Nas manhãs frias de inverno, as mais congelantes de todo o país, os peões Juca, Simão, Pedro, Juliano, dentre outros, para se protegerem do frio, iam para a lida vestidos com ponchos pesados, feitos de pura lã, extraída das ovelhas da região. Juca, o capataz da fazenda, dava início às ordenhas bem antes do raiar do sol. Ele sempre foi o homem de confiança da família Machado, e também o motivo de muitos cochichos entre os colegas, pois corria à boca pequena (fofoca) que a sua esposa, Amélia, uma jovem descendente direta de indígenas, o traía entre os arrozais com o peão Simão, que não era mais jovem e nem mais bonito do que o capataz, mas fazia sucesso com as mulheres.
Mas esqueçamos os cochichos e voltemos a refletir sobre os encantos daquele lugar dadivoso, um dos ambientes mais graciosos de todo o Rio Grande do Sul.
Ao leste da fazenda, ficava a plantação de arroz. Ao oeste, foram construídos os currais e cocheiras que abrigavam numerosos animais, a maioria, bois, ovelhas e cavalos. Ao norte das terras, cultivava-se um jardim colorido, com flores de diversas espécies e árvores frutíferas. O constante bailado das borboletas e o afinado cantar dos pássaros compunham ali um cenário verdadeiramente divino. Isadora adorava aquele canto da fazenda. Ali, conversava consigo e tentava entender os desígnios da vida. Da vida como um todo. E da sua própria vida.
Ao sul, portal de entrada e saída, ficava o armazém "Peleando contra o Trago”. E ao lado, a escola onde Isadora estudou até que a professora, dona Almerinda, faleceu e o colégio teve as portas fechadas, deixando as crianças da localidade sem terminar os estudos.
Eram cinco horas da manhã, e dona Ana estava cheia de encomendas de aniversário a serem entregues no início da tarde. Sabendo que dificilmente daria conta do serviço sozinha, bateu à porta do quarto da filha.
- Isa, acorda! Preciso da tua ajuda.
- Já vou mãe! - respondeu a filha com voz de sono.
Ao entrar na cozinha, Isadora se deparou com a mesa lotada de preparativos para quitutes e com o fogão à lenha quase sem espaço para colocar tantas panelas.
- A senhora está fazendo doces para servir a um batalhão, minha mãe?
- Olha que coincidência: dois vizinhos de nossas terras estão aniversariando hoje.
– Minha mãe, isso é escravidão.
- Deixa de ser exagerada, filha. Estamos precisando de dinheiro, como bem sabes. Mãos à obra.
- Sim, eu lhe ajudo. Mas isso não está certo. A senhora é esposa de um rico fazendeiro. Na dispensa já falta comida. Onde o pai coloca o dinheiro que ganha? - indagou Isadora, com profundo desconsolo.
A mãe se calou. E ambas se concentraram nos quitutes.
Do lado de fora se ouvia o palavreado do Tagarela, papagaio de estimação, o latido do vira -lata, Costelinha, nome dado pelo seu aspecto muito magro... E o canto dos pássaros que adoravam pousar nos ipês que enfeitavam os arredores da casa.
Ipês, de flores brancas, rosas e amarelas. Os de copas amarelas eram as árvores favoritas da menina Isadora.
No intervalo dos trabalhos, quando as massas de bolos estavam assando, debruçada no parapeito da janela da cozinha, Isadora começou a dissertar um trecho de um texto do educador Rubem Alves, também, adorador da mesma espécie de planta:
“Gosto dos ipês de forma especial. Questão de afinidade. Alegram-se em fazer as coisas ao contrário. As outras árvores fazem o que é normal - abrem-se para o amor na primavera, quando o clima é ameno e o verão está para chegar, com seu calor e chuvas. O ipê faz amor justo quando o inverno chega, e a sua copa florida é uma despudorada e triunfante exaltação do cio”.
Lá pelas três horas da tarde, Ana e a filha estavam exaustas, mas com os doces e salgados prontos.
- Isa, chama o Juca para fazer as entregas.
- Está bem. Vou ver se o encontro. Mãe, agora trate de descansar um pouco.
- Vou tomar um banho e deitar um pouquinho - disse a mãe que, sem ânimo, acabou adormecendo na cadeira com a cabeça e os braços debruçados sobre a mesa.
Isadora correu a fazenda à procura de Juca. Ao vê-la passar, os peões pararam o serviço e, por instantes, se apegaram à ilusória felicidade de um dia poder apertá-la entre os braços.
A moça tinha consciência do encanto que despertava naqueles homens simples, sedentos de aventuras, e sentia-se lisonjeada por isso.
Achava graça em ver a cara de bobo de cada um e respondia aos seus acenos. Mas ao se aproximar, mesmo simpática, nunca aceitava ouvir cantadas.
Certa vez um jovem peão a convidou para sair. Mas, no mesmo instante ela cortou as intenções do pobre rapaz.
E quanto aos casados, com frequência, cochichava ao pé de seus ouvidos - pares de me olhar assim ... Senão conto tudo à tua esposa. E depois seguia com o seu jeito livre de ser... Como se nada estivesse acontecendo.
- Pedro! Viste o Juca? – perguntou ela.
- Não vi o companheiro ainda hoje.
- Bem. Então vou até a cocheira apanhar o Relâmpago. A cavalo o acharei depressa.
Pedro tirou o chapéu em sinal de reverência e respeito, mas logo espichou os olhos e se deleitou ao observar o balanceado do corpo da jovem patroa no seu distanciar frenético.
Na cocheira, Isa se deparou com Juca tentando salvar a vida de um potrinho.
- O que houve com o bichinho? - indagou ela preocupada.
- Encontrei o pobrezinho abandonado no meio da estrada. - disse o peão.
- Ele está muito fraco. Deve ser fome. Traz leite, Juca. Rápido.
O agregado obedeceu.
Eles tentaram fazer com que o animal se alimentasse, mas o bichinho rejeitou a mamadeira.
- Acho melhor chamar o veterinário Bernardo, senão ele vai morrer - disse Isadora - Ó Deus! Ao ver o animal assim, até esqueci. A mãe precisa que faças as entregas de umas encomendas com urgência. Manda o Juliano chamar o veterinário. Vou ficar aqui cuidando do pobrezinho.
- Mas o patrão não vai gostar de saber que a filha dele está enfiada entre os bichos e os peões dentro de uma cocheira. - alertou o atencioso capataz.
- Com o pai eu me entendo depois. Agora vai.
Isadora aguardou o socorro ao lado do potro. E relembrou que numa tarde semelhante àquela, quando tinha apenas sete anos e pode acompanhar pela primeira vez o parto de um potrinho, filho da Generosa, uma linda égua baia, a mais cara da criação, que morreu após dar à luz. Antes de fechar os olhos, observou o filhote de forma tão terna e doída. Naquele momento sentiu um arrepio de dor vindo daquela mãe que não era um ser humano, mas também possuía sentimentos. Desde aquele acontecimento, Isadora se apegou aos bichos. Especialmente aos cavalos, seus companheiros de andanças sem destino.
Infelizmente, a espera pelo veterinário foi inútil. No decorrer dos exames o animalzinho faleceu.
- Mal nasceu para a vida e já se encontrou com a morte, ao contrário do que aconteceu à Generosa - disse ela chorando.
- Quem é Generosa? perguntou o veterinário. Mas ela, com um nó na garganta, se manteve calada.
- Sei o quanto gosta dos cavalos, mas não podemos fazer mais nada. - afirmou o veterinário. Tu vives em meio aos bichos, e sabe que essas coisas acontecem.
- Sei. Mas evito estar presente.
Ao término daquele momento triste, ela tomou o seu Relâmpago e, galopando, desapareceu por entre as trilhas de terra da fazenda.
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continua…
Mas esqueçamos os cochichos e voltemos a refletir sobre os encantos daquele lugar dadivoso, um dos ambientes mais graciosos de todo o Rio Grande do Sul.
Ao leste da fazenda, ficava a plantação de arroz. Ao oeste, foram construídos os currais e cocheiras que abrigavam numerosos animais, a maioria, bois, ovelhas e cavalos. Ao norte das terras, cultivava-se um jardim colorido, com flores de diversas espécies e árvores frutíferas. O constante bailado das borboletas e o afinado cantar dos pássaros compunham ali um cenário verdadeiramente divino. Isadora adorava aquele canto da fazenda. Ali, conversava consigo e tentava entender os desígnios da vida. Da vida como um todo. E da sua própria vida.
Ao sul, portal de entrada e saída, ficava o armazém "Peleando contra o Trago”. E ao lado, a escola onde Isadora estudou até que a professora, dona Almerinda, faleceu e o colégio teve as portas fechadas, deixando as crianças da localidade sem terminar os estudos.
Eram cinco horas da manhã, e dona Ana estava cheia de encomendas de aniversário a serem entregues no início da tarde. Sabendo que dificilmente daria conta do serviço sozinha, bateu à porta do quarto da filha.
- Isa, acorda! Preciso da tua ajuda.
- Já vou mãe! - respondeu a filha com voz de sono.
Ao entrar na cozinha, Isadora se deparou com a mesa lotada de preparativos para quitutes e com o fogão à lenha quase sem espaço para colocar tantas panelas.
- A senhora está fazendo doces para servir a um batalhão, minha mãe?
- Olha que coincidência: dois vizinhos de nossas terras estão aniversariando hoje.
– Minha mãe, isso é escravidão.
- Deixa de ser exagerada, filha. Estamos precisando de dinheiro, como bem sabes. Mãos à obra.
- Sim, eu lhe ajudo. Mas isso não está certo. A senhora é esposa de um rico fazendeiro. Na dispensa já falta comida. Onde o pai coloca o dinheiro que ganha? - indagou Isadora, com profundo desconsolo.
A mãe se calou. E ambas se concentraram nos quitutes.
Do lado de fora se ouvia o palavreado do Tagarela, papagaio de estimação, o latido do vira -lata, Costelinha, nome dado pelo seu aspecto muito magro... E o canto dos pássaros que adoravam pousar nos ipês que enfeitavam os arredores da casa.
Ipês, de flores brancas, rosas e amarelas. Os de copas amarelas eram as árvores favoritas da menina Isadora.
No intervalo dos trabalhos, quando as massas de bolos estavam assando, debruçada no parapeito da janela da cozinha, Isadora começou a dissertar um trecho de um texto do educador Rubem Alves, também, adorador da mesma espécie de planta:
“Gosto dos ipês de forma especial. Questão de afinidade. Alegram-se em fazer as coisas ao contrário. As outras árvores fazem o que é normal - abrem-se para o amor na primavera, quando o clima é ameno e o verão está para chegar, com seu calor e chuvas. O ipê faz amor justo quando o inverno chega, e a sua copa florida é uma despudorada e triunfante exaltação do cio”.
Lá pelas três horas da tarde, Ana e a filha estavam exaustas, mas com os doces e salgados prontos.
- Isa, chama o Juca para fazer as entregas.
- Está bem. Vou ver se o encontro. Mãe, agora trate de descansar um pouco.
- Vou tomar um banho e deitar um pouquinho - disse a mãe que, sem ânimo, acabou adormecendo na cadeira com a cabeça e os braços debruçados sobre a mesa.
Isadora correu a fazenda à procura de Juca. Ao vê-la passar, os peões pararam o serviço e, por instantes, se apegaram à ilusória felicidade de um dia poder apertá-la entre os braços.
A moça tinha consciência do encanto que despertava naqueles homens simples, sedentos de aventuras, e sentia-se lisonjeada por isso.
Achava graça em ver a cara de bobo de cada um e respondia aos seus acenos. Mas ao se aproximar, mesmo simpática, nunca aceitava ouvir cantadas.
Certa vez um jovem peão a convidou para sair. Mas, no mesmo instante ela cortou as intenções do pobre rapaz.
E quanto aos casados, com frequência, cochichava ao pé de seus ouvidos - pares de me olhar assim ... Senão conto tudo à tua esposa. E depois seguia com o seu jeito livre de ser... Como se nada estivesse acontecendo.
- Pedro! Viste o Juca? – perguntou ela.
- Não vi o companheiro ainda hoje.
- Bem. Então vou até a cocheira apanhar o Relâmpago. A cavalo o acharei depressa.
Pedro tirou o chapéu em sinal de reverência e respeito, mas logo espichou os olhos e se deleitou ao observar o balanceado do corpo da jovem patroa no seu distanciar frenético.
Na cocheira, Isa se deparou com Juca tentando salvar a vida de um potrinho.
- O que houve com o bichinho? - indagou ela preocupada.
- Encontrei o pobrezinho abandonado no meio da estrada. - disse o peão.
- Ele está muito fraco. Deve ser fome. Traz leite, Juca. Rápido.
O agregado obedeceu.
Eles tentaram fazer com que o animal se alimentasse, mas o bichinho rejeitou a mamadeira.
- Acho melhor chamar o veterinário Bernardo, senão ele vai morrer - disse Isadora - Ó Deus! Ao ver o animal assim, até esqueci. A mãe precisa que faças as entregas de umas encomendas com urgência. Manda o Juliano chamar o veterinário. Vou ficar aqui cuidando do pobrezinho.
- Mas o patrão não vai gostar de saber que a filha dele está enfiada entre os bichos e os peões dentro de uma cocheira. - alertou o atencioso capataz.
- Com o pai eu me entendo depois. Agora vai.
Isadora aguardou o socorro ao lado do potro. E relembrou que numa tarde semelhante àquela, quando tinha apenas sete anos e pode acompanhar pela primeira vez o parto de um potrinho, filho da Generosa, uma linda égua baia, a mais cara da criação, que morreu após dar à luz. Antes de fechar os olhos, observou o filhote de forma tão terna e doída. Naquele momento sentiu um arrepio de dor vindo daquela mãe que não era um ser humano, mas também possuía sentimentos. Desde aquele acontecimento, Isadora se apegou aos bichos. Especialmente aos cavalos, seus companheiros de andanças sem destino.
Infelizmente, a espera pelo veterinário foi inútil. No decorrer dos exames o animalzinho faleceu.
- Mal nasceu para a vida e já se encontrou com a morte, ao contrário do que aconteceu à Generosa - disse ela chorando.
- Quem é Generosa? perguntou o veterinário. Mas ela, com um nó na garganta, se manteve calada.
- Sei o quanto gosta dos cavalos, mas não podemos fazer mais nada. - afirmou o veterinário. Tu vives em meio aos bichos, e sabe que essas coisas acontecem.
- Sei. Mas evito estar presente.
Ao término daquele momento triste, ela tomou o seu Relâmpago e, galopando, desapareceu por entre as trilhas de terra da fazenda.
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Enviado pela autora
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