O senhor Antônio chegou apressado da lida, pedindo que sua esposa apressasse o almoço.
- Que pressa é essa, homem? – perguntou dona Ana.
- Nada de indagação,” muié”. Tô com pressa e pronto.
- Vais viajar, pai? - indagou a filha.
- Sim. “fia”. Daqui a pouco me mando pra Cachoeira.
- De novo? Não sai mais da cidade, Antônio! - reclama a esposa.
- “Arguém” tem que cuidar dos “negócio” - disse o velho rabugento. Ah, e me faz uns “ovo frito”, farofa e café pra eu levar na viagem, continuou ele.
- Está bem, meu marido. Faço o que me pedes.
Aposto que o motivo da viagem é mulher. Pensou Isadora, sempre muito preocupada com sua mãe.
O almoço é servido e o senhor Antônio comeu com voracidade. Pegou o lanche. Se despediu da mulher e da filha dando em cada uma um beijo na testa e sumiu porta afora.
Dona Ana se posicionou na pia para lavar a louça e a filha, sentada ao degrau da porta da cozinha, junto do Costelinha, abriu um caderno e docemente leu um de seus poemas em voz alta:
“A guria e o espelho”
Mirando-se no espelho,
ela enfeita o cabelo com uma flor vermelha.
No espelho da parede, enxerga sua alma sonhadora ... Faceira...
O refletor quer sugá-la, não para dentro dele,
mas para dentro dela.
Não resistindo aos truques do espelho, ela se deixa levar.
No decorrer da viagem se depara com uma santa
coberta da cabeça aos pés, por um manto de linho em fios de ouro que docemente lhe estende a mão direita e diz :
- Vem. Quero mostrar-te a linda cidade que vive no interior do teu coração.
A moça se deixa conduzir e de repente se vê num lindo lugar,
todo florido, perfumado, cheio de crianças a brincar.
Ao vê-la, uma menina a ela oferece uma flor.
Depois, a bela adentra uma rua onde se depara com mulheres sorridentes,
livres e cheias de opiniões a respeito de tudo.
A prenda conversa com uma delas que lhe diz:
Não tenhas medo. Sejas plena. Sejas feliz, moça bonita!
O dia foi passando. E, ao entardecer,
a santa cujo nome ficou em segredo, a levou em um baile.
O fandango estava lindo. Prendas e peões dançavam sem parar.
Teixeirinha, uma canção para ela se pôs faceiro a cantar.
E repentinamente um peão a tirou para uma dança.
Ao passo que dançavam, a magia do amor os envolvia.
Pois ali estava o amor que ela escolheu para sua vida.
Pena que depois de tudo, o espelho cospe a prenda da flor no cabelo, para fora,
e a entrega de volta à realidade onde as mulheres sofrem.
Mas que, em seus corações, são assim... Livres e plenas em suas verdades!
- A personagem do poema és tu, Isa? perguntou a mãe, sorrindo.
- Sim, mãe. Sou eu - disse ela em tom de desânimo.
- Filha, em alguns fandangos tu já tens dado o ar da tua graça. Isso não é bom?
- Mas o pai me leva nas festas à espera de encontrar um marido para mim. Um marido escolhido por ele. Não pode sequer saber que escrevo poemas.
- Sonhes menos e vá passear um pouco. Que tal fazer uma visita à tua amiga, Enila. Tem dias que não vais lá.
- Vou aceitar o conselho, mãe querida. Vou mandar encilhar o Relâmpago e visitar a vizinha Boitatá e matar a saudade da minha amiga.
Enila, com seu cabelo ruivo, olhos azuis e sorriso cheio de meiguice, refletia em seu falar, em seu jeito de agir, toda a calma da qual a natureza de Isadora necessitava. Ela nascera meses antes da amiga.
A cumplicidade entre elas foi uma semente que cresceu fértil no solo sagrado da mais pura amizade. Uma estava sempre pronta para ajudar a outra, independente de qualquer dificuldade. No entanto, em nada se pareciam.
Seus pais, senhor Francisco Fiore, e dona Eliana, tinham visões de mundo opostas aos dos pais de Isadora.
Faziam questão de dividir as responsabilidades referentes aos negócios relacionados ao plantio de arroz da fazenda.
Tinham estabelecido um acordo de que a filha só se casaria no dia que se apaixonasse de verdade.
Assuntos sobre casamento arranjado para eles, era um costume ultrapassado.
O casal também tinha um filho homem, Bruno, sete anos mais velho do que a filha. Ele seguiu a carreira militar e por isso, pouco aparecia em casa.
A família tinha posses, mas conservava-se muito simples no trato com as pessoas e na maneira de enxergar a vida. Seu Fiore, era bisneto de imigrantes italianos vindos para a região Sul do Brasil. Sua origem familiar era muito pobre, mas com esforço, comprou uma pequena porção de terra e, aos poucos, foi investindo e amplificando os negócios. Quando se deu por conta, já tinha uma fazenda em seu nome, com plantações de arroz e criação de gado.
As terras de Boitatá tinham as bênçãos de Deus orvalhadas a rolar naquele tapete fértil, chamado chão. A família Fiore sabia preservar a união, a educação, a bondade e a chama da alegria em seu viver. E por isso eram tão felizes.
Enila repousava no sofá da sala, quando Isadora bateu à porta. Dona Maria, empregada dos Fiore, uma negra velha, que por ser muito corpulenta tinha entre os mais chegados, o codinome de vó gorda, a recebeu com seus braços fofos abertos.
- Oi, “fia”, Está bem? - perguntou ela.
- Sim, vó. Onde está a minha amiga?
- Entra e senta, “fia”. Vou chamar a guria Enila e preparar um chá pra ti.
- Não. Obrigada, vó Maria.
- Vou fazer sim. A guria tá com a cuca cheia de caraminholas e com o coração apertadinho que só vendo... Vou fazer uma mistura de ervas pra mandar esses pensamentos tristes embora.
- Como podes saber das minhas angústias? - perguntou Isadora, surpresa.
- Isso não importa. - disse a empregada rindo e agitando os braços.
A verdade é que dona Maria ou vó gorda, como também costumava ser chamada, conservava certos costumes e credos dos seus antepassados, Jejês e Nagôs, que assim como seus avós, foram escravos e adeptos das crenças de matrizes africanas, cultivadas até os dias de hoje nos famosos centros de Batuques em todas as regiões do estado do Rio Grande do Sul.
Ela tinha um ar descontraído e ao mesmo tempo misterioso. Parecia ler os pensamentos das pessoas e sentir as dores dos corações aflitos.
- Está bem. Aguardo o chá.
- Que bom que vieste. Meus pais estão em viagem. Estava me sentindo um pouco sozinha. Trazes novidades? - disse Enila.
- Não. Na verdade os problemas lá de casa só pioram. A mãe mesmo em casa, descansa cada vez menos. O pai sai e demora cada vez mais a chegar. Mas tudo bem. Não vim aqui para falar de tristezas, mas sobre o baile acontecerá de sábado, no CTG Bonifácio Gomes.
- A notável trovadora Doralice Gomes da Rosa e a encantadora Neoly de Oliveira Vargas fazem parte das atrações do evento. Serão as juradas de um concurso de poesias.
- Escuto os poemas pela rádio. São muito talentosas. Estou precisando dançar, ver gente. Me sentir viva! - disse Isadora ao expressar um olhar de preocupação.
- És a pessoa mais cheia de luz que conheço, Isa. Livre em teus pensamentos, corajosa, cheia de planos. Muito diferente de mim. Te admiro tanto, querida. Não te deixes abater. - pediu a amiga com ternura.
- Vamos falar sobre você. Como vai o namoro?
- Bem sabes, Júlio é um rapaz maravilhoso. Ele vem para o baile! O amo de verdade! Pretendemos nos casar no decorrer do próximo ano. Porém, antes, precisamos pensar no noivado. Sem pressa, um passo de cada vez, tudo à sua hora. Mas quero saber de ti.
- O que dizer sobre mim?... Há em meu peito tantos anseios, pressas e rebeldias. Temo que estas tais horas certas para os bons acontecimentos do destino não existam. Quero eu mesma, poder fazer as minhas horas certas.
- Temos a vida toda pela frente, Isadora, aquiete o teu coração...
Enquanto as amigas conversavam, Vó Gorda, lá da cozinha, num misto de orações e conversas, separava suas ervas para o chá. E pouco tempo depois, retornou à sala para servi-lo.
- Tome o chá todinho. É feito com alecrim, hortelã, erva doce e mais um segredinho da “veia” aqui ... - disse ela ao esboçar um risinho misterioso.
- Obrigada, vó. Vou tomar sim. Está cheiroso.
- Pelos teus olhos eu vejo que a guria viverá um grande amor.
- Vó gordinha do meu coração, para com essa mania de prever o futuro e de ficar por aí, benzendo as pessoas. Se o padre Orestes descobre, lhe excomunga. - disse a ruiva a sorrir.
- Vês mais a meu respeito? - indagou Isa.
- O sofrimento gosta de ti, “fia”. Quer te roubar pra ele. Mas a tua coragem junto da tua alegria de viver, te fará vencedora. Tenha fé. Vem peleia feia pela frente, mas depois chega bonança.
- Tá bom, vó, volte para a cozinha e deixe-nos conversar. - pediu Enila.
- A ‘véia” já tá saindo.
As moças voltaram a falar descontraidamente sobre amor, bailes, família e coisas do cotidiano.
No fim da tarde, ao voltar para casa, Isadora foi até o jardim da sua fazenda, sentou numa pedra e relembrou as palavras da velha benzedeira “Tão bom seria se realmente existisse um amor vindo em minha direção. Um amor verdadeiro, que pudesse me completar”. Pensou ela. Depois ficou a observar a felicidade simples dos pássaros, das flores, das borboletas, que em apenas quarenta e oito horas de vida, elaboram a sua eternidade. Sorriu, encantada, fez uma breve prece agradecendo a Deus a beleza da vida. E sentindo-se um pouco mais revitalizada, tirou um pequeno caderno de anotações de dentro da blusa e desabafou seus sentimentos em versos.
Sem liberdade, a vida é menos vida.
Eis, os pássaros, sem suas asas para contar...
Para que uma missão seja cumprida
é preciso voar, voar e voar ...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
continua…
Fonte:
Enviado pela autora.
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