domingo, 2 de julho de 2023

Marques de Carvalho (Historia incongruente)

Ao dr. Franklin Tavora


I
Desde alguns dias andava triste, apreensivo e taciturno o coronel Fonseca.

A paisagem alegre que cercava a fazenda já não tinha o poder de evocar-lhe aos lábios aquele seu antigo sorriso prazenteiro, com que todas as manhãs saudava o nascer do sol, da janela do seu vasto quarto.

As pessoas da casa andavam escrutando o motivo daquela transição súbita no ânimo do velho. As conversas à meia-voz no copiar, à hora da sesta não traziam nenhum resultado elucidativo daquelas tristezas sem causa aparente. Todas as interrogações, que os olhares apresentavam, iam embotar-se na fria reserva do ancião, que persistia num silencio desanimador.

E não havia razão para andar assim tristonho o coronel Fonseca: a fazenda progredia, graças ao magnífico tempo que, havia dois anos, reinava, o gado engordava e todos os vaqueiros viviam contentes, com disposição para o trabalho.

O Thiago, filho único do coronel, não reparara ainda naquelas concentrações do pai. Vivia todo entregue a uma paixão tão ardente como sincera, para ligar atenção a qualquer coisa que se passasse em outra parte que não fosse no próprio coração.

E a Venância, a formosa donzela que todos os dias obrigava-o a ir à vila próxima, bem merecia aquela dedicação egoística, porém desculpável.

Filha de um velho fazendeiro, era ela de uma bondade proverbial e de uma honradez reconhecida, sem precedentes de mácula. Trabalhadora, vivia a cuidar dos irmãozinhos mais novos que ela, a fazer-lhes a roupa, a paparica-los, a rodeá-los de cuidados, interessando-se muito pelo bem-estar físico de todos aqueles pequeninos seres a ela confiados pela mãe, na ocasião de morrer.

Entretanto, quem pudesse perscrutar a alma do coronel, veria com pasmo que era justamente o amor do filho a origem das suas tristezas.

É certo: Fonseca sentia grande contrariedade em ver que o Thiago de dia para dia mais se ligava de amizade à Venância da vila, como à rapariga chamavam os da fazenda. E quem se aproximasse da maca do coronel, quando ele dormia os seus curtos sonos noturnos, poderia muitas vezes ouvi-lo pronunciar estas palavras: — "É impossível semelhante casamento!"

II
Uma tarde, quando o coronel Fonseca, encerrado no quarto, escrevia ao seu correspondente da capital, apareceu-lhe Thiago, dizendo-lhe que necessitava falar-lhe com urgência.

O velho estremeceu, prevendo talvez que o filho ia acercar-se de um assunto ao qual ele fugia há muito tempo.

Foi fazendo um violento esforço sobre si mesmo que murmurou:

— Fala quando quiseres.

Thiago sentou-se na beira da rede e guardou silêncio por momentos.

O velho Fonseca olhava para ele com as pálpebras escancaradas em uma expressão de curiosidade e pavor. Tremia ligeiramente, com os nervos todos irritados.

— O diabo da gota quer visitar-me! – pensou.

No entanto, Thiago enxugava o pescoço com o lenço e começava em seguida:

— Meu pai, o negócio a respeito de que venho falar-lhe é importante de mais, para que eu estrague tempo e palavras em rodeios desnecessários. Vou ser breve, mesmo porque estou morto por saber qual será a resposta de meu pai. Desejo casar-me.

Conteve o coronel um gesto de indignação e disse, mostrando indiferença.

— Pois casa-te, rapaz. Eu não me oponho.... Contanto que seja a moça escolhida merecedora de ser tua mulher....

— Oh! Se tal é a condição que apresenta, posso afiançar-lhe que brevemente me casarei. Boa e séria, meiga e honesta, trabalhadora e cheia de dedicação, creio que poucas moças como ela encontrei no Pará durante os seis anos que lá estive a estudar no seminário e no Liceu.

— Felicito-te, por isso, disse ainda o coronel, sentindo fortes dores nas fontes, com o coração acelerado, porém a afetar tranquilidade. — Mas então quem é a rapariga?

Thiago sorriu indizivelmente, — com uma beatifica expressão de intensíssima felicidade no semblante, e exclamou:

— É a Venância da vila, a minha querida Venância!

O velho ergueu-se impelido pela comoção. Supondo tal ação um meio de que o pai servia-se para testemunhar-lhe a sua aquiescência, Thiago ergueu-se também e correu a abraça-lo.

Mas o velho, fazendo um lento sinal com o braço estendido, paralisou-lhe a vivacidade do movimento e murmurou, tremendo todo:

— Atende-me, Thiago, meu filho! Há muitos anos que sei de teus amores com a Venância. Grandes motivos, que talvez conhecerás um dia, impediam-me de favorecer a esses amores, assim como inibiam-me de opor-me a eles desassombradamente. Fingi ignorar tudo, na esperança de que os anos lançassem o tédio sobre as vossas almas cativas uma da outra por aquilo que eu pensava ser o entusiasmo pela novidade. Com imensa dor verifiquei o meu engano, porquanto foste fiel à tua palavra, do mesmo modo por que Venância o foi à sua. Isto seria uma grande felicidade, se não fosse uma enorme desgraça. Quer dizer, seria um apreciável penhor da tua ventura por vir, se o objeto da tua paixão fosse qualquer outra mulher, que não a Venância..... Olha, Thiago, sem procurares inquirir qual o verdadeiro e imperioso motivo que assim me força a magoar-te o coração, esquece essa rapariga, deixa de visita-la, ausenta-te de Marajó, vai para a capital, ou para o Rio de Janeiro, ou para qualquer cidade longínqua, onde julgues ser-te fácil achares uma mulher a quem possas oferecer a mão....

— Mas porquê, meu pai? – interrogou Thiago assombrado, com o coração opresso debaixo de uma tristeza incálculavel, sentindo que as palavras do pai minavam-lhe o edifício da felicidade por tantos anos construído com um profundo amor expurgado de malícia.

— Porque assim é necessário. — redarguiu o velho, numa veemência de gesto e de entonação.

— Pois fique sabendo que, se não explicar satisfatoriamente a causa de semelhante oposição, só tomarei as suas palavras como originárias duma razão que a idade torna vacilante e digna de piedade! — bradou Thiago já fora de si, ferido nessa grande porção de egoísmo que todo o homem tem consigo.

— Ingrato. - murmurou o velho, deixando-se cair sentado e chorando copiosamente. — Pois assiste à morte do teu coração, visto assim o desejares: ouve-me!

Pela janela aberta, via-se o vastíssimo campo do lado oeste da fazenda, coberto de uma vegetação uniforme de capim crestado pelo sol. Vitelos saltavam às cabriolas e grandes bois mansos, muito gordos e vagarosos, pastavam tranquilamente os fios de curto capim seco, abanando as longas caudas num compassado movimento automático. Ao longe, um touro preto, perfilado e sério, olhava para a linha escura do horizonte, entretido em lamber as ventas lustrosas de ranho com a flexível língua cor de cinza de charuto. Um cheiro almiscarado de erva seca e de excremento de boi subia até ao quarto. Vaqueiros zangarreavam numas flautas campestres, muito rudimentares, feitas de talos de mamãozeiro. Urros melancólicos de vacas chamando pelas crias casavam-se com essas fáceis melodias bucólicas, vibravam pelo espaço em propagações suaves que, dilatando-se cada vez mais, perdiam-se no ar como um suspiro flébil (
plagente) de extrema ternura. E da linha do horizonte, que recortava-se muito distante sobre o azul escuro do céu, levantava-se vagarosamente a noite, majestosa e tranquila em sua imponência sedutora.

O velho enxugou as lágrimas e começou a falar.

III
“ — Como sabes, tinhas dois dias quando tua santa mãe nos faltou. Até agora não sei como possível me foi resistir a essa desgraça, que eu a princípio reputei capaz de tirar-me a existência. Três anos passei encerrado neste quarto, sem visitar as nossas fazendas, sem receber ninguém, apenas gozando em tuas inocentes carícias um pálido reflexo daqueles grandes afagos que a tua idolatrada mãe fazia-me constantemente. Passados esses três anos, compreendi que o teu futuro exigia-me impusesse silêncio à minha dor, e cuidasse de nossos bens, para dar-te uma boa educação e, depois da minha morte, fazer-te herdeiro de uma riqueza suficiente a tua manutenção. Saí, pois, do quarto, pedindo mentalmente à alma de tua mãe tomasse este sacrifício como feito por amor de ti e, por consequência, por amor dela. Negócios meus exigiam que eu fizesse frequentes viagens à vila, onde, há vinte e três anos, isto é, quando tinhas cinco, encontrei-me com uma senhora amazonense, mulher de um velho amigo meu, fazendeiro em Chaves e morador da vila. Essa senhora era o retrato vivo de tua mãe. Por um fenômeno de impressionismo, — sem o querer, sem o sentir — fui-me enlevando das graças dela, até chegar ao ponto de pensar que tua boa mãe tornara à vida e volvera a amar-me como antes!

“Quando eu ia à vila, hospedava-me em casa desse antigo companheiro. Tal convivência maior aumento deu ao meu amor, que transformou-se em grande paixão, toda entusiasmos e veemência. As fazendas de Chaves faziam com que o marido dela se ausentasse muitas vezes da vila, deixando-me ao lado da mulher que.... poupa-me a vergonha de comunicar-te que... - titubeou o coronel, muito triste, com os olhos marejados de lágrimas, a arfar do peito e a contrair o rosto numa visível agonia causada pelos remorsos.

— Enfim, — disse com energia e, desta feita, dando expansão ao pranto — o resultado dessa criminosa, dessa infame e baixa paixão, foi o nascimento de uma menina, que o meu velho amigo ingenuamente supôs ser sua filha....

— E essa menina é... Ve..nân..cia? — inquiriu Thiago com os olhos arregalados, os cabelos crispados, as mãos fechadas fortemente, sentindo fraquejar-lhe o espírito ao embate de tamanha comoção.

— Sim, Thiago, sim, é Venância, fruto da minha infâmia, a filha do crime, a filha de um amigo traidor e de uma esposa miserável que não soube resistir à minha tentação! É Venância, a mulher com quem te queres unir pelo.... casa...mento! É tua irmã, insensato!...

E caiu redondamente para trás, agitado nas convulsões da gota, da sua moléstia habitual, ao mesmo tempo que o filho rolava sobre a rede da maca, fulminado pela morte, que providencialmente o livrou de uma vida que daí em diante só poderia ser de tormentos e angústias indizíveis.
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Nota
Foi publicada n’A Arena essa narração, em 1887: ainda existia o infortunado homem de letras a quem tive a honra de dedicar o meu trabalho e do qual recebi, por esse motivo, lisonjeira carta muito afetuosa e benevolente.


Fonte:
Disponível em Domínio Público
João Marques de Carvalho. Contos Paraenses. PA: Pinto Barbosa e C., 1889..
Atualização do português por J. Feldman

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