhas ofereciam resistência porque as pedras, mal assentadas, rolariam ao primeiro embate abrindo brechas ao inimigo, nem os infantes meneavam as armas e os cavaleiros só em torneios galantes escaramuçavam. O príncipe contentava-se com possuir exércitos e uma esquadra numerosa. Que lhe importava a imperícia do soldado e a inexperiência do marujo? Lá estavam os vistosos esquadrões e no molhe, velas abertas, a esquadra arfando.

Sucedeu que um monarca ambicioso, cujo reino confinava com o de Laos, resolveu levantar-se em armas contra o príncipe garrido e, estendendo em campo o seu valente exército e soltando nos mares a sua aguerrida frota, impôs-se com arrogância.

Foi então que um aio falou ao príncipe :

— Senhor, é tempo de fazerdes sair a vossa gente. Guarnecei as muralhas, confiai o comando da tropa a um general arguto, entregai a um hábil capitão a esquadra e facilmente fareis recuar o ousado que nos ameaça com afronta.

— Que! – exclamou o príncipe. – Queres que exponha os meus infantes, que tanta vista fazem com os seus uniformes de púrpura, as suas perneiras de prata, os seus escudos de aço brunido e as suas lanças ornamentadas, à gente rude e devassa que aí vem?  Hei de lançar ginetes preciosos e cavaleiros que levam no corpo tesouros em pedrarias contra uma horda de maltrapilhos? Achas que navios laminados a prata, abrindo velas de linho, foram feitos para abordar chavecos? Não! E deixou-se estar.

Chegou às muralhas a chusma bravia e logo foi iniciado o assalto.

No mar as galeras ricas sofreram o abalroo da frota inimiga e, uma a uma, foram soçobrando. Corre o aio ao palácio.

O príncipe admirava a sua gente de guerra que manobrava ao sol, num campo fechado. As escunas cintilavam, os cocares dos elmos eram de todas as cores e os cavalos, cabeando airosamente ao meneio dos cavaleiros, faziam rebrilhar os jaezes (ornato para as bestas) e as armas. Estrondavam os instrumentos, refulgia o aceiro. Que lindo!

— Senhor, tornou o áulico alarmado, enquanto vos extasiais no lustro da vossa gente o inimigo vareja os muros da cidade. Já se ouve o vozeio confuso, as tubas roucas ressoam, tinem armas nas ruas. Em pouco estarão convosco. Fazei sair a vossa gente. Que, ao menos, se defenda a vossa residência e o trono.

Não deu resposta o príncipe. Expor à morte aquele brilhante exército... E deixou-se estar contemplando o garbo luzimento dos infantes e dos cavaleiros.

Um tumulto assustou-o: era tarde. Quando se lembrou de bradar aos seus guerreiros, mãos brutas arrastaram-no e, manietado, cativo, lá foi o príncipe de Laos. “

Calou-se a donzela.

Soergueu-se o enfermo e, fitando os olhos na filha, que baixara a cabeça loura e retomara a meada e o fuso, bradou:

— Por Deus! E os guerreiros ?

— Os guerreiros...?

— Sim. Porque não saíram em defesa do seu soberano ?

— Porque ele não os tinha para batalhas, mas para simples encanto dos olhos.

— Essa agora! Guerreiros querem-se na luta, não são atores para divertimento de cortes. De que lhe serviu exército tão numeroso e tão rico se acabou em tamanha miséria nas mãos dos brutos?

— Lastimai-o, senhor: tinha mais amor às armas resplandecentes do que à pátria e à própria vida. Não tendes vós ali na arca moedas sem conta, barras de ouro e de prata, pedrarias e baixelas ? Não nutris nas vastas campinas tantos ginetes aderençados? Não dispondes de cavaleiros fiéis ao vosso comando? Entanto, a Morte ronda o castelo e, em breve, estará convosco, porque vos negais a ceder ao pedido do físico. Moedas amealhadas são economias que devem sair ao reclamo da necessidade. A formiga, no inverno, alimenta-se com o que recolheu no estio. Vale mais que um reino a vossa vida e, se sucumbirdes, ainda que vos forrem de ouro o túmulo e o incrustem de gemas, não deixareis de apodrecer como o animal que morre na charneca. Quem fica debruçado a contemplar tesouros esquece todos os deveres. A avareza é um crime. Se o príncipe houvesse atendido à voz do aio ainda seria rei e não estaria a gemer no fundo de uma masmorra, carregado de ferros.

– Que venha o físico! - bradou o príncipe. – Manda-lhe a condução e os cavaleiros e que lhe digam que, além das moedas do ajuste, terá ainda um vaso de ouro no dia em que eu puder vestir a couraça e brandir a faixa de armas. Exércitos querem-se em campo.

— E moedas em giro, quando é preciso. - disse a donzela. E, levantando-se para transmitir as ordens de seu pai, suspirou: Tivesse o príncipe ouvido as palavras do aio e ainda hoje seria rei do lindo país de Laos.

— E onde fica esse país? – indagou o velho interessado.

— Onde fica? Só os poetas o sabem, meu senhor, os poetas que tudo conhecem, porque a imaginação os leva a toda a parte. Hei de perguntar a um menestrel.

Disse e, sorrindo, saiu a transmitir as ordens necessárias para que fossem buscar o físico à montanha.

Fonte:
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.
Atualização do português por J.Feldman

sexta-feira, 21 de julho de 2023

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 31

 

Humberto de Campos (O Porco)

(Lenda muçulmana)

A terra estava ainda mole do Dilúvio, mas começavam a rebentar já, aqui e ali, as sementes das plantas resistentes. E como já houvesse no solo libertado das águas alimento bastante para a bicharada salva da inundação, resolveu Noé, naquela manhã de grande sol e de grandes ventos, abrir as portas da arca, encalhada na areia.

- Primeiro os veados. - ordenou o Patriarca.

Jafet correu à proa da embarcação, espantou um casal de gamos que devorava uns restos de palha espalhados nas tábuas, e os dois animais pararam em disparada, estalando os cascos luzentes no soalho escuro do tombadilho.

- Agora, os leões.

Cham instigou, cauteloso, um leão e uma leoa que piscavam os olhos fulvos a claridade intensa do sol, e as duas feras saltaram no areal ainda úmido, gravando com força, na terra empapada, as quatro patas de unhas fortes.

E assim foram saindo, dois a dois, os camelos, os cavalos, as zebras, as girafas, os bugios, os tigres, os ursos, os castores, Os cães, as águias, os milhafres, as cotovias, tudo, em suma, que devia constituir, mais tarde, o ornamento da terra ou do ar.

Deserta a Arca, notou Noé, ao passar-lhe revista, que no lugar em que estivera o elefante, ficara empestando o ambiente um monte de imundice, de lama pútrida, que repugnava.

- Sem? Cham? Jafet? - gritou o velho, chamando os filhos.

Os rapazes acudiram, tapando o nariz.

- Tirem daqui esta indignidade. - ordenou.

Os futuros construtores de Babel entreolharam-se, horripilados com aquela incumbência nauseante. E iam principiar, obedientes, o trabalho penoso, quando o pai, compreendendo-lhes o escrúpulo, mandou que se abstivessem. Tinha-lhe acudido uma ideia: estendeu os braços no rumo do monte de esterco, e ordenou:

- Move-te!

A montanha de imundice estremeceu por si mesma, ergueu-se acima do soalho alguns centímetros, suspensa por quatro pés invisíveis.

O Patriarca estendeu os braços e, novamente, determinou:

- Retira-te!

O monte de lama podre partiu correndo, buscando misturar-se com a lama que ficara das águas.

Tinha nascido o porco.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
Disponível em Domínio Público. 

Goulart Gomes (Poemas Avulsos) – 2 -

BELA

Seu rosto belo
sua pele clara
macia
me faz recordar momentos gostosos
momentos bonitos
como você

Sua juventude
contrastando com a velhice
que habita meu peito
me faz sentir doces palpitares
coisas de adolescente

E nesse romântico devaneio
fico acalentando a vontade de ser
apenas por um momento
por uma breve fração de tempo
um adolescente, como você

E neste hiato de tempo, amá-la
com todo ardor e inexperiência
do mais louco dos adolescentes
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EÓLO

Se um dia eu pudesse
ficar junto a ti
sozinhos no mundo
sem quê nem porquê
sem ninguém pra olhar
pegaria tua mão
sentiria o teu corpo
beijaria tua boca
acariciaria-te

Se um dia eu pudesse
isolar-nos do mundo
esquecer compromissos
direitos, deveres
tocaria teu rosto
correria em teu corpo
morreria em teus olhos
amaria-te

Ah! se um dia eu pudesse
se o Destino quisesse
estar a sós contigo
então eu seria
uma brisa, um sopro
percorrendo-te
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NIPÔNICA

Meus arrozais já não são tão belos
E a lua sobre o Fiji já não brilha tanto.

Nossos samurais já não são heróis
nem tampouco os kamikazes.

Já não tenho a paz do meu nirvana:
Em tudo há a tua ausência, Mariko…
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POEMA PRIMEIRO

Ao sentir-la em meus braços
ao sentir o seu corpo
colado ao meu

Ao sentir o aroma
dos seus sedosos cabelos
caídos em mim

Ao sentir sua mão tocando o meu corpo
me fazendo sonhar

Ao ouvir esta música
tocando no ar
ritmando seu ser
me sinto mais leve
por dançar com você

E a música toca
e nós flutuamos
desintegrando o mundo
com o seu bailar

E ao olhar em seus olhos
ao sorrir em seu riso
sinto um doce calafrio
e um louco palpitar

E sua boca, tão próxima
como a implorar um beijo
o nosso beijo
do qual você foge

A música cessa
os corpos separam-se
os olhos despedem-se
e o peito dispara...

Até a próxima dança
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VALEU

A poesia pode dizer muita coisa
pode não dizer nada,
mas será sempre poesia.

O poeta pode ser um gênio,
pode ser um tolo,
mas será sempre um poeta.

Uma musa pode ser uma bela,
pode ser uma fera,
mas será sempre uma musa.

Um livro pode não ter significado,
pode ter algum significado,
pode significar muito,
mas, por mais que não queiram,
GRAÇAS A DEUS,
será sempre mais um livro...
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VÉU DE ÍSIS

Estivestes em meus braços
senti teu cheiro
toquei teus cabelos
rocei teus lábios
e fugistes

Vi-me em teus braços
louco de cansaço
no afã do amor

Mordendo a doce romã da tua boca
afagando as curvas do teu corpo
respirando teus suspiros
sorvendo-te inteira.
Mas fugistes

De tão louco que estava
não ouvi teus passos
não senti tua fuga

Tentei te reter
mas de ti só restou
um tênue véu
e a doce lembrança de um onírico momento
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VIRGINAL

Tua tez clara, teu porte felino
Feminino, doce... suave
Teu riso angelical, quase divino
Rosa de aromas
Que me deixa menino

Cercas-te de rosas
Quiçá para cheirá-las
Quiçá para humilhá-las
Ou para mostrar
Como uma rosa pode ser mulher
E uma menina

Uma rosa como as outras
Com espinhos: teus olhos que dão e tomam
Que riem, sorriem
Fertilizam e matam
Que acalentam

Uma rosa, um oásis no meu deserto
Um brilho
Um querer…
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Fonte:
Goulart Gomes. Anda Luz. Salvador/BA: Abaeté, 1987. Disponível em Goulart Gomes. Conserto para prego e martelo. Poesias Reunidas 1984-1994. Salvador/BA: Pórtico, 2011.

João do Rio (Dia das Visitas)

A força de policia é aumentada. Quatro ou cinco guardas contêm a multidão ao lado do porteiro, que distribui os cartões. A onda dos visitantes cresce a cada momento, impaciente e tumultuosa. São 11 horas da manhã. O sol queima. Há no ar uma poeira sufocadora. O saguão está cheio, a calçada está cheia. Do outro lado da rua, doceiros, homens de refrescos, vendedores de frutas estabeleceram as caixas e as latas e mercadejam em alta voz.

Nas soleiras das portas, mulheres gordas à espera, criancinhas choramingas têm o semblante desolado e triste, mas há também sujeitos alegres, peralvilhos de calça balão mastigando tangerinas e rindo; há curiosos olhando a cena, como no espetáculo, e soldados, soldados da brigada, que passeiam gingando, com os tacões altos e o quepe do lado, por cima da pastinha; dois turcos vendem imagens de santos, botões, canivetes e fósforos; um italiano, que finge de cego, instala o realejo, e o filho começa a remoer velhos trechos de ópera, dolorosamente angustiosos. De vez em quando passa uma carroça ou um enterro, alastrando a rua de poeira. Mais ao longe, trabalham os condenados da correção na nova fachada, e cada passo que algum deles dá é logo acompanhado por dois policiais de carabinas embaladas.

O sol é esmagador, pesa como chumbo. Todos esses semblantes têm qualquer coisa de revoltado e de tímido, de desafio e medo. Percebe-se o terror das pessoas importantes e o desejo secreto de apedrejá-las, essa mistura antagônica que faz o respeito da ralé.

À porta da detenção, o movimento torna-se cada vez mais difícil e o rumor cresce. Vista de fora, na semi-sombra, a multidão tem um aspecto estranho e uniforme, parece um quadro violentamente espatulado pela mesma mão delirante. Os olhos raiados de sangue, alegres ou chorosos, têm um mesmo desejo – entrar; os corpos, corpos de mulheres, frágeis corpos de crianças, corpos musculosos de homens, uma só vontade – forçar a entrada; e todos os gestos, lentos, dificultosos, presos em encontrões de rancor, exprimem o mesmo anelo, que é o de entrar.

Há pragas, frases violentas, mãos que se agarram às roupas de outros, interjeições furiosas; e de dentro, do mistério do pátio da prisão, vem um clamor formidável e indistinto, que aquece e fustiga ainda mais o desejo de entrar e de ver. O porteiro, um senhor velho de cavanhaque branco, distribui os cartões irritado e a suar.

– Não deixem passar sem cartão! Não entra ninguém sem cartão!

E os cartões, sebentos, passam das mãos dos guardas para mãos sôfregas dos visitantes, enquanto na porta de ferro, desesperadamente os que os obtiveram antes procuram entrar todos a um tempo. Um cheiro especial, misto de cheiro desagradável e de perfumes baratos, de suores de mulheres e de roupa suja, enerva, dá-nos visões de pesadelo, crispações de raiva.

Dentro, o pátio está limpo de serventes. Das janelas da secretaria, alguns funcionários deitam olhares distraídos. Duas filas de criaturas parece ligarem a porta de ferro aos dois portões das galerias. E nessas galerias o espetáculo é medonho. 

Dias antes, os presos contam as horas, à espera desse instante. Uns querem matar saudades, outros contam com os amigos para mandar vender as suas obras – flores de pão, couraçados de pau; outros escreveram toda a noite cartas anônimas ao chefe de polícia, denunciando companheiros ou inimigos, e anseiam por alguém para as pôr no correio; e todos, absolutamente todos, acicateados pelo egoísmo, esperam os presentes, o fumo, o dinheiro, as prendas, como uma obrigação dos que os vão ver. 

Os dois portões fecham-se antes de se abrirem os cubículos, e no corredor da grande galeria é um alarido, um desespero de jaula, com gritos, imprecações gargalhadas, perguntas, risos, o pandemônio das vozes, enquanto, como uma matilha de lobos, acuada, agarrando-se aos grossos varões, uns por cima outros, os assassinos, os incendiários, os estupradores, os desordeiros e os inocentes obrigados à infâmia numa confusão, arquejam na ânsia da liberdade. De fora, os visitantes não chegam às vezes a se fazer compreender, esmagados uns nos outros, irritados, sem poder apertar a mão dos amigos. São em geral homens de lenço de seda preta e chapéu mole, adolescentes arrastando as chinelas, mulheres perdidas, velhos trêmulos. 

No alarido, ouvem-se frases breves – Ó Juca, trouxeste os cigarros? – Ai, meu filho, que saudades do nosso tempo de cubículo! – Sabes quem foi preso ontem? – Vê se me arranjas um habeas com o Benjamim! – Estou aqui já há um mês e três dias! Fala por mim a seu Irineu! Algumas dessas palavras são vociferadas de longe. Os que tiveram a felicidade de chegar primeiro unem as mãos entre os ferros, falam devagar. Há amantes trêmulas, vendo o ciúme nos olhos dos detentos, há pobres esposas, há crianças e há velhos respeitáveis com a face triste, todos os sentimentos escachoando, borbulhando, barulhando naquele vórtice de desgraça.

Na outra galeria estão as mulheres. Essas só são visitadas por homens, os mesmos sujeitos de lencinho preto e calça balão, que às vezes visitam num só dia quatro e cinco amigos na detenção. As conversas são mais calmas. Algumas estão lá por causa dos que as visitam, por ciúme e pancadas. Têm quase todas esse sorriso estereotipado de resignação e amargura, dos infelizes que ainda não mediram a extensão da própria infâmia. Do outro lado, os homens parece estarem ali por obrigação. Só um eu vi, menino ainda, magro, tísico, com um olho afundado em pus, que segurava, como para se aquecer, a mão de uma pequena mulatinha. Ela conversava com outro, sem lhe dar atenção. Afinal, teve um sorriso de piedade.

– E tu, João?

– As voltas com o Zé-Maria. Nem você imagina como eu ando. Estou só esperando que você saia, para tirar um pensamento da cabeça...

E as suas mãos agarravam a mão da outra, num gesto de medo e de paixão.

O clamor continuava, fragorava como um oceano que se debatesse contra os altos muros brancos. O administrador já mandara ordem para dar fim à visita. Ainda havia os serventes e os abastados. De vez em quando, destoando dos casacos-sacos dos malandros, entrava uma sobrecasaca, algum advogado de porta de xadrez, a farejar a diária de petições de habeas-corpus, lambiscando delicadezas aos guardas.

– Há alguns desses sujeitos, dizem-me, que até já estiveram presos. E conheço um que, tendo contratado um habeas-corpus por trinta mil réis, não queria que o administrador soltasse o preso enquanto não o tivesse pago dessa importância.

A nossa atenção voltou-se, porém, para uma austera senhora que descia da secretaria gravemente, com um embrulho debaixo do braço.

– Não conhece? – perguntou-me um dos guardas. – É missionária protestante. Vem, naturalmente, pedir ao sr. capitão Meira Lima para falar aos presos. Antigamente vinha mais vezes. Ah! o senhor nem imagina o que os detentos faziam com ela. Eram troças, pilhérias, arremedavam-na na bochecha, diziam-lhe desaforos. Por último, sopravam-lhe nos olhos pimenta em pó, através das grades do cubículo. Ela continuou, impassível, a distribuir folhetos da religião, que o pessoal transforma em baralhos. Tenho aqui um para o senhor. Venha cá. É preciso que ela não veja.

Vamos para o saguão. O guarda desdobra por trás da jarra Tiradentes, de Benedito Machado, um embrulho, e eu vejo valetes, ases e damas admiravelmente pintados em pedaços dos livros de edificação moral. Há mesmo um rei de paus que tem nas costas S. Paulo. E no pátio, a inglesa, na sua obra regeneradora, espera com calma que o administrador consinta em mais uma distribuição de folhetos, para o fabrico de futuros baralhos!

O clamor das galerias parecia diminuir, enquanto à porta do pátio havia o mesmo atropelo de pessoas, agora querendo sair. Os protestos prorrompiam entre frases de cólera surda e frases de deboche. Uma rapariga com o filhinho nos braços bradava: – Não volto mais! Não falei ao José. É impossível chegar perto da grade! – Contente-se comigo, dona! – A mulherzinha vinha com sede! – Ó Antônio, vamos tomar uma lambada! – Ih! menino, já quebrei água hoje como quê! E as vozes alçavam-se, cruzavam-se; faziam naquela porta, como a ornamentação da raiva e da sem-vergonhice um baixo-relevo vivo de entrada de penitenciária, enquanto, suando, bufando, com os cartões na mão, aquela gente – mulatos, pretos, italianos, portugueses, fúfias (mulheres ridículas) e rufiões, tristes mulheres e trabalhadores de fato endomingado – dava cotoveladas e empurrões, no desejo cada qual de sair em primeiro lugar.

Um sino pôs-se a tocar. Era o fim da visita. Os sons vibravam, duros, como uma ordem. Há sinos que choram, sinos que cantam, sinos que são tristes; há sinos feitos para dobrar a finados, como os há para cantar missas em ações de graça. Aquele sino era um aguilhão. O pátio esvaziava. A tropa partia, tropa desoladora, amiga do vício e do crime.

Foi então que eu vi aparecer, carregada de embrulhos, com a coifa branca a ondular as duas grandes asas, a figura de bondade da irmã Paula. O guarda tirara o boné, cheio de um carinhoso respeito. Os malandros e os desgraçados, ainda à porta, tinham nos olhos uma expressão de timidez e de alegria.

– Bonjour, meu filho, fez a irmã com um gesto cansado. O Sr. administrador? - O guarda disse qualquer coisa, comovido. Ela arrumou embrulhos, enxugou as mãos, subiu as escadas da secretaria. A sua coifa alva parecia uma grande borboleta branca.

– É a única visita que consola os presos, é a única que eles respeitam, murmurava o guarda. Quando ela fala, tão simples e tão meiga, até as pedras parece quererem-lhe bem. Quando Jesus passou por este mundo, devia ter sido assim bom para todos os desgraçados.

De novo a coifa apareceu, borboleta de esperança adejando as grandes asas brancas e, como se fizesse a obra mais natural deste mundo, a irmã Paula disse:

– Vamos ver os desgraçadinhos. Trago-lhes hoje umas coisas. O Sr. administrador é muito bom, permite.

E assim, tocado pela sua presença, a mim me pareceu que o doloroso canto do jardim do crime se transformava no horto das rosas de que fala S. Tomás de Kempis…

Fonte:
Disponível em Domínio Público
João do Rio. A Alma Encantadora das Ruas. Publicado originalmente em 1908.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capítulo 4: As amigas

Os dias passavam e a situação conflituosa permanecia na casa da família Machado. 

O senhor Antônio chegou apressado da lida, pedindo que sua esposa apressasse o almoço.

- Que pressa é essa, homem? – perguntou dona Ana.

- Nada de indagação,” muié”. Tô com pressa e pronto.

- Vais viajar, pai? - indagou a filha.

- Sim. “fia”. Daqui a pouco me mando pra Cachoeira.

- De novo? Não sai mais da cidade, Antônio! - reclama a esposa.

- “Arguém” tem que cuidar dos “negócio” - disse o velho rabugento. Ah, e me faz uns “ovo frito”, farofa e café pra eu levar na viagem, continuou ele.
 - Está bem, meu marido. Faço o que me pedes.
 
Aposto que o motivo da viagem é mulher. Pensou Isadora, sempre muito preocupada com sua mãe.
             O almoço é servido e o senhor Antônio comeu com voracidade. Pegou o lanche. Se despediu da mulher e da filha dando em cada uma um beijo na testa e sumiu porta afora.
 
Dona Ana se posicionou na pia para lavar a louça e a filha, sentada ao degrau da porta da cozinha, junto do Costelinha, abriu um caderno e docemente leu um de seus poemas em voz alta:
 
“A guria e o espelho”
 
Mirando-se no espelho,
ela enfeita o cabelo com uma flor vermelha.
No espelho da parede, enxerga sua alma sonhadora ... Faceira...
O refletor quer sugá-la, não para dentro dele,
mas para dentro dela.
                     
Não resistindo aos truques do espelho, ela se deixa levar.
No decorrer da viagem se depara com uma santa
coberta da cabeça aos pés, por um manto de linho em fios de ouro que docemente lhe estende a mão direita e diz :
- Vem. Quero mostrar-te a linda cidade que vive no interior do teu coração. 

A moça se deixa conduzir e de repente se vê num lindo lugar,
todo florido, perfumado, cheio de crianças a brincar.
Ao vê-la, uma menina a ela oferece uma flor.
Depois, a bela adentra uma rua onde se depara com mulheres sorridentes,
livres e cheias de opiniões a respeito de tudo.
A prenda conversa com uma delas que lhe diz:
Não tenhas medo. Sejas plena. Sejas feliz, moça bonita!
O dia foi passando. E, ao entardecer, 
a santa cujo nome ficou em segredo, a levou em um baile.
O fandango estava lindo. Prendas e peões dançavam sem parar.
Teixeirinha, uma canção para ela se pôs faceiro a cantar.
E repentinamente um peão a tirou para uma dança.
Ao passo que dançavam, a magia do amor os envolvia.
Pois ali estava o amor que ela escolheu para sua vida.
Pena que depois de tudo, o espelho cospe a prenda da flor no cabelo, para fora,
e a entrega de volta à realidade onde as mulheres sofrem. 
 Mas que, em seus corações, são assim... Livres e plenas em suas verdades!
                              
- A personagem do poema és tu, Isa? perguntou a mãe, sorrindo.

- Sim, mãe. Sou eu - disse ela em tom de desânimo.

- Filha, em alguns fandangos tu já tens dado o ar da tua graça. Isso não é bom?

- Mas o pai me leva nas festas à espera de encontrar um marido para mim. Um marido escolhido por ele. Não pode sequer saber que escrevo poemas.

- Sonhes menos e vá passear um pouco. Que tal fazer uma visita à tua amiga, Enila. Tem dias que não vais lá.

- Vou aceitar o conselho, mãe querida. Vou mandar encilhar o Relâmpago e visitar a vizinha Boitatá e matar a saudade da minha amiga.

Enila, com seu cabelo ruivo, olhos azuis e sorriso cheio de meiguice, refletia em seu falar, em seu jeito de agir, toda a calma da qual a natureza de Isadora necessitava. Ela nascera meses antes da amiga. 

A cumplicidade entre elas foi uma semente que cresceu fértil no solo sagrado da mais pura amizade. Uma estava sempre pronta para ajudar a outra, independente de qualquer dificuldade. No entanto, em nada se pareciam.  

Seus pais, senhor Francisco Fiore, e dona Eliana, tinham visões de mundo opostas aos dos pais de Isadora.

Faziam questão de dividir as responsabilidades referentes aos negócios relacionados ao plantio de arroz da fazenda.

Tinham estabelecido um acordo de que a filha só se casaria no dia que se apaixonasse de verdade.

Assuntos sobre casamento arranjado para eles, era um costume ultrapassado.

O casal também tinha um filho homem, Bruno, sete anos mais velho do que a filha. Ele seguiu a carreira militar e por isso, pouco aparecia em casa.

A família tinha posses, mas conservava-se muito simples no trato com as pessoas e na maneira de enxergar a vida. Seu Fiore, era bisneto de imigrantes italianos vindos para a região Sul do Brasil. Sua origem familiar era muito pobre, mas com esforço, comprou uma pequena porção de terra e, aos poucos, foi investindo e amplificando os negócios. Quando se deu por conta, já tinha uma fazenda em seu nome, com plantações de arroz e criação de gado. 

As terras de Boitatá tinham as bênçãos de Deus orvalhadas a rolar naquele tapete fértil, chamado chão. A família Fiore sabia preservar a união, a educação, a bondade e a chama da alegria em seu viver. E por isso eram tão felizes.

Enila repousava no sofá da sala, quando Isadora bateu à porta.  Dona Maria, empregada dos Fiore, uma negra velha, que por ser muito corpulenta tinha entre os mais chegados, o codinome de vó gorda, a recebeu com seus braços fofos abertos.  

- Oi, “fia”, Está bem? - perguntou ela.

- Sim, vó. Onde está a minha amiga?

- Entra e senta, “fia”. Vou chamar a guria Enila e preparar um chá pra ti.

- Não. Obrigada, vó Maria.

- Vou fazer sim. A guria tá com a cuca cheia de caraminholas e com o coração apertadinho que só vendo...  Vou fazer uma mistura de ervas pra mandar esses pensamentos tristes embora.

- Como podes saber das minhas angústias? - perguntou Isadora, surpresa.

- Isso não importa. - disse a empregada rindo e agitando os braços.

A verdade é que dona Maria ou vó gorda, como também costumava ser chamada, conservava certos costumes e credos dos seus antepassados,  Jejês e Nagôs, que assim como seus avós, foram escravos e adeptos das crenças de matrizes africanas, cultivadas até os dias de hoje nos famosos centros de Batuques em todas as regiões do estado do Rio Grande do Sul.  

Ela tinha um ar descontraído e ao mesmo tempo misterioso.  Parecia ler os pensamentos das pessoas e sentir as dores dos corações aflitos. 

- Está bem. Aguardo o chá.

- Que bom que vieste. Meus pais estão em viagem. Estava me sentindo um pouco sozinha. Trazes novidades? - disse Enila.

- Não. Na verdade os problemas lá de casa só pioram. A mãe mesmo em casa, descansa cada vez menos. O pai sai e demora cada vez mais a chegar. Mas tudo bem. Não vim aqui para falar de tristezas, mas sobre o baile acontecerá de sábado, no CTG Bonifácio Gomes.

- A notável trovadora Doralice Gomes da Rosa e a encantadora Neoly de Oliveira Vargas fazem parte das atrações do evento. Serão as juradas de um concurso de poesias.  

- Escuto os poemas pela rádio. São muito talentosas. Estou precisando dançar, ver gente. Me sentir viva! - disse Isadora ao expressar um olhar de preocupação.

- És a pessoa mais cheia de luz que conheço, Isa. Livre em teus pensamentos, corajosa, cheia de planos. Muito diferente de mim. Te admiro tanto, querida. Não te deixes abater. - pediu a amiga com ternura.

- Vamos falar sobre você. Como vai o namoro?

- Bem sabes, Júlio é um rapaz maravilhoso. Ele vem para o baile! O amo de verdade! Pretendemos nos casar no decorrer do próximo ano. Porém, antes, precisamos pensar no noivado. Sem pressa, um passo de cada vez, tudo à sua hora. Mas quero saber de ti.  

- O que dizer sobre mim?... Há em meu peito tantos anseios, pressas e rebeldias. Temo que estas tais horas certas para os bons acontecimentos do destino não existam. Quero eu mesma, poder fazer as minhas horas certas. 

- Temos a vida toda pela frente, Isadora, aquiete o teu coração...

Enquanto as amigas conversavam, Vó Gorda, lá da cozinha, num misto de orações e conversas, separava suas ervas para o chá. E pouco tempo depois, retornou à sala para servi-lo.  

- Tome o chá todinho. É feito com alecrim, hortelã, erva doce e mais um segredinho da “veia” aqui ... - disse ela ao esboçar um risinho misterioso.

- Obrigada, vó. Vou tomar sim. Está cheiroso.

- Pelos teus olhos eu vejo que a guria viverá um grande amor.

- Vó gordinha do meu coração, para com essa mania de prever o futuro e de ficar por aí, benzendo as pessoas. Se o padre Orestes descobre, lhe excomunga. - disse a ruiva a sorrir.

- Vês mais a meu respeito? - indagou Isa.

- O sofrimento gosta de ti, “fia”. Quer te roubar pra ele. Mas a tua coragem junto da tua alegria de viver, te fará vencedora. Tenha fé. Vem peleia feia pela frente, mas depois chega bonança.

- Tá bom, vó, volte para a cozinha e deixe-nos conversar. - pediu Enila.

- A ‘véia” já tá saindo.

As moças voltaram a falar descontraidamente sobre amor, bailes, família e coisas do cotidiano.

No fim da tarde, ao voltar para casa, Isadora foi até o jardim da sua fazenda, sentou numa pedra e relembrou as palavras da velha benzedeira “Tão bom seria se realmente existisse um amor vindo em minha direção. Um amor verdadeiro, que pudesse me completar”. Pensou ela. Depois ficou a observar a felicidade simples dos pássaros, das flores, das borboletas, que em apenas quarenta e oito horas de vida, elaboram a sua eternidade. Sorriu, encantada, fez uma breve prece agradecendo a Deus a beleza da vida. E sentindo-se um pouco mais revitalizada, tirou um pequeno caderno de anotações de dentro da blusa e desabafou seus sentimentos em versos.

Sem liberdade, a vida é menos vida.
Eis, os pássaros, sem suas asas para contar...
Para que uma missão seja cumprida    
é preciso voar, voar e voar ...  
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
continua…

Fonte:
Enviado pela autora.