domingo, 23 de julho de 2023

Francisco José Pessoa (Nem tudo que parece é…)

Era janeiro naquela borbulhante cidade maravilhosa. A madrugada acabara de abrir a porta para o novo dia. O sol ainda se espreguiçava. Na sala de parto da Maternidade São Lucas, um dueto comemora a liberdade. Cosme e Damião separam-se pela primeira vez após tranquila hibernação uterina. Palmadinhas providenciais — cenho franzido —, e logo um sorriso largo de mãe primípara dá boas-vindas aos recém-natos.

A felicidade dela se liquefaz em duas gotículas de lágrima. O pai assistira ao parto, atônito. Sua mudez fazia com que a cabeça agradecesse os parabéns dados pela equipe médica. Nem pensava na despesa dobrada que enfrentaria. Machista de se gabar, não cabia em si de contentamento por ser pai de dois machos. E de uma só tacada!

Pai de gêmeos, a comemoração foi dobrada. Três colegas de repartição, sem a estrela-guia, foram visitar os rebentos do amigo tal fizeram os Reis Magos. Um levou duas garrafas de cana da serra; outro, dois galetos assados e farofa; um terceiro, dois sacos médios de laranjas já cortadas em cruz. A comemoração varou a madrugada.

Cosme e Damião até a adolescência eram gêmeos também no vestir. Com o passar dos tempos, eles aos poucos, se separam mais uma vez em busca das suas individualidades. Chegada a época do alistamento militar, Cosme passa de primeira no teste de aptidão física. Incorpora-se nas fileiras do Glorioso. Damião é dispensado por não alcançar nota mínima nos testes físicos. E assim o destino constrói um abismo entre os dois.

Não tinham outros irmãos. Os dois, sendo filhos machos de uma só tacada, preenchiam o orgulho varonil do pai, que alardeava as qualidades deles, tanto na repartição quanto no bar do Pedim, onde se reunia com os amigos depois do expediente da sexta-feira.

Muda-se o curso do rio, mas não o destino das águas. Cosme dá baixa do serviço militar apesar do convite para engajar. A vida na caserna moldara sua disciplina. Guardou suas economias para matricular-se numa academia de boxe. Ser profissional desse esporte era seu sonho.

Damião, igualmente, poupou sua mesada para também matricular-se numa academia - de balé - sem que o pai soubesse. A mãe, sua confidente, estava ciente dos projetos do filho.

Cosme torna-se um aplicado atleta, ambição de ganho dos empresários.

— “Esse garoto vai longe", confessava seu treinador com um sorriso largo.

À noite, quando se reuniam para jantar, o pai ouvia com orgulho os relatos do Cosme sobre o treinamento do dia. Damião observava e palpitava vez ou outra para se fazer presente à conversa: — Pai, no Centro Comunitário vai haver um curso de dança que é dado por uns gringos. Ouvi dizer que eles oferecem bolsa de estudo para o exterior.

— Gringo ensinando samba.? Só faltava essa!

— Não, pai, é dança clássica. O senhor já ouviu falar em Lago dos Cisnes?

— Não ouvi e tenho raiva de quem já ouviu! Meu negócio é gafieira e samba no pé.

A conversa foi perdendo o rumo para o bem de Damião.

— Já saiu o resultado do bicho? Corre ali na banca e confere minha pule, diz o pai, desconversando.

Nessa noite, o pai machão não fechou os olhos. A tal da dança clássica não parava de zunir nos seus ouvidos. Na repartição, todos notavam seu abatimento. Na sexta-feira, não bateu o ponto no bar do Pedim. Quisera esconder-se dele mesmo, tamanha era a vergonha que o molestava.

Damião conseguiu matricular-se no curso da Comunidade com total apoio da genitora. Logo, logo, destaca-se entre os aprendizes de bailarino. Os gringos, de fala enrolada, apostaram no garoto. Mesmo a contragosto, o pai foi admitindo a ideia da tal bolsa de estudo. São Petersburgo, eis o destino do Damião.

Após três anos de comunicação com a família senão através de cartas, Damião confirma seu retorno ao Brasil.

No dia aprazado, toda a turma dirige-se ao "Tom Jobim". Chegam com duas horas de antecedência para curtirem o sobe e desce dos pássaros de prata.

- Vô, compra pipoca. Pedia angelicalmente Sofia, filha única de Cosme.

O avô coruja lhe presenteava com dois sacos da guloseima, um com casca, outro sem casca. E a carregava fraternalmente nos braços. Eis que surge no portão de desembarque, para espanto de toda a família, não somente o passageiro esperado. Damião trouxera, a tiracolo, sua mulher e dois filhos machos, feitos de uma só tacada. Era o presente não prometido para o pai.

E nova comemoração dobrada foi feita pelos colegas de repartição ao avô de gêmeos. Um levou duas garrafas de cana da serra; outro, dois galetos assados e farofa; um terceiro, dois sacos médios de laranjas já cortadas em cruz. E a comemoração varou a madrugada.

Fonte:
Enviado pelo autor.
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.

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