sexta-feira, 7 de julho de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (Zona de impacto)

O MENINO ENGRAXAVA sapatos no centro da cidade, e, naquele momento, cruzava a ponte voltando para casa com a sua caixinha debaixo do braço. De repente, seus olhos argutos e muito vivos avistaram a peça que descia, rio abaixo, ao sabor do vento morno da tarde ensolarada. Como um doido danou a correr gritando para o pessoal que bebia cerveja na birosca do Waldemar, em torno de um outro grupinho que tocava cavaco, surdo, reco-reco e pandeiro:

— O sofá, o sofá, venham ver, o sofá!...

A rapaziada se pôs de pé e acorreu para onde o moleque apontava o precioso achado.

Em pouco tempo, uma multidão incontável de moradores da Favela do Elefante, ao ouvir os berros e perceber o corre – corre, engrossou a massa dos curiosos. Era assim: qualquer novidade mudava o quadro daquelas famílias pacatas e humildes. Num abrir e fechar de olhos, o cotidiano saia do marasmo e explodia para uma espécie de alvoroço inusitado. A miséria se escondia num canto, e, em seu lugar, nascia o momento mágico do irreal e do ilógico. Saídos de ruelas e becos os mais diversos, homens de bicicleta e sem camisa, mulheres com crianças no colo e agarradas às barras de seus vestidos imundos, paravam os afazeres.

Os comerciantes cerravam as portas de suas vendas e lojinhas para se juntarem à raia miúda que, em polvorosa, se acotovelava em fila tripla, espalhada por toda a extensão ribeirinha com a finalidade de bisbilhotar o que o rio trazia em seu leito. Misturado em meio a tubos de óleo, pedaços de sacolas, sacos plásticos, latas de cerveja e refrigerante, garrafas descartáveis, restos de acampamentos e piqueniques, lá vinha, boiando, meio capenga, o enorme sofá vermelho de courvin. Nessa altura, alguém lembrou de chamar o Rubião Mathias, líder comunitário que, junto com um vereador local e um representante do prefeito, faziam um trabalho voluntário exatamente no sentido de conscientizar os cidadãos da periferia a não jogarem dejetos no velho rio, que às vezes, dava a impressão de estar morrendo em lenta agonia.

A bem da verdade, não estava. Quando chovia por muitas horas, a favela virava um inferno. Se o temporal perdurasse por muitas horas, as águas subiam acima do nível normal, atravessavam o asfalto, engarrafavam o trânsito, invadiam os barracos e muitas vezes deixavam famílias inteiras ao desabrigo. Afora o desespero de perderem o pouco que possuíam, a tragédia, nessas ocasiões, não vinha sozinha. Trazia, consigo, a desgraça e a incerteza de um amanhã cheio de dores. A maioria das cabeças-de-porcos que ocupava praticamente todo o terreno no qual se fundava o vilarejo dos casebres, fora construída com caixas de papelão envoltas em plásticos e cobertas, a depois, com folhas de zinco.  

Muitas vezes essas construções precárias não resistiam ao temporal, e, em consequência, vinham abaixo e, com elas, à desoladora infelicidade de radicados aparecerem mortos – vez que, na hora do furdunço (tentando resgatar um aparelho de teve, roupas de cama e até comida), não atinavam com o bom senso de largarem tudo e escaparem em tempo de salvar a própria pele. Mas, nesse dia, não havia chovido. O cotidiano transcorrera calmo e sossegado. O rio apresentava um curso coberto por uma película oleosa, onde uma variedade de micro-organismos perigosos proliferava à céu aberto. Sem contar nos cinco milhões de metros cúbicos de sedimentos, dejetos e efluentes de esgotos industriais e domésticos, bem ainda coliformes fecais e descargas de outros afluentes que terminavam se juntando a ele, a rotina seguia a sua prossecução normal.  

Não tivesse, igualmente, o pestinha dado o alarme, a favela findaria o resto da tarde em clima de total imperturbabilidade:

— O Sofá, o sofá. Venham ver!...         

O que teria de tão extraordinário e estupefaciente naquele cacareco mal-ajambrado, para movimentar uma centena de desocupados e vadios em torno de sua presença? Por que a favela, em peso, se levantou num salto gigantesco para lhe colocar os olhos em cima? Não se constituía, o agastado trambolho, apenas num velho móvel vermelho à base de fibras sintéticas de polímero à imitação dos couros? Que estranho mistério o envolvia? As respostas se ocultavam condensadas num fato acontecido algumas semanas atrás. Um traficante conhecido como “Chiquinho Fumaça” havia sido preso junto com seu bando num arrastão que a polícia fizera, sem aviso, em sua brejada.

Os representantes da lei, contudo, não encontraram nada do que procuravam, ou seja, pinos de cocaína, pedras de craque e maconha. O “Chiquinho” comandava uma boca de fumo da pesada, no coração da favela, mas, na hora do “pega pra capar”, não havia nada que o incriminasse. O sujeito parecia ter trato com a “Coisa Ruim.” Algumas horas antes de ser levado para a carceragem, como que adivinhando e antevendo os acontecimentos, operou um processo rápido e rasteiro de “engravidamento” no divã, ou seja, acondicionou tudo que se relacionava ao seu comércio ilegal, numa espécie de fundo falso e bem camuflado.

Contratou um carroceiro de fora da favela e transportou o “material”, incluindo dinheiro, joias e uma vultuosa quantia de dólares para a casa de uma de suas amantes que morava numa outra “paraisópolis”, não muito distante, também, por coincidência, à beira do mesmo rio e, cujo endereço até o próprio diabo desconhecia. O interessante, nessa história, é que a moça que recebeu o sofá sabia que o companheiro vivia às margens da lei, contudo, não atinava com o segredo valioso que ele escondia dentro de si.  Na segunda noite, contudo, o inesperado veio à baila. O “Chiquinho” apareceu enforcado misteriosamente em sua cela. Sua morte foi comentada em todos os jornais e programas de televisão.

A amante, logo que soube dos fatos, e, temerosa de se ver envolvida com a Federal, resolveu ir embora da cidade. Fez as malas e, antes de abandonar, de vez, o barraco, achou por bem “dispensar” o sofá, atirando o seu esqueleto às águas correntes do rio. Quando a notícia da morte de “Chiquinho” se espalhou pelas malhas do Elefante, muita gente, na calada da noite, resolveu tomar posse dos bens do falecido. Todos sabiam que o camarada tinha culpa no cartório.  Só não entenderam como os cachorrinhos da lei não o flagraram com a boca na botija.  Em meio a tanto disse-disse, a vizinhança e os próprios colegas de infortúnio, por unanimidade, concluíram que o espertalhão havia “enxertado”, de alguma forma, a estrutura interna do velho sofá vermelho e sumido com ele, sabe Deus, para onde.

A prova disso, é que os bobocas da lei ficaram de mãos abanando, a ver navios. Depois de alguns dias, caso passado, outros investigadores retornaram à favela a fazerem perguntas. Claro, que uma cáfila de gente lembrou do carroceiro e da carroça fretada. Claro que uma manada de bocós chegou a ver, realmente, o sofá vermelho saindo, numa boa, tranquilo, sem atropelos. Porém, nesses lugares, ainda impera a lei severa do silêncio. Conclusão: mesmo que algum idiota tivesse visto ou presenciado qualquer tipo de manobra estranha, faria, com certeza, vistas grossas, ou colocaria um zíper na língua para não ser assassinado e amanhecer com a fuça cheia de formigas.

Entretanto, na tarde daquele dia, o porra do menino voltava da cidade onde trabalhava engraxando sapatos. De repente, no meio da ponte, seus olhos argutos e muito vivos avistaram a peça que descia, rio abaixo, ao gostoso do vento morno da tarde ensolarada. Sem conter as travas da língua, se abriu em alardeios tonitruantes que ecoaram por toda a geografia do sofrido complexo da área “slum”:

— O sofá. Venham ver. O sofá do Chiquinho está vindo ali, venham, venham depressa...

Tanta gente se fez ao rio, como moscas ao mel, urubus à carniça, pombos à migalhas de algumas guloseimas, que, em menos de cinco minutos, a velha bugiganga, como por encanto, desapareceu.

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Texto enviado pelo autor

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