Santinha, filha de um negociante
Que passava por ter muito dinheiro,
Bebia os ares pelo mais chibante,
Pelo mais prazenteiro
Dos rapagões daquele tempo, embora
O pai a destinasse a ser senhora
Do Souza, um seu colega, já maduro,
Que lhe asseguraria bom futuro.
O namorado (aí está o que o perdia!)
À classe comercial não pertencia:
Era empregado público; não tinha
Simpatia nem crédito na praça.
Entretanto, Santinha
Nunca supôs que fosse uma desgraça,
Um prenúncio funesto
A oposição paterna, e assim dizia:
— Ele gosta de mim, eu gosto dele...
Que nos importa o resto?
Um para o outro a sorte nos impele:
Separar-nos só pode a cova fria!
Ria-se o pai, dizendo:
— Isso agora é poesia;
Mas deixem-na comigo: eu cá me entendo.
Depois do almoço, um dia,
Ele na sala se fechou co’a filha,
Para tirar-lhe aquele bigorrilha
Da cabeça. A pequena,
Impassível, serena,
Lhe disse com franqueza
Que ninguém neste mundo apagaria
Aquela chama no seu peito acesa.
— Isso agora é poesia —
Repete o pai teimoso,
E, sentando-a nos joelhos.
Melífluo, carinhoso,
Abre a torneira aos paternais conselhos,
Aponta-lhe o futuro que a espera,
Conforme o noivo que escolher: de um lado,
Com o pobre do empregado,
A pobreza pudera! —
O desconforto, o desespero, a miséria!
— Sim, a fome, menina!
Estas coisas chamemos pelo nome!
A fome, — fome atroz! fome canina!...
E, do outro lado, com o negociante,
Que futuro brilhante!
Não faltarás a um baile, irás ao teatro;
Visitarás o Rio de Janeiro;
Poderás percorrer o mundo inteiro,
E ver o diabo a quatro!
Mas a firme Santinha
Não se deixava convencer: não tinha
Ambições, nem sonhava tal grandeza;
Preferia a pobreza,
Ao lado de um marido a quem amasse,
A todo o Potosi com que a comprasse
Outro qualquer marido.
O velho, enfurecido,
Brada: — Isto agora já não é poesia.
Mas grosso desaforo!
Se não acaba esse infeliz namoro,
Vou deitar energia!
— Então papai não acha coisa infame
Que eu me case com um tipo a quem não ame?
— Infame é namorares um velhaco
Sem dar ao pai o mínimo cavaco!
Ou casas-te com o Souza ou te afianço
Que a maldição te lanço!
Santinha, que era muito inteligente,
Continuava a série dos protestos;
Mas o irritado velho, intransigente,
Soltando gritos e fazendo gestos,
Nada mais quis ouvir naquele dia;
Mas na manhã seguinte foi chama-la
Ao quarto (a pobre moça ainda dormia!)
E pela mão levou-a para a sala.
Ficou muito espantado
Ao ver que a filha, ao invés do que previra
À noite houvesse muito bem pensado.
Pareceu-lhe mentira
Encontrar tão serena
E tão tranquila a moça,
Como se a grande cena
Da véspera lhe não fizesse mossa.
— Então? estás na tua? —
— Papai, de mim disponha:
Dê-me, alugue-me ou venda-me: sou sua.
Por tudo estou, solícita e risonha;
Confesso, todavia,
Que por meu gosto não serei esposa
Do seu amigo Souza:
Mentir não posso!
— Cala-te, pateta!
Isso agora é poesia...
A fortuna, verás, será completa!
Aprontou-se depressa a papelada,
E a casa mobiliada
Em quinze dias foi. Veio de França
Riquíssimo enxoval, conforme a usança,
O qual esteve exposto
E toda a gente achou de muito gosto.
Mostrava-se Santinha
A tudo indiferente, e o moço honrado
Que o seu afeto conquistado tinha,
Também não se mostrou contrariado;
Era o mesmo que dantes: expansivo,
Discreto, espirituoso, alegre e vivo.
Chegou a noite, enfim, do casamento
Que era na igreja do Recolhimento,
Igrejinha modesta
Expressamente ornada para a festa
Pelo Joaquim Sirgueiro,
Que foi naquelas artes o primeiro.
O templo estava cheio
Quer de curiosos, quer de convidados.
Que mistura! no meio
De graves figurões encasacados
E damas de vestidos decotados,
Abrindo enormes leques,
Negros sebentos, sórdidos moleques!
A noiva estava pálida e tremente,
Mas linda. Realmente
Era pena que flor tão melindrosa
Fosse colhida por um brutamontes,
Que na vida outros vagos horizontes
Não via além da Praça...
Na igreja se ouviria o som de uma asa
De inseto, quando o padre bem disposto,
À noiva perguntou: — É por seu gosto
E por livre vontade que se casa?
Imaginem que escândalo! A menina,
Com voz firme, sonora, cristalina,
Respondeu: — Não, senhor! Um murmúrio
Corre por toda a igreja, e um calafrio
Pelo corpo do Souza,
Que o turvo olhar do chão erguer não ousa!
A pergunta repete o sacerdote;
Logo o silêncio se restabelece.
Para que toda a gente escute e note:
— Não-se-nhor! — Estremece
O velho, e tosse pra que se não ouça
A resposta da moça.
— Não, senhor! Não,senhor! Mil vezes clamo:
Por gosto não me caso,
Mas obrigada por meu pai; não amo
O senhor Souza, mas de amor me abraso
Por este! — E aponta para o namorado
Que pouco a pouco tinha se chegado.
Não é possível descrever o resto
Depois desse protesto.
Falavam todos a um só tempo! A igreja
Desabar parecia!
O padre corre para a sacristia...
A moça pede ao moço que a proteja...
— Isto agora é poesia!
Diz o atônito pai, querendo contê-la.
Todas as convidadas
Sufocam gargalhadas...
O noivo, maldizendo a sua estrela,
Sai para a rua: a sanha
Da torpe molecagem o acompanha,
E uma vaia o persegue,
Até que ele num carro entrar consegue.
Santinha está casada e bem casada;
O marido dispensa-lhe carinhos:
Vê sempre nela a mesma namorada.
Já tem uma ninhada
De filhos, e o avô — quem o diria?
Morre pelos netinhos,
E diz, quando a mira-los se extasia:
— Isto agora é poesia!
Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Artur de Azevedo. Contos em verso (contos maranhenses). Publicado originalmente em 1909.
Português atualizado por J.Feldman
Disponível em Domínio Público.
Artur de Azevedo. Contos em verso (contos maranhenses). Publicado originalmente em 1909.
Português atualizado por J.Feldman
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