MATILDE ENTROU na lojinha do Ernesto, que comercializava de tudo: discos antigos, peças de antiquário, livros, CDS, quadros, brinquedos, os cambaus:
— Pois não?
— Eu queria vender uns objetos... são de uso pessoal... não sei se lhe interessa...
— Teria que estar vendo para lhe dar uma resposta.
Matilde abriu uma bolsa de viagem e de dentro retirou o que havia: calcinhas, sutiãs, calças, blusas, sapatos, meias, um relógio de pulso que ganhara da mãe e várias joias, além de cordões de ouro, no qual, de um deles, pendia uma imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro:
— Quanto o senhor me oferece?
Ernesto primeiro olhou longamente para a garota que se descortinava diante dele, separada apenas por um imenso balcão envidraçado. Jovem, bonita, corpo violão, atraente e pecaminosa, talvez uns vinte anos. Os cabelos compridos, da cor do mel, caiam, lisos até a altura da cintura. Vestia simplicidade e elegância. Nada sofisticado que sobressaísse. Mesmo sem um pingo de maquiagem, seu rosto se destacava pela nobreza da formosura que transmitia, bem como pela humildade que fluía diretamente do seu interior:
— Então, quanto o senhor me daria por toda essa bagunça?
Só então Ernesto desviou os olhos e passou, efetivamente a analisar o que ela trouxera para ser vendido:
— Quinhentos reais.
Matilde baixou o rosto e por breves momentos permaneceu em silêncio:
— Só?
— Só!
— É muito pouco...
— Diga quanto realmente pretendia...
— Achava que o senhor chegaria aos degraus de uns mil reais.
— Nem pensar. Tirando os cordões e as joias, o restante são coisas usadas... nem que você deixasse em consignação.
— Desculpe. O que é deixar em consignação?
— Não lhe daria absolutamente nada pelo que tem aí. A medida que fosse vendendo, prestaria contas e tiraria, claro, o meu lucro.
— É que... bem...
— ...Continue.
— Precisaria do dinheiro para comprar uma passagem e o que sobrasse reverteria para cuidar da minha mãe doente.
— Para onde está pensando em viajar?
— Minas Gerais. São João Del Rei.
— Mora lá?
— Não.
— Então?
— Minha mãe está acamada...
— Setecentos reais.
Em resposta a moça começou a juntar os objetos colocando os de volta, de qualquer jeito, na bolsa:
— Tá legal. Setecentos e cinquenta reais. Nem mais um centavo.
— De qualquer forma agradeço a sua atenção. Vou tentar um preço melhor em outra loja.
Virou as costas e caminhou, resoluta, para a porta:
— Espere.
— Sim?
— Além dos setecentos e cinquenta, pago a sua passagem. Mas, em troca, quero um favor:
— Que favor?
— Não desconfia?
Matilde balançou a cabeça negativamente:
— Vou ser direto e reto: sou um homem sozinho. Não tenho mulher. Fica comigo essa noite. Dorme aqui. Em troca, compro a passagem e lhe dou o prometido. Topa?
Matilde, sem outra alternativa, aquiesceu:
— Faz o seguinte. Dê uma volta por aí e retorne às sete horas.
No final do expediente, Ernesto deu por terminado mais um dia. Fechou a loja. Alegre e auspicioso, esperou o regresso da deidade. Assim que ela se fez presente, mais que depressa, tratou de levá-la para os fundos do sobrado. Ali ele mantinha uma espécie de quarto, com um colchão velho e surrado, um sofá capenga e um fogão cheio de panelas e pratos sujos numa pia de canto. Matilde honrou a palavra empenhada: entregou o corpo em troca do prometido: a passagem para São João Del Rei.
Depois de ter se aproveitado o quanto queria da infeliz, fazendo dela gato e sapato, por volta das cinco da manhã, Ernesto se levantou, entrou numa espécie de banheiro sem porta, tomou banho debaixo de num cano de água que saia da parede, vestiu as roupas e, ao se voltar, encarou friamente Matilde nos olhos:
— Vamos. Vista seus trapos e caia fora.
— O senhor vai me dar a passagem?
Ernesto sentou em cima de umas caixas de madeira e começou a rir:
— Pensa que sou trouxa? Por acaso, está escrita, na minha testa, a palavra “OTÁRIO”, em letras garrafais? Pegue seus molambos e rua. Suma!
— O senhor prometeu...
— Fora, o que prometi. Desinfeta... vamos, não tenho tempo a perder...
Chorando copiosamente Matilde se recompôs o mais rápido que pode. Na hora de deixar a loja, Ernesto puxou, com violência, a bolsa de suas mãos:
— O que foi agora? Eu cumpri com a minha parte...
Risos de deboche:
— Eu sei. Confesso, estou satisfeito. Todavia, fico com esses cacarecos pelo tempo que você me tomou. Vai, sua vadia. Vai e nem ouse olhar para trás. Tchau!
Sem onde esconder a humilhação e a vergonha, e pior, agora despojada e sem nada para comercializar em permuta de alguns trocados, Matilde sumiu no resto da noite que logo se faria manhã. Ernesto trancou a porta, e, em seguida, se abriu num sorriso diabólico. Pegou a bolsa e jogou tudo no chão. “Daqui a pouco boto essas porcarias às vistas desse bando de idiotas que aparece por aqui. Devo conseguir, em tudo, por alto, uns bons três mil reais, ou mais. Que joias lindas. Legal! Agora vou fazer um café e me preparar para abrir o meu honesto ganha pão”.
Guardou tudo de volta e retornou ao cano de água e tomou outro banho. Enquanto o jato caia, pensou com seus devaneios: “Estou exausto. Depois desse samba. Para uma vadia reles, aquela piranha com ares de Cinderela, era até boa... valeu...”.
Refeito do banho, pôs água para o café´. Enquanto fervia, resolveu dar mais uma olhada no que “roubara” da pobre infeliz. Entrementes seu pé chutou uma carteirinha de couro que deveria estar oculto num outro compartimento: “Droga! A vagabunda esqueceu os documentos. Só me restava essa...”. Afoito, vasculhou o conteúdo. Nada havia, de interessante. Uma cédula de identidade, dois reais em moedas de cinquenta centavos, uma certidão de nascimento em pedaços e o resultado de um exame de HIV recente, com data de uma semana atrás. Matilde fazia parte de uma estatística fatal. Uma a mais, infelizmente, que contribuía para aumentar o número de soropositivas vitimadas pela AIDS.
Ernesto escancarou a boca em gritos lancinantes de terror, ao tempo em que se precipitou, de cabeça, por vezes incontidas, como um desmiolado para cima da chaleira de água efervescendo em tresloucada ebulição.
— Pois não?
— Eu queria vender uns objetos... são de uso pessoal... não sei se lhe interessa...
— Teria que estar vendo para lhe dar uma resposta.
Matilde abriu uma bolsa de viagem e de dentro retirou o que havia: calcinhas, sutiãs, calças, blusas, sapatos, meias, um relógio de pulso que ganhara da mãe e várias joias, além de cordões de ouro, no qual, de um deles, pendia uma imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro:
— Quanto o senhor me oferece?
Ernesto primeiro olhou longamente para a garota que se descortinava diante dele, separada apenas por um imenso balcão envidraçado. Jovem, bonita, corpo violão, atraente e pecaminosa, talvez uns vinte anos. Os cabelos compridos, da cor do mel, caiam, lisos até a altura da cintura. Vestia simplicidade e elegância. Nada sofisticado que sobressaísse. Mesmo sem um pingo de maquiagem, seu rosto se destacava pela nobreza da formosura que transmitia, bem como pela humildade que fluía diretamente do seu interior:
— Então, quanto o senhor me daria por toda essa bagunça?
Só então Ernesto desviou os olhos e passou, efetivamente a analisar o que ela trouxera para ser vendido:
— Quinhentos reais.
Matilde baixou o rosto e por breves momentos permaneceu em silêncio:
— Só?
— Só!
— É muito pouco...
— Diga quanto realmente pretendia...
— Achava que o senhor chegaria aos degraus de uns mil reais.
— Nem pensar. Tirando os cordões e as joias, o restante são coisas usadas... nem que você deixasse em consignação.
— Desculpe. O que é deixar em consignação?
— Não lhe daria absolutamente nada pelo que tem aí. A medida que fosse vendendo, prestaria contas e tiraria, claro, o meu lucro.
— É que... bem...
— ...Continue.
— Precisaria do dinheiro para comprar uma passagem e o que sobrasse reverteria para cuidar da minha mãe doente.
— Para onde está pensando em viajar?
— Minas Gerais. São João Del Rei.
— Mora lá?
— Não.
— Então?
— Minha mãe está acamada...
— Setecentos reais.
Em resposta a moça começou a juntar os objetos colocando os de volta, de qualquer jeito, na bolsa:
— Tá legal. Setecentos e cinquenta reais. Nem mais um centavo.
— De qualquer forma agradeço a sua atenção. Vou tentar um preço melhor em outra loja.
Virou as costas e caminhou, resoluta, para a porta:
— Espere.
— Sim?
— Além dos setecentos e cinquenta, pago a sua passagem. Mas, em troca, quero um favor:
— Que favor?
— Não desconfia?
Matilde balançou a cabeça negativamente:
— Vou ser direto e reto: sou um homem sozinho. Não tenho mulher. Fica comigo essa noite. Dorme aqui. Em troca, compro a passagem e lhe dou o prometido. Topa?
Matilde, sem outra alternativa, aquiesceu:
— Faz o seguinte. Dê uma volta por aí e retorne às sete horas.
No final do expediente, Ernesto deu por terminado mais um dia. Fechou a loja. Alegre e auspicioso, esperou o regresso da deidade. Assim que ela se fez presente, mais que depressa, tratou de levá-la para os fundos do sobrado. Ali ele mantinha uma espécie de quarto, com um colchão velho e surrado, um sofá capenga e um fogão cheio de panelas e pratos sujos numa pia de canto. Matilde honrou a palavra empenhada: entregou o corpo em troca do prometido: a passagem para São João Del Rei.
Depois de ter se aproveitado o quanto queria da infeliz, fazendo dela gato e sapato, por volta das cinco da manhã, Ernesto se levantou, entrou numa espécie de banheiro sem porta, tomou banho debaixo de num cano de água que saia da parede, vestiu as roupas e, ao se voltar, encarou friamente Matilde nos olhos:
— Vamos. Vista seus trapos e caia fora.
— O senhor vai me dar a passagem?
Ernesto sentou em cima de umas caixas de madeira e começou a rir:
— Pensa que sou trouxa? Por acaso, está escrita, na minha testa, a palavra “OTÁRIO”, em letras garrafais? Pegue seus molambos e rua. Suma!
— O senhor prometeu...
— Fora, o que prometi. Desinfeta... vamos, não tenho tempo a perder...
Chorando copiosamente Matilde se recompôs o mais rápido que pode. Na hora de deixar a loja, Ernesto puxou, com violência, a bolsa de suas mãos:
— O que foi agora? Eu cumpri com a minha parte...
Risos de deboche:
— Eu sei. Confesso, estou satisfeito. Todavia, fico com esses cacarecos pelo tempo que você me tomou. Vai, sua vadia. Vai e nem ouse olhar para trás. Tchau!
Sem onde esconder a humilhação e a vergonha, e pior, agora despojada e sem nada para comercializar em permuta de alguns trocados, Matilde sumiu no resto da noite que logo se faria manhã. Ernesto trancou a porta, e, em seguida, se abriu num sorriso diabólico. Pegou a bolsa e jogou tudo no chão. “Daqui a pouco boto essas porcarias às vistas desse bando de idiotas que aparece por aqui. Devo conseguir, em tudo, por alto, uns bons três mil reais, ou mais. Que joias lindas. Legal! Agora vou fazer um café e me preparar para abrir o meu honesto ganha pão”.
Guardou tudo de volta e retornou ao cano de água e tomou outro banho. Enquanto o jato caia, pensou com seus devaneios: “Estou exausto. Depois desse samba. Para uma vadia reles, aquela piranha com ares de Cinderela, era até boa... valeu...”.
Refeito do banho, pôs água para o café´. Enquanto fervia, resolveu dar mais uma olhada no que “roubara” da pobre infeliz. Entrementes seu pé chutou uma carteirinha de couro que deveria estar oculto num outro compartimento: “Droga! A vagabunda esqueceu os documentos. Só me restava essa...”. Afoito, vasculhou o conteúdo. Nada havia, de interessante. Uma cédula de identidade, dois reais em moedas de cinquenta centavos, uma certidão de nascimento em pedaços e o resultado de um exame de HIV recente, com data de uma semana atrás. Matilde fazia parte de uma estatística fatal. Uma a mais, infelizmente, que contribuía para aumentar o número de soropositivas vitimadas pela AIDS.
Ernesto escancarou a boca em gritos lancinantes de terror, ao tempo em que se precipitou, de cabeça, por vezes incontidas, como um desmiolado para cima da chaleira de água efervescendo em tresloucada ebulição.
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Texto enviado pelo autor.
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