sexta-feira, 21 de julho de 2023

Humberto de Campos (O Porco)

(Lenda muçulmana)

A terra estava ainda mole do Dilúvio, mas começavam a rebentar já, aqui e ali, as sementes das plantas resistentes. E como já houvesse no solo libertado das águas alimento bastante para a bicharada salva da inundação, resolveu Noé, naquela manhã de grande sol e de grandes ventos, abrir as portas da arca, encalhada na areia.

- Primeiro os veados. - ordenou o Patriarca.

Jafet correu à proa da embarcação, espantou um casal de gamos que devorava uns restos de palha espalhados nas tábuas, e os dois animais pararam em disparada, estalando os cascos luzentes no soalho escuro do tombadilho.

- Agora, os leões.

Cham instigou, cauteloso, um leão e uma leoa que piscavam os olhos fulvos a claridade intensa do sol, e as duas feras saltaram no areal ainda úmido, gravando com força, na terra empapada, as quatro patas de unhas fortes.

E assim foram saindo, dois a dois, os camelos, os cavalos, as zebras, as girafas, os bugios, os tigres, os ursos, os castores, Os cães, as águias, os milhafres, as cotovias, tudo, em suma, que devia constituir, mais tarde, o ornamento da terra ou do ar.

Deserta a Arca, notou Noé, ao passar-lhe revista, que no lugar em que estivera o elefante, ficara empestando o ambiente um monte de imundice, de lama pútrida, que repugnava.

- Sem? Cham? Jafet? - gritou o velho, chamando os filhos.

Os rapazes acudiram, tapando o nariz.

- Tirem daqui esta indignidade. - ordenou.

Os futuros construtores de Babel entreolharam-se, horripilados com aquela incumbência nauseante. E iam principiar, obedientes, o trabalho penoso, quando o pai, compreendendo-lhes o escrúpulo, mandou que se abstivessem. Tinha-lhe acudido uma ideia: estendeu os braços no rumo do monte de esterco, e ordenou:

- Move-te!

A montanha de imundice estremeceu por si mesma, ergueu-se acima do soalho alguns centímetros, suspensa por quatro pés invisíveis.

O Patriarca estendeu os braços e, novamente, determinou:

- Retira-te!

O monte de lama podre partiu correndo, buscando misturar-se com a lama que ficara das águas.

Tinha nascido o porco.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
Disponível em Domínio Público. 

Nenhum comentário: