sexta-feira, 7 de julho de 2023

Marques de Carvalho (Noite de finados)


A Manoel P. de Carvalho


O cemitério de Santa Isabel estava cheio de visitantes, todos vestidos de preto, caminhando compassada e vagarosamente por entre as sepulturas. Eram oito horas da noite sob um céu trevoso como a tristeza daquelas pessoas que alí se recordavam com saudades pungentes dos parentes e amigos para sempre ocultos debaixo da terra, sobre a qual compridas filas de velas acesas lançavam uma claridade intensa, que ia esbater-se (
atenuação de cores) ao fundo, na escuridão do matagal.

O ar estava impregnado do perfume das flores — piedosamente depostas em cima das sepulturas por mãos amigas, — e do cheiro místico da cera queimada.

Ao longe, à direita da ermida, uma banda de música executava plangentemente uma funeralesca marcha em tom menor, cujas maviosidades lúgubres faziam suspirar as velhas beatas, — aspirando a uma outra vida desconhecida, além daquele firmamento negro, no lugar onde a onipotência incondicional da Divindade lhes parecia dominar em toda a sua majestade.

Entretanto, de espaço a espaço, grandes ondas de povo invadiam o cemitério. Este, àquela hora, mal podia conte-las, por isso, as pessoas que receavam um atropelo, saíam enfadadas, murmurando indecências.

À porta, do lado exterior, cocheiros desbocados conversavam livremente com as pretas sentadas em frente das bandejas de doce iluminadas pelas lanternas que estavam sobre a baeta encarnada. Mendigos repelentes, de vestes sujas e mal cheirosas, plangiam súplicas, tentando demover em seu favor a caridade dos visitantes piedosos.

Alguns vadios encostados a um rico mausoléu de mármore pousavam olhares torpemente libidinosos às moças que entravam seguidas de suas mamães, num andar assustadiço e saudando um ou outro conhecido com um meneio de cabeça. Mais adiante, num canto escuro, uma mulata roliça, com o vestido muito decotado, murmurava amabilidades a um preto de fisionomia horrenda empertigado num fato novo e com a cabeça coberta por um chapéu alto descomunal. Como contraste, não muito longe, estava uma senhora pobremente trajada, com os cotovelos pousados à grade ferrugenta de uma sepultura mal iluminada por duas velas em castiçais de vidro.

Dos olhos dela, que estavam fixos em uma coroa de perpétuas roxas, corriam lágrimas, que das faces resvalavam-lhe para as delgadas folhas do capim que vegetava entre as juntas dos azulejos desbotados....

Era sem dúvida, alguma viúva que pagava à memória do finado marido alguns anos de amorosa e suavíssima coabitação na terra...

À esquerda, contemplando uma fotografia em miniatura encerrada em negro caixilho e suspensa ao centro da cruz de uma sepultura pequenina e toda coberta de jasmins, trevos, japanas e madressilvas, via-se uma senhora de cabelos grisalhos, imóvel, calada — como evocando passadas cenas de prazer — sem ouvir as plangências da orquestra, que prosseguia no funeral tristonho....

O céu, no entanto, enchera-se de uma luz suave e esbranquiçada. Grandes nuvens escuras retalhavam-se no azul-ferrete do firmamento, para as bandas da cidade. Um vento frio e murmurante como um soluço de almas penadas fazia farfalhar a mata próxima, causando arrepios de mal-estar às supersticiosas moças que estavam no cemitério.... Agora calara-se a orquestra.

Subira um pregador para um púlpito armado ao ar livre, sob uma árvore de grande coma (
copa) sombria, e recitava em voz cavernosa e com largos gestos trágicos, uma homília (instrução aos fiéis) contristadora sobre a transitória felicidade mundana e a perene bem aventurança celestial.

As mulheres, — mães, filhas, esposas, — que o ouviam, ficavam caladas, muito sérias, com os olhos grandemente abertos, fixos em seu rosto bronzeado; no íntimo, porém, no fundo da consciência, levantavam um brado de maldição àquela felicidade que lhes roubara a companhia dos entes queridos e amorosos.

Um homem de cabeça encanecida, que vagueava levando pela mão uma criança de tenra idade, — um lindo e pálido orfãozinho, — voltou-lhe costas nervosamente, soluçando, e fugiu para junto de um pobre túmulo tranquilo, em cuja grade se lia este lancinante poema de uma só frase: — Á minha esposa....

No céu, as nuvens afastavam-se, evolavam-se como alegrias fugitivas ou prazeres expulsos, erguiam-se em uns grandes rendilhados fantásticos de miragens variadas.

A lua apareceu, como uma saudade enorme e cruciante, numa serena majestade tumular, que impôs vago sofrimento ao coração de todos. Os brandões (
archotes) e velas perderam o brilho, ficaram como pirilampos lantejoulando os sepulcros sob o luar diáfano, a cuja claridade continuava o pregador a recordar a onipotência de Deus.

Os bondes estacionados na praça encheram-se de passageiros. Minutos depois seguiam pela estrada da Independência, repletos de homens, de senhoras tristes, com fisionomias de sofrimento.

Chegando ao largo de Nazareth, muitos homens apearam. O largo estava iluminado festivamente, cheio de adornos alegres. Era aquela noite a penúltima da festa anual.

Então, os mesmos homens que estavam rendendo há poucos minutos uma saudade à memória de um amigo, de um irmão, de um pai, desciam agora ao centro da festa popular, procuravam as conversas ruidosas, invadiam as casas de jogo, — propelidos pela fascinação demoníaca e terrível da roleta!

Fonte:
João Marques de Carvalho. Contos Paraenses. PA: Pinto Barbosa e C., 1889.
Disponível em Domínio Público
Atualização do Português por J. Feldman

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