quarta-feira, 26 de julho de 2023

Marques de Carvalho (Um como tantos)

Haviam já passado para Nazareth, de volta do Vero-peso, os derradeiros bondes do espetáculo. A pouco e pouco, os peões tinham rareado no cimento dos largos passeios das avenidas, — o trânsito fizera-se nulo, um ou outro noctívago impenitente andava errante à sombra propícia das folhudas mangueiras, investigando a distância com olhares incendidos de uma ponta de lubricidade contida a contra-gosto. Nos renques da iluminação elétrica manifestavam-se eclipses intermitentes, contra os quais praguejava, sem bem saber porquê, o cocheiro de uma carruagem estacionada em frente ao Club Universal. Poucas mesas restavam no terraço do Café Riche. Entretanto, um criado sonolento, não obstante a ausência de frequentadores, persistia, pelo hábito, em dispô-las em simetria, rodeando-as de cadeiras. O chão estava zebrado de umidades adocicadas, escorrido de Apolinaris transbordante, coalhado de rolhas, aqui e acolá brilhante de pedaços de cápsulas das garrafas de cerveja. Perto, gania um cão. Mas outro cachorro irrompera do centro da enorme praça, viera em linha reta, cabeça baixa e cauda erguida, para junto daquele e, após as rápidas saudações peculiares, foram-se ambos, General Gurjão a baixo. Libérrimos animais!

Silvério, meio voltado para a esquerda, acompanhara-os com a vista, distraidamente; até desaparecerem na silente escuridão da rua. Estava sentado num banco, havia muitas horas, defronte da curva dos bondes. O olhar avistara um cartaz colado à parede da Casa Adolpho: uma parisiense, com a saia batida pelo rijo vento de Montmartre, puxava um carro-anúncio, formoso preconício (propaganda) do estabelecimento. Pareceu-lhe que a sua situação moral estava em analogia com o quadro, afora os matizes garridos. Ele também andava atrelado ao carro da vida, fustigado e zurzido pelo tufão dos dissabores domésticos. As tintas, porém, com que se devera pintar a sua existência tinham de ser amassadas na palheta das desditas, — toda a gama sombria das cores carregadas, desde o roxo dos goivos ao negro da infelicidade.

Desviou a vista do obsidiante cartaz, pois não fora para atiçar tristes lembranças que saíra de casa. Bem ao contrário, necessitava de distrair o espírito, refrescar o cérebro na suave tranquilidade da noite, em plena praça. Tirou o chapéu, conservando-o na mão direita e estendeu os braços pelo espaldar do banco. A cabeça, de largas entradas, pendeu para trás: dir-se-ia um crucificado; e o olhar foi ao alto, cravou-se na insondável amplidão do espaço, ao fundo da qual fosforesciam estrelas, aos milhares. Afundou-se então na tremenda reviviscência dos seus infortúnios.

— Lá vai ela outra vez. - bradou alguém, à direita.

Silvério, com um estremecimento, voltou à vida exterior, buscando descobrir quem falava. Era o cocheiro, — o Cadete ou o Bruzegas, — à porta do Club, encarapitado na boleia, a denunciar em solilóquio cada intermissão na luz do foco elétrico mais próximo.

— Feliz mortal - murmurou Silvério, invejoso da despreocupação daquele homem.

O Riche, a cuja porta cabeceava o proprietário, estava sempre iluminado, e o servente, fatigado ao fim de ordenar mesas e cadeiras que ninguém desarrumava, ia toscanejando (cabeceando com sono), mesmo de pé, escorado à cerca de uma das mangueiras. Cessara todo o movimento de transeuntes. Os demais cafés da avenida haviam fechado. Pelas janelas abertas do Universal, desciam ondas da iluminação dos salões desertos. Nos dois passeios, varredores urbanos passavam sobre o cimento, em largos gestos, longas vassouras de sacaís (gravetos). E bem adiante de si, viu Silvério, ao meio do enorme quadrilongo, com o pedestal rodeado de fulgurantes globos elétricos, ereta no alto da desproporcionada coluna, a estátua da Liberdade, emergindo por sobre a folhagem da arborização.

— Liberdade! Não ser eu também livre! – murmurou suspirando. 

E, malgrado o seu empenho em distrair as ideias, voltou a concentrar-se nas magoadas recordações da própria desgraça. Casado há quatro anos, com uma compatriota, uma italiana, a quem aliás dera lugar em seu leito por um impulso de generosidade, ante a extrema pobreza dos pais dela, a breve prazo começou a verificar que disparidades capitais de gênios e educação os incompatibilizavam para a vida comum. A princípio, insignificantes arrufos chegaram a oferecer-lhe um sabor novo na existência: das pazes que se lhes seguiam vinha um renascimento de ternura, uma inefável delícia para a intimidade dos longos e mudos amplexos. Ilusórios aperitivos, tais amuos. Pouco e pouco avultaram, tomaram corpo, assumiram as proporções de graves pendências barulhentas. A mulher tinha a bossa da loquacidade desenvolvida; e, quando se enfurecia, eram intermináveis gritarias, que o desesperavam na razão direta do natural sossegado e taciturno do infeliz.

Agravou-se depois esta situação, já bem penosa, com a intromissão dos pais de Luíza. A sogra levou-lhe para o lar a contribuição de torturas inéditas. A cada gesto, a cada passo de Silvério, uma recriminação. Debalde buscava o pobre comprar a paz do lar a custa de pequenos presentes para seus três algozes: nada prestava, tudo de ínfima espécie. «Já viram homem com tal falta de gosto?» O Silvério experimentara ao princípio chamar à ordem a mulher, com o auxílio de raciocínios discretos, arriscados a medo, mansamente, meigamente. Entanto, por amor dos dois filhinhos que tinham surgido entre acessos de raiva e curtas calmarias, sacrificou todo o resquício de sua virilidade moral: recolheu-se ao impassível silêncio de quem aceita resignado a brutalidade do destino. Quando rebentavam-lhe no lar os grandes temporais, recolhia-se a um quarto, embrulhava-se na rede, tapava ambos os ouvidos. E mulher e sogra, espicaçadas pela inesperada evasiva, iam levar-lhe a saraivada das injúrias superagudas, esganiçadas em falsete, — enquanto o sogro, impando (ofegando) da farta bona-chira (farta mesa) de malandro obeso, fazia em voz cava os soturnos trovões das ameaças: «Hei de quebrar-te as pernas, cão!»

Todo o seu afeto reverteu para as duas crianças, um pequeno e uma rapariguinha adoráveis, que chegavam a ter graça, tal a sua candidez, mesmo repetindo em tímidos balbucios as caluniosas exclamações da velha: «Papai é mau! Papai é feio!»

Feio, sim, e não era por sua vontade que nascera com uma caraça espalmada, que o sol da América do Sul tostara duramente. Mau, porém, não; e em silêncio protestava contra o qualificativo. Dizia-lhe a consciência não ser merecida a apóstrofe; contudo, sem escorraçar os meninos com a mais leve sombra de censura, tomava-os ternamente pela cinta, sentava-os ao colo, um em cada joelho, acariciava-os de manso, amimava-os, cobrindo-os de beijos e de silenciosas lágrimas.

De tudo isto lembrava-se o desditoso Silvério, inerte no banco da avenida, as pernas entorpecidas pela demorada imobilidade. Ainda há pouco, ao anoitecer, houvera em casa uma terrível cena. Persuadira-se Luíza estar o marido auferindo grandes lucros numa indústria inaugurada meses antes, lucros que desviava às ocultas para a Europa. E deu para exigir-lhe «a sua parte no negócio». Sogro e sogra tinham acudido com argumentos e gritos: «De certo, é preciso pintar já para aqui os cobres!» E, desenvolvendo preceitos jurídicos, explicava o velhote que «a não cohabitação material dos cônjuges recolhidos sob o mesmo teto não impedia a co-participação na pecúnia». Dispensou-se de se desculpar, o Silvério e, para não irem mais longe os brados, que estavam já a incomodar a vizinhança, tomou dissimuladamente o chapéu, fugiu precipitadamente rua adiante, até a avenida. Ali, ao menos, estava fora da confusão alçada. Safa!

A vista da estátua suscitara-lhe a nostalgia da liberdade. Relanceou um olhar pelo passado, desde a sua chegada a Belém e pasmou de ainda sentir dentro de si o que se chama um coração e uma alma, após sofrimentos tão longos e tamanhos. Onde teria ele o bom senso, já revelado desde a adolescência, quando cometeu a leviandade de casar com Luíza? Nada o libertaria agora, porque a sua inteireza de ânimo, a sua correção nativa lhe vedavam o supremo recurso da fuga. Prendiam-no ao cepo abençoadas cadeias: os filhos, que eram os doces elos ligando o seu alvedrio (decisões) á desdita.

As crianças! Ele também fora pequenininho, descuidado e travesso infante, nas amplas veigas lombardas, rescendentes a rosmaninho. Criara-o a inesgotável ternura da velha mãe, e tinha sido ao som dos rudes ósculos bonachões do pai que ele, paparicado à porfia, encetara a soletração do singelo alfabeto das carícias familiares. Em casa, no antigo e pobre lar, tão arejado no verão e tão cheio de tépidos braseiros pelo inverno, quando o norte inclemente bramia ríspido nos olivais e carvalhais, só recebera edificantes exemplos de tolerância mútua entre esposos amantes, de respeito calmo, de intensíssima afeição. E na dupla contemplação do carinho de seus progenitores e da forte paixão com que o gado amava na pradaria, manhã cedo, ao abalar da arribana (choupana), iniciara Silvério, desde jovem, o seu grande sonho de um lar todo meiguices, em férvida ventura conjugal. O sonho fora deveras fugaz. Em pesadelo tornara-se depressa, nestes ardentes países americanos, onde tudo parece crescer, desenvolver-se e passar vertiginosamente. Aqueles saudosos tempos estavam longe, formavam um grupo separado, distinto, na vasta coleção de suas recordações de outrora. Presentemente, nada restava da tranquilidade em que se formara a sua adolescência, na Europa, nem dos esperançosos, dulcíssimos sobressaltos que chegavam a tirar-lhe o sono, retendo-o até alta horas da noite no sombrio tombadilho do vapor, quando fizera a travessia do Atlântico. Tudo fugira, na definitiva liquidação da sua felicidade.

Esta dolorosa introversão foi interrompida por um relinchar de cavalo. Olhou Silvério à direita, como voltando de um sonho. Tinham-se afastado os varredores, andava ainda no ar, peneirada na luz dos focos elétricos, a poeira levantada pelas compridas vassouras. Sempre aberto, o Universal manchava de claro a ramaria das mangueiras com a projeção das salas iluminadas. Em frente à porta, o cocheiro falava manso aos animais impacientados. E o criado do Riche, desperto pelo relincho, obtivera do patrão a ventura de um gesto, ordem muda para fechar.

Entrou Silvério a acompanhar-lhe com a vista os movimentos, as idas e vindas, mesas levadas aos pares, cadeiras conduzidas a duas e duas em cada mão. Feliz homem, esse criado, pensava, se não tinha a inenarrável desdita de possuir um inferno em vez de lar. Ia dormir sossegado, tendo trabalhado materialmente, — reparadoramente. De repente, atravessou-se-lhe uma ideia no cérebro. Erguendo-se num esforço, bateu forte com os pés no lajedo, para os desentorpecer, e chamou o servente:

— Deixe essa mesa, – disse - traga um conhaque.

E sentou-se, com esta sentença espipada (saliente) de sua ironia dolorida:

— O álcool é a mortalha da dor.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
João Marques de Carvalho. Contos do Norte. Belém/PA: Typographia Elzeveriana, 1907.
Atualização do Português por J. Feldman

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