segunda-feira, 24 de julho de 2023

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capitulo 5: Doces lembranças

 
Isadora gostava da vida na fazenda. Sentia-se parte daquele ambiente sincero e perfumado, mas tinha curiosidades sobre a vida na cidade.  Só foi à capital, Porto Alegre, junto dos seus pais, uma única vez. Foram bailar no mais famoso CTG (Centro de Tradições Gaúchas), o "35”. Seus olhos brilhavam de felicidade. Mas só pode dançar com o seu pai...        

Isso foi logo após os seus quinze anos. Depois nunca mais teve oportunidade de viajar. O único Centro de Tradições Gaúchas que podia visitar de vez em quando, era o Bonifácio Gomes, que ficava localizado na cidade de Cachoeira do Sul, bem próximo ao distrito onde morava.  

Suas atividades se resumiam em auxiliar a mãe nos afazeres da casa, registrar no papel os seus próprios desabafos, conversar com a amiga Enila, cavalgar e, por vezes, ajudar os peões na lida com a terra. 

O pai de Isadora não aprovava a sua atitude de misturar-se aos peões. Não gostava de ver a filha tão próxima de todos aqueles homens que não podiam ver um rabo de saia que logo já cobiçavam. Mas Isadora não dava importância ao que as pessoas pensavam ou deixavam de pensar a seu respeito. Seguia somente as diretrizes do seu coração. Desejava apenas ser feliz e um dia viver um lindo amor. Porém, enquanto esse amor não chegava, buscava se refugiar em tudo de bom que podia fazer e usufruir na fazenda.

- Oi, mãezinha! Passaste bem à tarde? - perguntou ela ao retornar do passeio.  

- Passei bem. Fiz salgados para a venda do seu Feliciano. Descansei um pouco. E agora estou a saborear o meu chimarrão. 

Quando sobrava tempo, nos finais de tarde, sentada numa cadeira de balanço na varanda de casa,  Ana costumava matear (tomar mate) na companhia da sua Isa e do cãozinho Costelinha. 

A sacada era ornada por vasos de folhagens variadas. E ficava de frente para dois lindos Ipês de flores amarelas. Por certo, ali era o seu cantinho favorito. 

- Vou lhe acompanhar no mate.

- Pareces muito animada, filha. Pensando no baile do próximo sábado?

- Sim. Mas não é por isso que estou feliz. Cavalguei, conversei, fui até o jardim, refleti, escrevi... Todas essas coisas fazem com que me sinta renovada.

- E eu aqui, à espera do teu pai...

- Suas viagens estão cada vez mais longas. Mas daqui a pouco ele aparece. 

- Pensar no pai me deixa aborrecida. Vamos mudar de assunto. Fale sobre a senhora. Normalmente és tão calada. 

- O que desejas saber, minha guria? 

- O amor que sinto pelos versos vem da senhora. Como descobriste a poesia?

Dona Ana busca no baú das suas saudades uma bonita lembrança para relembrar e satisfazer a curiosidade da filha.          

- Seu avô Sebastião, como bem sabes, era professor de história. Ele foi um pai linha dura e, ao mesmo tempo, delicado, carinhoso e inteligente. Ele tinha uma biblioteca com centenas de livros. Sua avó, dona Clara, também gostava de ler. Eu e minha irmã adotiva, Leandra, não tínhamos muita liberdade. Mas éramos autorizadas a ler os livros que nossos pais consideravam bons e educativos. Aquela biblioteca era o nosso paraíso. Lá, mergulhei no universo do Érico Veríssimo e na sua obra O Tempo e o Vento. Uma epopeia dividida em três romances: “O Continente”, “O Retrato” e “O Arquipélago”. A trilogia narra o processo de formação do Estado do Rio Grande do Sul, misturado ao elemento ficcional, preponderante em quase toda literatura, mais os dados e personalidades históricas. 

Os romances acabam por recriar 200 anos da história gaúcha, de 1745 a 1945, tempos marcados pelo poder das oligarquias, por guerras internas e guerras de fronteira. Nem todos os livros nos eram permitidos ler, mas eu e minha irmã dávamos o nosso jeitinho...

Certa vez ouvimos nossos pais falarem sobre um romance do século XIX, que por ter sido considerado indecente, havia sido censurado, e o autor francês, Gustave Flaubert, teve até que responder a um processo por afrontar à moral e os bons costumes da época, em uma corte francesa, por causa do conteúdo da obra. 

Claro que ficamos ouriçadas querendo saber o que continha de tão errado nessa obra, e todas as vezes que nossos pais saíam, íamos até a biblioteca: às vezes eu, às vezes Leandra. Subíamos a escada para alcançar a prateleira onde ficava o livro, e dividíamos a leitura. 

Tratava-se de um calhamaço. Levamos um bom tempo para ler a obra por completa, já que só podíamos ler quando estávamos sozinhas.  

- Com que idade vocês resolveram fazer coisas às escondidas? - perguntou Isadora, surpresa. 

- Coisas, não. Esse foi o nosso único delito.

 - A obra era mesmo indecente?

 - É... Pode-se dizer que sim. Contava a história de uma mulher que tinha casos extraconjugais...

- Mãe, entrega as idades, estou curiosa. 

- Já vi que falei demais, mas acho que eu tinha uns treze e Leandra já contava com seus quinze anos. 

- Ah, com essa idade a senhora já fazia esse tipo de leitura...  Mas eu, já uma mulher feita no alvorecer dos meus dezoito anos, não posso sequer dar opiniões sobre liberdade feminina. 

- Sempre te dei liberdade, filha, tanto para ler quanto para poetizar. Só não gosto quando te envolves em assuntos relacionados entre mim e teu pai. Do meu casamento, cuido eu. Naquele cenário mágico também descobri a trova medieval. Estilo poético que me inspirou a escrever versos num simples caderno que acabou se tornando o meu pequeno tesouro. Naquele caderninho que agora é teu – disse Ana, com ternura. 

- Deverias voltar a escrever. Tens talento para a poesia. 

- Não, filha, meu tempo de sonhar acabou. 

“Belos dias eram aqueles, pensa dona Ana”.

- E o que fizeram dessa tal biblioteca mágica? Nunca me falaste dela. 

- Pois agora falei. Outra hora conto mais. E chega de nostalgia. Tenho que preparar o jantar. Me ajuda, filha? - diz Ana interrompendo os próprios pensamentos ao lembrar da assombrosa imagem do dia em que viu a biblioteca ser comida pelo fogo, graças a ignorância do seu marido.

- Claro, minha mãe.

“Instruída, bondosa, bonita... Como pode casar-se com alguém tão rude quanto o meu pai?”

Será que aqueles livros escondidos na dispensa já fizeram parte dessa mesma coleção literária? “Se perguntava Isadora, intimamente, enquanto acariciava o focinho do Costelinha.

Fonte:
Capítulo enviado pela autora.

Nenhum comentário: