A terra estava ainda mole do Dilúvio, mas começavam a rebentar já, aqui e ali, as sementes das plantas resistentes. E como já houvesse no solo libertado das águas alimento bastante para a bicharada salva da inundação, resolveu Noé, naquela manhã de grande sol e de grandes ventos, abrir as portas da arca, encalhada na areia.
- Primeiro os veados. - ordenou o Patriarca.
Jafet correu à proa da embarcação, espantou um casal de gamos que devorava uns restos de palha espalhados nas tábuas, e os dois animais pararam em disparada, estalando os cascos luzentes no soalho escuro do tombadilho.
- Agora, os leões.
Cham instigou, cauteloso, um leão e uma leoa que piscavam os olhos fulvos a claridade intensa do sol, e as duas feras saltaram no areal ainda úmido, gravando com força, na terra empapada, as quatro patas de unhas fortes.
E assim foram saindo, dois a dois, os camelos, os cavalos, as zebras, as girafas, os bugios, os tigres, os ursos, os castores, Os cães, as águias, os milhafres, as cotovias, tudo, em suma, que devia constituir, mais tarde, o ornamento da terra ou do ar.
Deserta a Arca, notou Noé, ao passar-lhe revista, que no lugar em que estivera o elefante, ficara empestando o ambiente um monte de imundice, de lama pútrida, que repugnava.
- Sem? Cham? Jafet? - gritou o velho, chamando os filhos.
Os rapazes acudiram, tapando o nariz.
- Tirem daqui esta indignidade. - ordenou.
Os futuros construtores de Babel entreolharam-se, horripilados com aquela incumbência nauseante. E iam principiar, obedientes, o trabalho penoso, quando o pai, compreendendo-lhes o escrúpulo, mandou que se abstivessem. Tinha-lhe acudido uma ideia: estendeu os braços no rumo do monte de esterco, e ordenou:
- Move-te!
A montanha de imundice estremeceu por si mesma, ergueu-se acima do soalho alguns centímetros, suspensa por quatro pés invisíveis.
O Patriarca estendeu os braços e, novamente, determinou:
- Retira-te!
O monte de lama podre partiu correndo, buscando misturar-se com a lama que ficara das águas.
Tinha nascido o porco.
Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
Disponível em Domínio Público.
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