"A recordação de um primeiro beijo de homem, mesmo quando recebido contragosto, transforma-se no espírito da mulher virgem em desejo tenaz, absorvente, imperioso de o repetir, de renovar a sensação daquele delicioso pecado. - COLETTE WILLY"
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Com os olhos vermelhos de chorar, e com tremores de susto por todo o corpo delicado, a loura Mariazinha penetrou no gabinete do pai, em cujos braços se atirou, desatando em soluços. Trazido um copo d'água, e serenados os seus nervos exaltados, ainda pelo terror, a moça contou, a custo, com o rosto nas mãos, o caso inominável.
- Eu vinha, - soluçava, entrecortando as palavras - eu vinha da aula de música, sozinha, com a pasta debaixo do braço, quando, ali, na rua Paissandú, perto da praia, um sujeito se aproximou de mim, pelas costas e, pondo o braço no meu pescoço, curvou-me para trás, e...
- E... - interrompeu o pai, com a agonia no coração.
E a moça, terminando, com dificuldade:
- Deu-me um beijo na boca, e correu, no rumo da praia!
O caso havia sido realmente assim, mas o comendador insistiu na explicação:
- E tu não o conheces?
- Não, senhor. É um rapaz alto, de roupa clara, chapéu de palha, que eu não sei quem é. Se, porém, o encontrar, eu o reconhecerei.
Intimamente aborrecido com aquela aventura da filha, o comendador deliberou punir o atrevido, prometendo à menina, entre carícias afetuosas:
- Deixa estar, sossega. Esse patife há de ser castigado. De agora em diante eu passarei a acompanhar-te e, onde o encontrares, eu quero que me o apontes.
E, entre dentes:
- Patife!
Passada a primeira emoção, em que o seu pudor de criatura ingênua, de botão desabrochando para a vida, se patenteara com toda a violência da pureza sem simulações, começou o instinto feminino a tomar o seu lugar no espírito da moça, entre cogitações que a alarmavam. Aquele beijo, roubado por um desconhecido, revoltara-a, indignara-a, enchera-a de ódio, na ocasião. À medida, porém, que o tempo se passava, parecia-lhe que aquela carícia brutal aflorava, de novo, na sua boca, numa fome angustiosa de repetição. Debalde, passando a mãozinha pelos lábios, ela procurava escorraçar, afastar, dissipar aquela lembrança. Esta voltava, entretanto, persistente, continua, teimosa, e de modo tal que ela própria já buscava conservá-la no pensamento, como se conserva uma flor encantada, cuja árvore se viu morrer no caminho.
No dia seguinte, após uma noite de angústias deliciosas, em que se casavam, substituindo-se, o pudor e o desejo, foi com desprazer, e com um susto mal definido, que a mocinha ouviu, recompondo com coquetaria os finos cabelos de ouro sob o lindo chapéu de palha de Itália, o convite paterno:
- Mariazinha, estás pronta?
- Já vou, papai! - respondeu a moça, de dentro, dando os últimos retoques na "toilette", diante do toucador.
Durante uma semana o comendador acompanhou a filha, acima e abaixo, da cidade até o palacete, e do palacete à cidade, sem que ela descobrisse o seu insolente desrespeitador. E se o velho capitalista sofria com essas caminhadas, com essas idas e vindas fatigantes, mais padecia ainda a menina, cujos olhos se foram cercando de um halo escuro, denunciador evidente das penosas noites de insônia.
Uma tarde, enfim, ao sair com o pai, a um passeio na praia, Mariazinha tomou um susto que a fez parar, branca, de cera, no gramado por onde ia: diante dela, em um grupo de rapazes, estava, de pé, o estroina, que lhe acordara a alma adormecida na inocência, furtando-lhe na árvore virgem dos lábios o fruto venenoso daquele ósculo! Voltando a si, a moça, como num delírio, não se conteve:
- É aquele, papai! – gritou, batendo as mãos geladas pela emoção.
E, atirando-se ao pescoço do rapaz, cobriu-o doidamente, furiosamente, desesperadamente, de beijos...
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Com os olhos vermelhos de chorar, e com tremores de susto por todo o corpo delicado, a loura Mariazinha penetrou no gabinete do pai, em cujos braços se atirou, desatando em soluços. Trazido um copo d'água, e serenados os seus nervos exaltados, ainda pelo terror, a moça contou, a custo, com o rosto nas mãos, o caso inominável.
- Eu vinha, - soluçava, entrecortando as palavras - eu vinha da aula de música, sozinha, com a pasta debaixo do braço, quando, ali, na rua Paissandú, perto da praia, um sujeito se aproximou de mim, pelas costas e, pondo o braço no meu pescoço, curvou-me para trás, e...
- E... - interrompeu o pai, com a agonia no coração.
E a moça, terminando, com dificuldade:
- Deu-me um beijo na boca, e correu, no rumo da praia!
O caso havia sido realmente assim, mas o comendador insistiu na explicação:
- E tu não o conheces?
- Não, senhor. É um rapaz alto, de roupa clara, chapéu de palha, que eu não sei quem é. Se, porém, o encontrar, eu o reconhecerei.
Intimamente aborrecido com aquela aventura da filha, o comendador deliberou punir o atrevido, prometendo à menina, entre carícias afetuosas:
- Deixa estar, sossega. Esse patife há de ser castigado. De agora em diante eu passarei a acompanhar-te e, onde o encontrares, eu quero que me o apontes.
E, entre dentes:
- Patife!
Passada a primeira emoção, em que o seu pudor de criatura ingênua, de botão desabrochando para a vida, se patenteara com toda a violência da pureza sem simulações, começou o instinto feminino a tomar o seu lugar no espírito da moça, entre cogitações que a alarmavam. Aquele beijo, roubado por um desconhecido, revoltara-a, indignara-a, enchera-a de ódio, na ocasião. À medida, porém, que o tempo se passava, parecia-lhe que aquela carícia brutal aflorava, de novo, na sua boca, numa fome angustiosa de repetição. Debalde, passando a mãozinha pelos lábios, ela procurava escorraçar, afastar, dissipar aquela lembrança. Esta voltava, entretanto, persistente, continua, teimosa, e de modo tal que ela própria já buscava conservá-la no pensamento, como se conserva uma flor encantada, cuja árvore se viu morrer no caminho.
No dia seguinte, após uma noite de angústias deliciosas, em que se casavam, substituindo-se, o pudor e o desejo, foi com desprazer, e com um susto mal definido, que a mocinha ouviu, recompondo com coquetaria os finos cabelos de ouro sob o lindo chapéu de palha de Itália, o convite paterno:
- Mariazinha, estás pronta?
- Já vou, papai! - respondeu a moça, de dentro, dando os últimos retoques na "toilette", diante do toucador.
Durante uma semana o comendador acompanhou a filha, acima e abaixo, da cidade até o palacete, e do palacete à cidade, sem que ela descobrisse o seu insolente desrespeitador. E se o velho capitalista sofria com essas caminhadas, com essas idas e vindas fatigantes, mais padecia ainda a menina, cujos olhos se foram cercando de um halo escuro, denunciador evidente das penosas noites de insônia.
Uma tarde, enfim, ao sair com o pai, a um passeio na praia, Mariazinha tomou um susto que a fez parar, branca, de cera, no gramado por onde ia: diante dela, em um grupo de rapazes, estava, de pé, o estroina, que lhe acordara a alma adormecida na inocência, furtando-lhe na árvore virgem dos lábios o fruto venenoso daquele ósculo! Voltando a si, a moça, como num delírio, não se conteve:
- É aquele, papai! – gritou, batendo as mãos geladas pela emoção.
E, atirando-se ao pescoço do rapaz, cobriu-o doidamente, furiosamente, desesperadamente, de beijos...
Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
Disponível em Domínio Público.
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
Disponível em Domínio Público.
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