quinta-feira, 20 de julho de 2023

Carolina Ramos (Meus Gatos…)

Chega a vez dos queridos bichanos! Sempre tive uma queda especial por gatinhos. Não, apenas, quando pequeninos, graciosos e brincalhões como ninguém, mas também, quando adultos, por conta da personalidade sensivelmente especial e fidalga que todos os gatos têm.

Posso afirmar que essa preferência pelos bichanos começou ainda lá naquele lindo bangalô da Alexandre Herculano.

Um... mais um... Outro... e mais outro... Aos poucos, foram chegando de manso, passos macios, integrando-se à vida algo solitária daquela garota e misturando suas próprias vidas às dos personagens dos livros que a rodeavam - todos eles tornando-se, afinal, companheiros indispensáveis.

Desde cedo, eu amava a leitura e também nunca deixei de ter um gatinho ao meu lado, quando entregue à minha paixão pelos livros.

Estudava e me divertia com eles, quando não aderia à turma da meninada vizinha, somando-me às brincadeiras na calçada.

De raspão, um suspiro de saudade: - Bons tempos em que a criançada podia brincar nas calçadas. Sem medos, sem sustos, livre de dependências e sem sonhar com os viciantes vídeo-games, whatsapps, computadores, etc. Bastava-lhes, tão somente, ser criança!

- E para que mais?! A própria vida, sem preocupações maiores, era um sedutor cofre de segredos. Segredos, a serem descobertos aos poucos, sem pressa, com naturalidade, longe de impactos traumáticos.

A sadia aventura de viver transformava a existência num dos mais dinâmicos e fascinantes brinquedos, em perene evolução, ao correr dos tempos. E era tão delicioso ser, apenas, criança!
...oOo...

Um daqueles primeiros bichaninhos a mim chegados fez história, que merece ser contada. Quando deixamos a Vila dos Andradas, fizemos o que todos procuravam fazer naquele tempo, ou seja, morar o quanto mais perto possível do mar.

Tinha eu apenas cinco anos, ao mudarmos para o bangalô da rua Alexandre Herculano, não tão próximo da praia do Gonzaga, mas já largo passo dado em direção à orla. Além do mais, passo bastante oportuno, já que me aproximava do Colégio São José, que se integraria à minha vida e no qual fui logo matriculada, no Jardim a Infância.

Quando completei oito anos, meus pais deram-me de presente um piano. Eu gostava muito de música e, como se sabe, piano era o toque refinado e indispensável à educação das meninas, naquele tempo.

Nina Mazagão Alcover - o nome da Professora de Música de quem meu pai adquiriu aquele meu querido piano, genuinamente alemão, embora negro como ébano e a ostentar belo e alvo sorriso de marfim. Ao que ouvi dizer, os pianos daquela marca, Steinway, eram os preferidos de Liszt e de Chopin, em seus concertos, embora naquele tempo, para mim, isto pouco, ou nada, representasse.

O Orfeão do Colégio São José estava sob os cuidados dessa mestra, irmã do conhecido maestro Zico Mazagão.

Dona Nina residia ao lado do Colégio São José, Rua Goiás, paralela à que eu morava. Eram, portanto, relativamente próximas as nossas casas. 

E, assim sendo, foi ela a escolhida para ensinar meus dedinhos a deslizarem sem tropeços, ao longo daquele sonoro teclado que acolhia meu toque infantil, cheio de esperanças.

E é neste justo instante que o principal dono desta página entra em cena, chamando para si o espaço que lhe pertence.

E se isto acontece, é porque a Professora Nina Mazagão tinha um gato, o Cetim. Lindo gato branco, sem um pelo sequer que destoasse daquela alvura idêntica à do coelhinho que saltitou nas páginas anteriores.

E era sempre o Cetim que, ronronante, me aguardava no alto da escada, toda vez que eu chegava para a aula de música, trazendo comigo o primeiro método de piano– o Schmoll.

Àquele tempo, confesso, meu interesse musical não era o mesmo que, mais adiante me levaria a terminar o curso de música, até com certo destaque, muito embora a timidez só permitisse que eu tocasse com plena eficiência, quando o fazia para mim mesma, confinada entre as paredes do meu lar, longe de qualquer aplauso. Ou seja, a música que eu tocava era apenas para meu único e exclusivo deleite. Não por egoísmo, mas por pura timidez.

Vez ou outra, em qualquer tempo, e com raríssimas exceções, eu concedia em tocar para minha mãe (que as mães são teimosas - quando querem, querem!) ou, ainda, obrigatoriamente, à frente de uma banca examinadora, a cada final de ano, o que, também não admitia fugas - a não ser as de Bach, das quais, obviamente, nenhum estudante de música escapa.

Na verdade, o público, em qualquer tempo, sempre me apavorou! E para vencer boa parte desse constrangimento, bem sei o quanto me custou... e ainda custa, muito embora eu me auto desafiasse, ao iniciar-me na poesia, adentrando corajosamente nessa praça que exige certa desenvoltura.

Um dos primeiros microfones posto, de improviso, à minha frente, levou-me à madura conclusão: - Se escolhi este campo... ou me venço, ou serei vencida".

Voltando ao Cetim, Dona Nina, com sua tarimba, percebeu logo que o interesse daquela "pianista" iniciante era bem maior pelo gato, do que propriamente pelo piano. E, sutilmente, soube explorar tal descoberta, no intuito de agilizar o progresso musical daquela aluna, ainda bastante instável.

Foi assim que, ao final de uma certa aula, ouvi, deliciada, a promessa que jamais esperara ouvir: - "Carolina... no dia em que você terminar o Schmoll, poderá levar o Cetím para sua casa. Ele será todo seu!"

Claro... Não poderia haver maior empurrão para que aqueles dedinhos iniciantes se agilizassem, ao deslizarem pelo teclado!

Como já foi dito, eu tinha apenas oito anos de idade e meu pai adquirira da própria dona Nina, aquele lindo e nobre piano alemão que, por larga fase de minha vida seria o meu amigão inseparável, com quem eu iria aprender a adoçar e compartilhar emoções de cada dia.

Entretanto... Naquela feliz e irresponsável idade, tudo o que a tal garotinha menos desejava, após o entusiasmo inicial, era gastar "seu precioso tempo" trancada numa sala a conversar digitalmente com as teclas de um piano, obrigada a correr atrás de fusas e semifusas que, ligeiras, fugiam dos seus dedos ainda curtos e bem pouco ágeis.

..."Aí... que saudade que eu tenho da aurora da minha vida... da minha infância querida, que os anos não trazem mais...", canto em dueto com o nosso Casimiro de Abreu, as delícias daqueles tenros oito anos de vida, ao relembrar o estímulo causado pela promessa da professora que conseguiu fazer com que sua jovem aluna, empenhada em ganhar aquele gato dos seus sonhos, se esforçasse sensivelmente, vencendo rápido, as dificuldades do Schmoll para chegar logo, vitoriosa, à derradeira página.

E foi o que aconteceu, num dia feliz que não se fez distante:

- Schmoll galhardamente vencido, finda a aula, voltei triunfante para casa trazendo nos braços aquele lindo gatão - meu primeiro e cobiçado Troféu: - Cetim!

Há, contudo, uma ressalva que precisa ser relatada embora não me credencie bem, ou seja; - com aquela mesma pressa com que terminei o Schmoll para ganhar o gato, também me desinteressei pelo piano!

- Certamente... para ganhar mais tempo para brincar com o bichano, é claro! O que é fácil de entender.

Quem duvidaria de que o Cetim, uma vez conquistado, não iria oferecer maiores atrativos aos oito anos daquela garotinha, já prematuramente enfastiada com aquela obrigação diária de dedilhar notas musicais que exigiam dela um esforço ainda não de todo compatível com o seu amor à música? - Amor esse apenas desenvolvido, com força total, na adolescência?!

Pois é... Foi assim, que aquele querido piano alemão, fechado e mudo, esperou pacientemente por longos anos, que eu crescesse e, afinal, fosse cativada pela musicalidade que ele, paciente e silenciosamente me oferecia. A longa espera, afinal, foi compensada. A tal ponto, que sua dona não mais lhe dispensava a companhia e nem a trocava por nenhuma outra.

Apesar disso, mesmo sabendo o quanto iria sentir sua falta, anos mais tarde, doei meu piano à minha primogênita - mais dotada que a mãe, para música. 

Mas... esta é uma outra história que não cabe aqui. E como um piano apesar de encantar... não mia, não late... e nem bicho é, que fique caladinho lá onde está... uma vez que este espaço pertence exclusivamente aos bichanos.
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continua…

Fonte:
Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023.
Enviado pela autora.

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