O Gustavo era literato e quase jornalista. Casou-se muito novo, aos vinte e três anos, e fez-se guarda-livros, porque decididamente a literatura não lhe dava com que manter a família.
O casamento havia sido muito contrariado por uma dona Puquéria, tia da noiva, senhora já bastante idosa, que morava em Cascadura. Depois de casado, o Gustavo guardou um profundo ressentimento contra essa velha: não a podia ver nem pintada.
Ora, uma bela manhã, seis anos depois do casamento, a mulher de Gustavo foi despertá-lo mais cedo que de costume.
— Gustavo!
— Hein? Que queres tu? Para que me acordas tão cedo? Bem sabes que com este calor infernal só posso pegar no sono pela madrugada! Deixa-me dormir!
— Ouve; trata-se de uma coisa grave.
O Gustavo deu um pulo da cama.
— Hein?
— Tia Pulquéria...
— Morreu?
— Não; mas está morre não morre. Mandou-me pedir que fosse lá com os pequenos; quer despedir-se da gente.
— Responda-lhe que morra quantas vezes quiser, e nos deixe em paz!
— Gustavo, lembra-te que ela é irmã de meu pai...
— Lembro-me que esse diabo inventou contra mim as maiores calúnias, para impedir o nosso casamento!
— Pois sim, perdoa-lhe... aquilo foi rabugice de velha.
— Vai tu, se quiseres, com os meninos e a Máxima. Eu tenho mais que fazer; não os acompanho.
Uma hora depois, a sobrinha de dona Pulquéria, em companhia dos quatro pequenos e da Máxima — a ama seca de todos os quatros — tomava o trem para Cascadura.
O Gustavo tentou dormir ainda, mas não o conseguiu. Ergueu-se de mau humor, tomou um banho frio, vestiu-se, e foi para o escritório. Almoçava em casa do patrão.
Ao meio dia recebeu um bilhete de sua mulher dizendo-lhe que tia Pulquéria tinha expirado às dez horas da manhã e que ela ficaria lá todo o dia e toda a noite com os meninos e a Máxima “fazendo quarto”; só iria para casa no dia seguinte, depois do enterro.
O marido ficou bastante contrariado. Era a primeira vez, depois de seis anos de casados, que ia passar uma noite longe da família.
Um dos seus companheiros de escritório, homem já maduro e também pai de família, disse-lhe:
— Eu, no seu caso, Gustavo, tratava de aproveitar esta noite de liberdade...
— Aproveitar como? Não sou pândego nem tenho recursos para meter-me em cavalarias altas... Já sei que esta noite vai ser pior que a passada, em que não preguei o olho... Fazia um calor terrível.
— Pois aproveite a noite dormindo bem.
— Onde?
— Em Petrópolis. Você vai hoje na barca das quatro; chega lá às seis; janta no Bragança; depois do jantar vai dar um giro pela cidade; volta ao hotel; pede um quarto; passa uma noite deliciosa, e amanhã toma o trem para cá às sete horas da manhã.
A ideia sorriu ao Gustavo. Que bom seria passar a noite em Petrópolis, gozando a agradável temperatura da serra! Com que prazer ele se estenderia numa caminha fresca, para no dia seguinte, ao primeiro raio de sol, despertar alegre como um pássaro e leve como uma flor! Demais a mais, Gustavo nunca fora a Petrópolis, e Petrópolis era um dos seus sonhos. Uns desejam ir à Europa, outros à América do Norte, outros ao Oriente; ele desejaria ir à Petrópolis, embora para ali passar apenas uma noite.
O Gustavo foi à casa, acondicionou a roupa indispensável numa maleta de mão, e às quatro horas partiu para o ex-Córrego-Seco, munido de bilhete de ida e volta.
O programa traçado começou por ser fielmente cumprido. No hotel Bragança deram ao Gustavo um bom quarto, e serviram-lhe um bom jantar, que ele não apreciou bastante porque estava a cair de sono e na sala o termômetro marcava trinta graus.
Acabado o jantar, o nosso viajante saiu para dar um giro pela cidade; mas, como entrasse a chuviscar, voltou para o hotel, dizendo aos seus botões:
— Ora, adeus! vou deitar-me... Há de ser um sono só pela manhã!
Quis porém a fatalidade que, ao entrar no hotel o Gustavo encontrasse o Miranda, que fora, sete anos atrás, um dos companheiros de “lutas” literárias, um bom rapaz que tinha apenas um defeito, mas um grande defeito: bebia. Um pobre diabo, um maluco desses de quem se diz: — Coitado! é mau só para si.
— Olhe quem ele é: O Gustavo!...
— Oh, Miranda!
— Que fazes tu em Petrópolis?
— Vim dormir, e tu?
— Eu resido aqui.
— Ah! E em que te empregas?
— Em coisa nenhuma. Dissipo os restos do meu patrimônio.
O Gustavo notou que o Miranda tinha a língua um pouco presa, e como não há companhia mais desagradável que a de um bêbado, tratou de despedir-se.
— Não! Já não te deixo!... – protestou o Miranda. – Anda daí tomar comigo um copo de cerveja.
— Não... desculpa-me...
— Não admito desculpas!
— Pois sim, mas há de ser aqui mesmo no hotel.
— Nada! Nada! Cerveja em hotel não tem bom sabor. Vamos a uma brasserie que ali há... atravessemos aquela ponte...
— Isso é uma extravagância: está chovendo!
— Ora! Um chuvisquinho à toa! Vamos!
— Perdão, Miranda, eu vim a Petrópolis para dormir e não para tomar cerveja! Não preguei olho toda a noite passada, estou a cair de sono!
— Oh, desgraçado! Pois tu queres dormir às oito horas da noite? Bem se vê um poeta lírico degenerado, um trovador que se encheu de filhos e se fez guarda-livros! Anda daí!…
E Gustavo deixou-se levar, quase de rastros, à cervejaria.
Os dois amigos sentaram-se a uma mesa, diante de dois copos de cerveja alemã. O Miranda esvaziou imediatamente um deles, e pediu reforço.
— Era o que faltava! Dormir às oito horas noite! Nada; temos muito o que conversar, meu velho: vou expor-te um plano, um grande plano; quero saber se o aprovas.
— Fala! – disse Gustavo contrariadíssimo, arrependido, mas resignado.
— Pretendo fundar uma folha diária aqui, nesta cidade vermelha!
O Miranda esperava que Gustavo perguntasse: — Vermelha, por que? — O Gustavo calou-se; ele porém, acrescentou, como se o outro houvesse feito a pergunta:
— Pois não reparaste ainda que tudo aqui em Petrópolis é vermelho? As pontes, as grades, as montanhas, as casas, os criados de servir, e até os cabelos dos respectivos indígenas? Olha!
E apontou para o moço que trazia novo reforço de cerveja, um petropolitano ruivo, verdadeiro tipo teutônico.
— Em Petrópolis há um jornal, mas imagina, meu velho, que esse jornal se intitula o Mercantil! Vê que tolice! Um Mercantil nesta cidadezinha de vilegiatura, neste oásis de verão, residência de diplomatas, capitalistas e mulheres elegantes! O Mercantil, ora bolas!
E o Miranda expôs longamente o plano do seu jornal, com grandes gestos, os olhos muito abertos e injetados, as narinas dilatadas, os bigodes cheios de espuma. Seria uma folha artística, parisiense, catita, e sobretudo, escandalosa... não escandalosa como o Corsário, mas como o Gil Blas ou o Eco de Paris... Levantando a pontinha, só a pontinha do véu que esconde um mistério de amor... intrigando a sociedade inteira com uma inicial ou duas linhas de reticências...
Inflamado, o Miranda indicava os lucros prováveis da empresa, os capitalistas com que contava para lançá-la, os redatores e colaboradores que contrataria, e mais isto, e mais aquilo, e mais aquilo outro.
O Gustavo, que por diversas vezes tentava erguer-se, era subjugado pelo Miranda. Ouvia-o com as pálpebras semi cerradas pela fadiga, embrutecido, sem dizer uma frase, nem mesmo uma palavra, porque o futuro redator do Petrópolis — era esse o título do projetado jornal, — com a língua perra, dando murros na mesa, quebrando copos, expectorava abundantes períodos, sem vírgula, sem pausa. Só se calava de vez em quando para beber, ensopando os bigodes em cerveja e lambendo-os em seguida.
A chuva caía agora a cântaros.
Na cervejaria só estavam os dois amigos e o petropolitano teutônico, este encostado ao balcão de braços cruzados, cabeceando. O Miranda continuava com mais entusiasmo a exposição do plano da sua futura empresa, quando o dono da casa, um alemão robusto, irrompeu dos fundos do estabelecimento:
— Endão que é isto, meus zenhores? Já bassa tas tuas horas... não bosso der a minha casa aperda adé alda noide!...
O Miranda tentou recalcitrar, mas o cervejeiro não lhe deu ouvidos. O Gustavo pagou a despesa, e puxou pelo braço o beberrão, que parecia pregado ao banco em que se sentara. Afinal, conseguiu arrastá-lo até a rua. O alemão fechou imediatamente a porta.
O Miranda, mal deu dois passos, perdeu o equilíbrio e caiu redondamente na lama. O Gustavo abaixou-se para erguê-lo, mas o outro deixou-se estar, não fez o mínimo esforço para levantar-se, e resmungou quase ininteligivelmente: — Estou muito bêbado!
Imaginem a situação do guarda-livros: tonto de sono, de madrugada, à chuva, numa rua deserta, numa cidade que ele absolutamente não conhecia, às escuras, porque Petrópolis não tinha iluminação, e vendo aos seus pés um amigo embriagado, um companheiro de “lutas”, que não podia abandonar ali!
Imaginem os trabalhos porque passou o ex-poeta lírico para remover a pesada massa de carne e osso que jazia inerme no chão, e encontrar a casa em que habitava o Miranda. Felizmente este, mesmo bêbado, conseguiu orientá-lo. Mas que trabalho!...
Era perto de quatro horas quando o Gustavo bateu à porta do hotel Bragança. O criado que lhe veio abrir, de vela acesa na mão, teve um sorriso malicioso, e disse:
— Ai! Ai! Estes moços felizes que vêm passar uma noite em Petrópolis e se recolhem ao hotel de madrugada... Ai! Ai!
O Gustavo às sete horas da manhã desceu a serra aborrecido, doente, com uma enxaqueca terrível, estupidificado pelo sono e atribuindo as suas desgraças à tia Pulquéria.
Felizmente a velha deixou-lhe uns cobres que até certo ponto o consolaram daquela malfadada noite em Petrópolis.
O casamento havia sido muito contrariado por uma dona Puquéria, tia da noiva, senhora já bastante idosa, que morava em Cascadura. Depois de casado, o Gustavo guardou um profundo ressentimento contra essa velha: não a podia ver nem pintada.
Ora, uma bela manhã, seis anos depois do casamento, a mulher de Gustavo foi despertá-lo mais cedo que de costume.
— Gustavo!
— Hein? Que queres tu? Para que me acordas tão cedo? Bem sabes que com este calor infernal só posso pegar no sono pela madrugada! Deixa-me dormir!
— Ouve; trata-se de uma coisa grave.
O Gustavo deu um pulo da cama.
— Hein?
— Tia Pulquéria...
— Morreu?
— Não; mas está morre não morre. Mandou-me pedir que fosse lá com os pequenos; quer despedir-se da gente.
— Responda-lhe que morra quantas vezes quiser, e nos deixe em paz!
— Gustavo, lembra-te que ela é irmã de meu pai...
— Lembro-me que esse diabo inventou contra mim as maiores calúnias, para impedir o nosso casamento!
— Pois sim, perdoa-lhe... aquilo foi rabugice de velha.
— Vai tu, se quiseres, com os meninos e a Máxima. Eu tenho mais que fazer; não os acompanho.
Uma hora depois, a sobrinha de dona Pulquéria, em companhia dos quatro pequenos e da Máxima — a ama seca de todos os quatros — tomava o trem para Cascadura.
O Gustavo tentou dormir ainda, mas não o conseguiu. Ergueu-se de mau humor, tomou um banho frio, vestiu-se, e foi para o escritório. Almoçava em casa do patrão.
Ao meio dia recebeu um bilhete de sua mulher dizendo-lhe que tia Pulquéria tinha expirado às dez horas da manhã e que ela ficaria lá todo o dia e toda a noite com os meninos e a Máxima “fazendo quarto”; só iria para casa no dia seguinte, depois do enterro.
O marido ficou bastante contrariado. Era a primeira vez, depois de seis anos de casados, que ia passar uma noite longe da família.
Um dos seus companheiros de escritório, homem já maduro e também pai de família, disse-lhe:
— Eu, no seu caso, Gustavo, tratava de aproveitar esta noite de liberdade...
— Aproveitar como? Não sou pândego nem tenho recursos para meter-me em cavalarias altas... Já sei que esta noite vai ser pior que a passada, em que não preguei o olho... Fazia um calor terrível.
— Pois aproveite a noite dormindo bem.
— Onde?
— Em Petrópolis. Você vai hoje na barca das quatro; chega lá às seis; janta no Bragança; depois do jantar vai dar um giro pela cidade; volta ao hotel; pede um quarto; passa uma noite deliciosa, e amanhã toma o trem para cá às sete horas da manhã.
A ideia sorriu ao Gustavo. Que bom seria passar a noite em Petrópolis, gozando a agradável temperatura da serra! Com que prazer ele se estenderia numa caminha fresca, para no dia seguinte, ao primeiro raio de sol, despertar alegre como um pássaro e leve como uma flor! Demais a mais, Gustavo nunca fora a Petrópolis, e Petrópolis era um dos seus sonhos. Uns desejam ir à Europa, outros à América do Norte, outros ao Oriente; ele desejaria ir à Petrópolis, embora para ali passar apenas uma noite.
O Gustavo foi à casa, acondicionou a roupa indispensável numa maleta de mão, e às quatro horas partiu para o ex-Córrego-Seco, munido de bilhete de ida e volta.
O programa traçado começou por ser fielmente cumprido. No hotel Bragança deram ao Gustavo um bom quarto, e serviram-lhe um bom jantar, que ele não apreciou bastante porque estava a cair de sono e na sala o termômetro marcava trinta graus.
Acabado o jantar, o nosso viajante saiu para dar um giro pela cidade; mas, como entrasse a chuviscar, voltou para o hotel, dizendo aos seus botões:
— Ora, adeus! vou deitar-me... Há de ser um sono só pela manhã!
Quis porém a fatalidade que, ao entrar no hotel o Gustavo encontrasse o Miranda, que fora, sete anos atrás, um dos companheiros de “lutas” literárias, um bom rapaz que tinha apenas um defeito, mas um grande defeito: bebia. Um pobre diabo, um maluco desses de quem se diz: — Coitado! é mau só para si.
— Olhe quem ele é: O Gustavo!...
— Oh, Miranda!
— Que fazes tu em Petrópolis?
— Vim dormir, e tu?
— Eu resido aqui.
— Ah! E em que te empregas?
— Em coisa nenhuma. Dissipo os restos do meu patrimônio.
O Gustavo notou que o Miranda tinha a língua um pouco presa, e como não há companhia mais desagradável que a de um bêbado, tratou de despedir-se.
— Não! Já não te deixo!... – protestou o Miranda. – Anda daí tomar comigo um copo de cerveja.
— Não... desculpa-me...
— Não admito desculpas!
— Pois sim, mas há de ser aqui mesmo no hotel.
— Nada! Nada! Cerveja em hotel não tem bom sabor. Vamos a uma brasserie que ali há... atravessemos aquela ponte...
— Isso é uma extravagância: está chovendo!
— Ora! Um chuvisquinho à toa! Vamos!
— Perdão, Miranda, eu vim a Petrópolis para dormir e não para tomar cerveja! Não preguei olho toda a noite passada, estou a cair de sono!
— Oh, desgraçado! Pois tu queres dormir às oito horas da noite? Bem se vê um poeta lírico degenerado, um trovador que se encheu de filhos e se fez guarda-livros! Anda daí!…
E Gustavo deixou-se levar, quase de rastros, à cervejaria.
Os dois amigos sentaram-se a uma mesa, diante de dois copos de cerveja alemã. O Miranda esvaziou imediatamente um deles, e pediu reforço.
— Era o que faltava! Dormir às oito horas noite! Nada; temos muito o que conversar, meu velho: vou expor-te um plano, um grande plano; quero saber se o aprovas.
— Fala! – disse Gustavo contrariadíssimo, arrependido, mas resignado.
— Pretendo fundar uma folha diária aqui, nesta cidade vermelha!
O Miranda esperava que Gustavo perguntasse: — Vermelha, por que? — O Gustavo calou-se; ele porém, acrescentou, como se o outro houvesse feito a pergunta:
— Pois não reparaste ainda que tudo aqui em Petrópolis é vermelho? As pontes, as grades, as montanhas, as casas, os criados de servir, e até os cabelos dos respectivos indígenas? Olha!
E apontou para o moço que trazia novo reforço de cerveja, um petropolitano ruivo, verdadeiro tipo teutônico.
— Em Petrópolis há um jornal, mas imagina, meu velho, que esse jornal se intitula o Mercantil! Vê que tolice! Um Mercantil nesta cidadezinha de vilegiatura, neste oásis de verão, residência de diplomatas, capitalistas e mulheres elegantes! O Mercantil, ora bolas!
E o Miranda expôs longamente o plano do seu jornal, com grandes gestos, os olhos muito abertos e injetados, as narinas dilatadas, os bigodes cheios de espuma. Seria uma folha artística, parisiense, catita, e sobretudo, escandalosa... não escandalosa como o Corsário, mas como o Gil Blas ou o Eco de Paris... Levantando a pontinha, só a pontinha do véu que esconde um mistério de amor... intrigando a sociedade inteira com uma inicial ou duas linhas de reticências...
Inflamado, o Miranda indicava os lucros prováveis da empresa, os capitalistas com que contava para lançá-la, os redatores e colaboradores que contrataria, e mais isto, e mais aquilo, e mais aquilo outro.
O Gustavo, que por diversas vezes tentava erguer-se, era subjugado pelo Miranda. Ouvia-o com as pálpebras semi cerradas pela fadiga, embrutecido, sem dizer uma frase, nem mesmo uma palavra, porque o futuro redator do Petrópolis — era esse o título do projetado jornal, — com a língua perra, dando murros na mesa, quebrando copos, expectorava abundantes períodos, sem vírgula, sem pausa. Só se calava de vez em quando para beber, ensopando os bigodes em cerveja e lambendo-os em seguida.
A chuva caía agora a cântaros.
Na cervejaria só estavam os dois amigos e o petropolitano teutônico, este encostado ao balcão de braços cruzados, cabeceando. O Miranda continuava com mais entusiasmo a exposição do plano da sua futura empresa, quando o dono da casa, um alemão robusto, irrompeu dos fundos do estabelecimento:
— Endão que é isto, meus zenhores? Já bassa tas tuas horas... não bosso der a minha casa aperda adé alda noide!...
O Miranda tentou recalcitrar, mas o cervejeiro não lhe deu ouvidos. O Gustavo pagou a despesa, e puxou pelo braço o beberrão, que parecia pregado ao banco em que se sentara. Afinal, conseguiu arrastá-lo até a rua. O alemão fechou imediatamente a porta.
O Miranda, mal deu dois passos, perdeu o equilíbrio e caiu redondamente na lama. O Gustavo abaixou-se para erguê-lo, mas o outro deixou-se estar, não fez o mínimo esforço para levantar-se, e resmungou quase ininteligivelmente: — Estou muito bêbado!
Imaginem a situação do guarda-livros: tonto de sono, de madrugada, à chuva, numa rua deserta, numa cidade que ele absolutamente não conhecia, às escuras, porque Petrópolis não tinha iluminação, e vendo aos seus pés um amigo embriagado, um companheiro de “lutas”, que não podia abandonar ali!
Imaginem os trabalhos porque passou o ex-poeta lírico para remover a pesada massa de carne e osso que jazia inerme no chão, e encontrar a casa em que habitava o Miranda. Felizmente este, mesmo bêbado, conseguiu orientá-lo. Mas que trabalho!...
Era perto de quatro horas quando o Gustavo bateu à porta do hotel Bragança. O criado que lhe veio abrir, de vela acesa na mão, teve um sorriso malicioso, e disse:
— Ai! Ai! Estes moços felizes que vêm passar uma noite em Petrópolis e se recolhem ao hotel de madrugada... Ai! Ai!
O Gustavo às sete horas da manhã desceu a serra aborrecido, doente, com uma enxaqueca terrível, estupidificado pelo sono e atribuindo as suas desgraças à tia Pulquéria.
Felizmente a velha deixou-lhe uns cobres que até certo ponto o consolaram daquela malfadada noite em Petrópolis.
Fonte:
Artur de Azevedo. Contos fora de moda. Publicado em 1894.
Disponível em Domínio Público
Artur de Azevedo. Contos fora de moda. Publicado em 1894.
Disponível em Domínio Público
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