sábado, 1 de julho de 2023

Carolina Ramos (Valente e Sultão...)

 Já àquele tempo, a fauna doméstica crescia, a exigir balanceamento.

 Malhado, vira-latas simpático, de pelo alvinegro e crespo, foi doado à "abuelita", mãe de meu pai, assim que chegou a nossa Valente.


Valente era uma cadela ruiva, alta, esguia... Fidalga!! Perfeita ladie a projetara imagem da futura Lassie, embora sem as largas manchas cor de ferrugem que consagrariam a atriz canina nas telas dos cinemas.

Em meus tenros anos, cheguei a questionar minha mãe, que lhe dera o nome de Valente, em memória de um cão terra-nova que lhe enternurara a infância. Alertei-a, com ares de futura professora:

- Ela é menina, mamãe! Em vez de Valente, não é melhor chamá-la de Valenta?!

Em tempos atuais, quem ressuscite alguma lembrança política, lembre-se, por favor, que a imaturidade dos tenros anos daquela garotinha impertinente, validava o tal questionamento.

Naquela ocasião, entretanto, algo imprevisto aconteceria:

- Um cãozinho obstinado, que em seus passeios vespertinos descobrira os encantos da Valente, deu de fazer serenatas apaixonadas lá no portão da garagem da nossa casa. Não, uma, duas... ou três vezes... mas sempre! Ou seja, desde que algum Cupido canino disparou sua flecha certeira no coração impulsivo do tal cãozinho, ele caíra de joelhos, por detrás daquele portão, tenazmente disposto a descobrir onde se escondia sua amada.

A princípio, não entendíamos o porquê daquela assídua pontualidade canina. Dúvida esclarecida no momento em que um garotão adolescente, morador nas redondezas - que regularmente buscava o cãozinho apaixonado várias vezes ao dia, levando-o, às turras, de volta para casa - expressou, em definitivo, a decisão de abandonar a luta.

Tudo cansa nesta vida... e o garoto, afinal, cansou-se de forçar a barra. Jogou a toalha... ou melhor, atirou a coleira ao chão, desabafando;

- Ele quer ficar aqui? - Pois que fique!!! O nome dele é Sultão. Não venho mais buscá-lo! - Bateu o pé... e não veio mesmo!

E, assim, por lá ficou o teimoso Sultão, por um dia e uma noite inteira, a atravancar a entrada da nossa garagem, testando a paciência de meu pai, cada vez que pretendia  guardar o carro.

Foi curto o impasse!

Logo, os olhos pidões do cãozinho teimoso acabaram por sensibilizar o dono daquele portão, aberto, afinal, com um acolhedor - Bem-vindo!

Tínhamos, a partir de então, um casal de cães, em realidade bastante contrastante.

Ela - alta, esguia, fidalga, como já descrita. Ele - um cara simpático, pelagem de cor mista, bege, marrom e preto - raça indefinida, pernas curtas, baixinho... e olhos incisivos... por demais sedutores! - que enfeitam a capa deste livro.

O tempo seguia a marchar em paz. Até que, num certo dia, aquela garota, que era eu, correu alarmada, clamando pela mãe, em busca de socorro:

- Mamãe!... A Valente vai morrer... ela está com uma bola de tripas se mexendo... do lado dela!!!

Minha mãe acudiu assustada... logo a acalmar a ingenuidade da filha:

- Não é nada, não... ela vai ficar bem. - E a garotinha enxerida foi afastada, para que não se aprofundasse em assuntos não aconselháveis á sua idade.

Até hoje, não sei o que realmente terá acontecido após aquele parto... e nem, também, que fim teria sido dado àquele conteúdo empelicado que viera à luz. Nego-me a pensar!

Sei, apenas, que o Sultão, sem questionamentos, foi despachado para a casa do "vô" Joaquim, pai de minha mãe, que residia bastante longe... lá na rua São Leopoldo, à entrada de Santos.

Contudo, não demorou muito para que a notícia preocupante viesse de volta: - Logo no segundo dia depois da chegada, aquele Sultão imprevisível, desaparecera da nova residência.

Deveria andar perdido por aí... Ou, quem sabe, caíra no laço da abominável "carrocinha", temível algoz dos cães vadios e alvo do ódio de toda criançada, em qualquer tempo.

Essa mesma carrocinha, da qual, certa vez, num rasgo de ousadia, tive a felicidade de abrir-lhe a porta, soltando, não sei como, todos aqueles infelizes passageiros de quatro patinhas, condenados a um passeio sem volta.

O que acontecera depois? Sei lá!

Tímida garota, mas sem deixar de ser esperta, sei que simplesmente sumi... Graças à balbúrdia provocada e na certeza de que acabara de fazer algo nadinha recomendável! - Por vezes, chego a duvidar da veracidade desse feito. Será que aquilo aconteceu mesmo? Ou, o desejo de que aquilo acontecesse era tão grande, que se configurou em minha mente infantil como realidade?! - Sei lá!

Quanto ao sumiço do cãozinho teimoso, o desfecho surpreendente não tardaria a acontecer. Três dias depois do desaparecimento, quem iria surgir, novamente, à frente daquele mesmo questionado portão da rua Alexandre Herculano?!

Palmas a quem, acreditou no estoicismo daquelas perninhas curtas e na tenacidade de um apaixonado Sultão decidido a ter reingresso no antigo lar.

Sim, lá estava ele, dias após ao instigante sumiço, com um palmo de língua de fora, de volta ao emblemático portão - pequenino herói, ofegante e faminto, com inconfundível brilho de vitória no olhar! Seus olhos pidões e a cauda freneticamente festiva orquestravam a certeza de ótima acolhida, em resposta ao retorno verdadeiramente sensacional!

Aquele cãozinho teimoso atravessara, heroicamente, o labirinto das ruas santistas, em busca de sua parceira! Sem bússola?! - Não... Levava consigo a mais precisa e preciosa delas todas - um coração apaixonado!

Cãozinho valente! Ele, sim, merecia esse nome. E com absoluta justiça!

Daquela vez. Sultão não se enganara.

Abertos, com alegre espontaneidade, aqueles portões deram entrada ao cãozinho raçudo que, sem "lenço nem documento", ou melhor, sem qualquer pedigree que lhe reabrisse portas, provava querer ser nosso a qualquer preço é o que aquele heroico retorno confirmava de sobejo, podendo ser configurado como verdadeira façanha!

E aquele heroico retorno, por sua vez, foi condignamente festejado com muita alegria, pelos moradores daquele lar, onde Sultão conquistou lugar definitivo.

Mas...

Fim da história? - Não!

Sempre que um mas, reticente e amargo, aparece, sabe-se que pode trazer com ele coisas jamais aceitas, principalmente, pela ingenuidade de qualquer criança, como neste caso.

Foi bem isto o que aconteceu. A volta do Sultão foi saudada com alegria, mas... Por conta desse retorno, um novo descarte aconteceu. Desta vez, foi a nossa querida Valente que se despediu, ou melhor, foi oportunamente despedida, sendo presenteada a uma família amiga.

A evitar choramingas, nunca me foi revelado o nome dessa tal "família amiga", e, muito menos, o endereço que acolheu aquela cadelinha Valente, nunca mais vista por mim.

Terminou, assim, melancolicamente, o singelo romance canino que, apesar da sua intensidade, teve curta duração. Sultão ficou muito tempo conosco. Morreu de velhice. Exatamente como deve morrer um velho sultão – cercado de desvelos e carinhos.

Embora morresse solitário, sem o seu "harém", ou tão somente sem o seu grande amor, que lhe foi sumariamente negado pelo que, ao menos para ele, poderia ser classificado como fruto da insensibilidade humana - demasiado ágil ao decidir situações de modo egoísta - de acordo com as próprias conveniências.
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Quem salta em pauta, agora, é um coelhinho branco bola de arminho, alva e fofa - a passear, livre, pela casa,

Como se dono dela fosse, e, a trançar pés que o evitavam pisar.

Uma família inteira, encantada com aqueles olhos cor de rubi e com aquelas longas e aveludadas orelhas, observava o passeio saltitante e atrevido, daquele animalzinho fofo, que, a ignorar limites, transitava livre por sobre os tapetes das salas, como se todos eles tivessem sido estendidos, reverentemente, para seu próprio e exclusivo deleite.

Logo, porém, aquele novo e irrequieto invasor teve os passos limitados, penalizado que foi por desrespeito às leis de segurança doméstica e, principalmente, por conta de seus hábitos nada higiênicos.

E foi assim que aquele coelhão branco, (a exemplo do outro literariamente famoso), a mando da "Rainha" daquele lar, acabou por perder as regalias do seu "País das Maravilhas", muito embora ganhasse casa própria... porém, fora da nossa.

Fonte:
Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023.
Enviado pela autora.

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