domingo, 23 de julho de 2023

Renato Benvindo Frata (Farinha de Festa, ingratidão do tempo)

Nasceu Maria de Jesus, ascendeu à escola pela merenda e se tornou mulher desde nova, passando a "prosear" com nove anos: primeiro com o mascate rendeiro que lhe deu vestido pra compensar a dor e o espanto sanguinolento da defloração; com meninos da escola em troca de balas doces pra amenizar as lombrigas; com rapazotes de lanches comprados na venda; com homens para matar a fome diante de um prato de sarapatel e com velhos nos alpendres, em busca de pouso e para recostar o corpo mirrado, "pruquê proseá é a coisa mais boa da vida..." Dizia sem medir sentimentos, coração curtido ao sol da vida ingrata.

Farinha de festa virou e se deitava com quem se dispusesse compensar o agrado. Cotovelos fincados no balcão a vender o corpo por dose de vermute, que dona de classe não bebe pinga e nem cospe no pé do freguês. Que fiar torcendo fio ou rendar trama de renda, que nada; não era mulher de consumir os dedos na roca, nos bilros e nos alfinetes.

"Pra quê trabaiá se proseá é bem mais melhor de bão”. Empinava o nariz e saía faceira à caça de aventura.

Ficou velha aos dezessete. Nem o corpo magro de mostrar ossatura, nem os cambitos riscados de espinhos que de sensual tinham nada impediram embuchamentos por causa das prosas, mas conseguiu que vingasse o João Antonio Leandro Altevir de Jesus. Os outros, sem dar sinal, escorreram pernas abaixo quando ainda do tamanho de fiote de sagui, tão fraquinhos, e ficaram ali mesmo na areia que não compensava enterrar. O choro de mãe vinha, ficava e se ia qual ave de arribação, o outro dia era outro dia.

Colocou logo um bando de nome no menino - e colocaria mais se o do homem do registro deixasse - não lhe sabendo o pai, vai que um deles por agrado o acolhesse por filho, e a ajudasse cuidar? Mas quê: queriam só prosear. E o proseio que podia ser rápido num cisco do trisco quando se engana patroa, ou demorado de dormir juntando coisa com coisa - mas nada de agarrar querência ou afeição resultava só a ingratidão da vida que passa como foguete de São João, pois quenga farinha de festa nunca recebe arreglo. - Desgraçada a vida de quenga.

Hoje, cabeça assentada e sobrenome Assunção do Espírito Santo ganhado de Malaquias no casamento com tudo o de direito mediante promessa de respeito, jeito e prosa gostosa que à casada se obriga, Toinha senta à porta, roca num dia fiando e, com almofada no outro entre as pernas rendando, abre sem pensar a goela e canta: "Fia, fia minha roda/ Pra acabá com esse algodão/ Pra fazer muita roupinha/Pra dona da fiação", e: "Olê muié rendeira/ Olê muié rendá/ Tu me ensina a fazê renda/Que eu te ensino a namorá" Nem lhes sabe o preço da mercadoria quando chega o mascate que paga miúdo. E sai se rindo o vadio. Vida fuleira a de rendeira.

Olha para o tempo, céu quarado - será que vem chuva? -, põe reparo nos urubus que se assentam no galheiro da peroba acolá e suspira arretada, mãos na anca. Levanta e vai quentar o grude do Malaquias que lhe manda levar as partes para prosearem gostoso antes do sono chegar.

Maria de Jesus Assunção do Espírito Santo não carece de passado, não carece de futuro. Por pirraça fia o fio cantando, tece renda rendando; assim, engana com trabalho o tempo malvado. Fia fios de canção, tece trama de sons, remata fios de renda em tons.

Fonte:
Enviado pelo autor.
Renato Benvindo Frata. Azarinho e o caga-fogo. Paranavaí/PR: Eg. Gráf. Paranavaí, 2014.

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