O POLICIAL QUE VIERA da capital para investigar a estranha e misteriosa morte de um pescador num dos braços do rio que cortava aquele pequeno vilarejo perdido nos cafundós da floresta, se achegou do ancião que todos nas redondezas diziam ter sido a única testemunha que presenciara os derradeiros momentos do falecido antes que ele perdesse a vida quase alcançando a linha da marina onde, aliás, também ficava sediado o barracão da colônia de pescadores. O velhinho fumava seu cachimbo e espiava, em silêncio, para as águas barrentas do rio que se perdia ao longe. Pigarreou para se fazer notar e indagou:
— E então, meu bom homem, vai me contar direitinho como tudo aconteceu com seu amigo?
— Se o senhor quiser realmente ouvir...
— Pode começar. Sou todos ouvidos.
O ancião deu uma tragada longa em seu cachimbo e encarou o policial que o contemplava encostado na entrada que acessava a ponte onde alguns barcos estavam amarrados:
— Seu Manoel, moço, vinha vindo embora para casa. Estava bem ali, ó. Tá vendo aquela ilhazinha quase perto da margem?
— Ali? Aquela perto da barranca?
— Não, lá, depois dos manguezais.
— Tudo bem. Continue...
— Ele viajava numa piroga.
— Piroga?
— Canoa. Piroga, por aqui, é o mesmo que uma espécie de embarcação.
— Entendi.
— Seu Manoel é um grande pescador.
— Melhor dito: era!
— Não, meu prezado. É. Mesmo depois de morto, ele continuará sendo um pescador. Um grande pescador.
O policial sorriu à essa observação infantil, mas percebendo a humildade de seu interlocutor, concordou com ele:
— Está bem. Vamos supor que seja assim. E daí?
— Seu Manoel segurava dois remos enormes. A canoa dele era do tipo daquela, às costas do senhor, está vendo? A pintada de azul. Vinha cheia de peixes. Abarrotada. Então aconteceu...
— O que aconteceu exatamente?
— As abelhas chegaram em bando. Vieram dali.
O pescador apontou para uma espécie de bosque fechado:
— Chegaram em um enxame?
— Que seja, se assim o amigo está dizendo.
— Mas eu soube, pelos vizinhos do senhor, que seu Manoel morreu afogado. Afinal, foi afogado ou picado?
— Acho que “Afopicado...”
— Como?! Afo... afo o quê? — Quer, por favor, repetir?
— “Afopicado”, moço. Afogado com picado e vice-versa. Veja bem: quando as abelhas estavam se aproximando, o barco dele, velho de guerra, sentindo a presença fria da morte e temendo ser mordido...
— Picado... – emendou o policial:
— ...Com medo de ser, como o senhor bem colocou, picado, o barco não esperou pelo pior. Se armou e pá, puf! Saiu correndo...
O policial não pode deixar de dar um largo sorriso e aproveitar para fazer uma piadinha:
— O barco saiu correndo! Correndo ou nadando?
— Escuta só, meu senhor. Acho que nem uma coisa nem outra. A embarcação, a meu ver, deixou o local em desabalada “navegância”, ou, a toda velocidade, como se costuma dizer na linguagem dos pescadores. O senhor entende, não é mesmo? Os barcos navegam. Resumindo: o barco antes de “tirar o time” emborcou. Antes que o senhor me pergunte o que é emborcar, vou logo esclarecendo. Virou de barriga para baixo. Depois que se livrou da carga, deu no pé. Se deixou ser levado pela correnteza...
— E as abelhas?
— Como perderam de vista o barco, caíram matando em cima do infeliz do seu Manoel.
— Dentro da água?
— Aquelas abelhas nadavam.
— Ué! Abelhas nadam?
— As daquela marca, sim...
— O senhor quis dizer, daquela espécie?
— Quis dizer e, de fato, disse. Perceba. As daquela espécie, são inimitáveis. Mergulham, nadam de costas, de frente, de lado, de banda. São feras. Inteligentes, ladinas. Mais até que os homens que, como eu, mais o velho Manoel (que o Bondoso Pai o tenha na glória), trabalharam a vida inteira em braços de rio como este que o senhor está vendo aqui. Tem umas destas espécies que pulam de cabeça em busca do néctar, para produzirem o mel.
Mais gargalhadas:
— O senhor está me dizendo que as abelhas picaram seu Manoel dentro da água?
— Perfeitamente.
— Mas...
— Até alguns peixes, na hora da confusão, saíram lanhados.
— Se entendi direito, picados?
— Mais ou menos a mesma coisa. A ordem dos fatores... sabia que encontrei um par deles com ferrões no cachaço do pescoço?
O policial estava às voltas de desistir daquela conversa fiada. Afinal, não chegaria à lugar algum dando atenção aquele infeliz, ouvindo a sua prosa de bocó sem noção. Perdera tempo. Um tempo precioso, à sua visão centrada dentro de um objetivo que ele tinha como lógico e real. Entretanto, antes de sumir do pedaço dando adeus definitivo ao seu interlocutor, se abriu feito mala velha em mais uma de suas enormes risadas barulhentas. Parecia um menino bobo diante de um fato inusitado:
— No pescoço? Essa foi boa... e na barriga do falecido não encontraram nada que nos possa levar à alguma solução?
O velhinho, muito sério e tremendamente compenetrado, continuou firme, sem mover um músculo das faces cheias de cicatrizes provocadas pelo tempo que ficaram expostas aos raios solares:
— Perto das guelras... o senhor precisava estar aqui, na hora fatal. Ia se certificar de que não estou mentindo.
— O senhor já viu, alguma vez, essas abelhas por aqui?
— Até acontecer essa fatalidade com meu amigo, não.
— Saberia informar, ao menos, de onde poderiam ter vindo?
O ancião apontou, com o cachimbo voltado para o céu azul acima da cabeça deles, um lugar no distante apartado do infinito:
— De lá.
O policial seguiu a indicação para onde a remota figura sinalizava:
— Das nuvens?
— Não, seu moço. De outro planeta. Acho que as tais abelhas têm parentesco com seres de outra galáxia desconhecida.
— Nessas alturas do campeonato o senhor vai querer me convencer de que, se eu sair por aí, posso encontrar uma nave?
O longevo ficou deveras chateado com esta observação inoportuna:
— Não digo que o senhor tope com a nave. Mas, com certeza, tropeçará ou cairá num buraco enorme...
— Buraco enorme?
— Sim, meu bom amigo. Uma cratera de dimensões espetaculosas que ela deixou logo ali na frente, na hora em que as abelhas se preparavam para empreenderem a viagem de volta ao desconhecido de onde, suponho, tenham partido para chegarem até aqui.
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