quarta-feira, 26 de julho de 2023

Mör Jokai (O Catavento infeliz)

Parece que a fortuna se diverte estendendo a mão favoravelmente a alguns indivíduos, enquanto que a outros só os engana e tortura a vida toda. Os seus caprichos fornecem-nos saliente exemplo dos dois modos de proceder. Relatamos os factos como os ouvimos, sem acrescentar uma palavra.

No final do ano de 1840, a guerra era o único assunto em voga. Especialmente em Peste, a palavra "paz" estava fora de moda. Os hotéis viviam plenos de hóspedes, que se encontravam em especial para discutirem o assunto predileto. Ouviam-se músicas marciais de manhã à noite; preparava-se a guerra europeia. 

Estavam sentadas diante de uma pequena mesa do Hotel Nagy Pipa duas personagens a quem se poderia aplicar o ditado alemão: “um cala e o outro o escuta”, porque uma dessas personagens parecia meditar atentamente a causa provável ou possível do silêncio do seu companheiro, deitando-lhe de vez em quando um olhar curioso como se quisesse sondar algum projeto secreto que ele tivesse forjado. 

Este sujeito observador era, nem mais nem menos, do que o compassivo Mestre Janos, cabo da polícia e vice-carcereiro da pobre cidade de Peste; e quando informamos aos nossos leitores de que ele ocupava este posto no tempo de Metternich, e que, apesar da queda deste ministro, ainda conservava o seu lugar, o que não costuma ser a sorte de um ministério caído, com certeza haverão de admitir que o favorecido pela fortuna era este Mestre Janos em pessoa. Da mesma maneira não se pode negar que o indivíduo à sua frente fosse perseguido pela deusa volúvel como era favorecido Mestre Janos, não só porque era alvo dos olhares desconfiados do honrado Mestre Janos, mas muito especialmente porque aprendiz de serralheiro de Viena não podia fazer pior coisa do que vir a Hungria, país onde este ofício é exercido a cada canto das vilas pelos ciganos wallachios. 

Mestre Janos não havia estudado Lavater, mas uma longa experiência levara-o a julgar, depois de um minucioso exame no rosto do homem, que estava ele ruminando algum plano contra-revolucionário. Como consequência disto, aproximou-se mais da cadeira, resolvido a quebrar aquele silêncio. 

- De onde vem o senhor, se me dá licença de perguntar? - indagou ele ao companheiro de mesa, com um olhar astuto. 

- Ah! de Viena - suspirou o outro, olhando o seu copo vazio. 

- E que notícias nos traz da cidade? 

- Hum... nada boas! 

- Nesse caso, quais as más notícias? 

- Receia-se muito que haja uma guerra. 

- Receia-se? Mas que audácia! Como se arriscam a temê-la? 

- Ah, meu senhor, eu também não a temo, desde que esteja a uma distância de trinta léguas; escutei numa adega, uma vez, bombardearem as ruas, e não achei isso nada agradável. 

Mestre Janos ficou mais desconfiado ainda. Resolveu fazê-lo com que bebesse um pouco mais. Seria provável que, assim, acabasse descobrindo algum tipo de conspiração perigosa. Quantos copos um serralheiro demandaria? À segunda caneca, a cabeça descaiu-lhe, e a língua movia-se com dificuldade. "Agora é a hora certa", pensou Mestre Janos, enchendo o copo de novo. 

- Viva a liberdade! - exclamou, esperando que o serralheiro lhe tocasse no copo, para completar a saudação. 

O austríaco não levou muito tempo para atender o convite, e repetiu o "Viva!", tanto quanto sua língua embriagada o permitiu. 

- Agora é a sua vez de levantar um brinde - disse o vice-carcereiro, olhando sua vítima com o canto do olho. 

- Bem, eu não estou acostumado a brindar, senhor: só a acompanhar o brinde dos outros... 

- Vamos lá, não seja egoísta e beba a saúde de quem considera o homem mais notável do mundo, ande. 

- Do mundo inteiro? - perguntou o serralheiro, pensando que o mundo era imenso e ele pouco conhecia dele. 

- Sim, do mundo inteiro, de todo o globo terrestre - continuou Mestre Janos, em tom de confidência. 

O serralheiro hesitou, esfregou o nariz e finalmente gritou: 

- Viva o Mestre Slimak! 

Com esta demonstração, o vice-carcereiro estremeceu. Com certeza este Mestre Slimak era algum chefe eleito, não havia dúvida! E sem aquela, agarrou o serralheiro pela gola do casaco e, conduziu-o até a casa da câmara, onde o arrastou para uma sala estreita e lúgubre, à presença de um sujeito gordo e de rosto rosado. 

- Este homem é um suspeito - exclamou ele. - Em primeiro lugar, teve o atrevimento de temer a guerra; em segundo, esteve sentado das sete às nove e meia, duas horas inteiras sem abrir a boca! E finalmente teve a petulância de brindar publicamente um tal Mestre Slimak, que muito provavelmente é um indivíduo tão suspeito como próprio. 

- Quem é Mestre Slimak? - perguntou, com ar severo, o homem gordo e corado. 

- Ninguém, senhor - respondeu o vienense, tremendo -, a não ser o meu primeiro patrão, um honrado serralheiro como eu a quem servi durante quatro anos e ainda estaria servindo se a mulher dele não tivesse me espancado. 

- Impossível! - replicou o sujeito gordo e corado. - Ninguém faz um brinde em público a um personagem como este! 

- Mas eu não conheço os costumes cá desta terra. 

- Se queria fazer um brinde, porque não brindou à liberdade constitucional, aos exércitos do Danúbio ou à liberdade de imprensa, ou algum brinde semelhante? 

- Mas, meu senhor. Em um mês aqui eu não poderia ter aprendido isso tudo. 

- Mas em três meses espero que possa aprendê-lo muito bem. Mestre Janos, prenda esse homem! O compassivo Mestre Janos agarrou o delinquente pela gola, e levou-o para o lugar reservado aos malfeitores dessa espécie, onde teria tempo para meditar sobre as razões que o tinham ali colocado. 

Os três meses passaram-se com muito vagar para o serralheiro. Eram meados de março. Mestre Janos colocou seu prisioneiro em liberdade. O honrado homem, para provar que tinha modificado seus sentimentos e assim enaltecer-se aos olhos de Mestre Janos, saudou-o com as seguintes palavras: 

- Viva a Liberdade e viva o Exército húngaro! 

Mestre Janos tremeu nas bases, encostou-se à parede, mudo e horrorizado e, ao retomar o equilíbrio, agarrou o serralheiro atônito que, quando deu por si, achava-se mais uma vez na sala estreita e lúgubre. Desta vez, porém, em lugar do homem gordo e corado, encontrava-se diante de um outro, escuro e magro, o qual, ao compreender a acusação contra o prisioneiro, sem permitir explicações, condenou-o a três meses de prisão, informando-se que dali em diante, se não pretendesse pior sorte, deveria de gritar: - Viva o Exército Imperial, viva a grande Constituição e a única e poderosa Áustria! 

E o serralheiro, tendo apenas dado três passos para fora de sua cela, voltou à prisão, refletindo sobre sua pouca sorte. 

Passaram-se mais três meses. Era junho. O compassivo Mestre Janos não deixou de libertar seu prisioneiro. O pobre homem começou logo, ainda na porta da cela, a pronunciar as palavras redentoras: 

- Viva o Príncipe Winischgrätz! Viva a gloriosa Áustria! 

Mestre Janos levou a mão à espada, como se quisesse defender-se daquele homem incorrigível. 

- Como é? Pois não lhe bastaram duas prisões? Ainda não aprendeu o que deve dizer? Tenha a bondade de vir até aqui. 

E pela terceira vez entrava na pequena sala. Em lugar do sujeito escuro e magro estava o outro, gordo e corado, em cuja presença a nossa vítima foi instado a responder pelo seu delito. 

- Traidor teimoso! - exclamou o homem. - Não compreende a gravidade de sua ofensa e que, sob a minha responsabilidade, em vez de tê-lo condenado a três meses de encarceramento eu o tivesse entregue a Justiça, você estaria a esta hora cortado em quatro pedaços, como bem o merecia? 

O pobre serralheiro teve de se consolar, em meio a seu terror, com a suavidade do seu castigo. 

- Mas o que é que eu deveria ter dito? - perguntou ao seu indulgente juiz, em tom de desespero. 

- Como? O que deveria ter dito? Viva a República! Viva a Democracia! Viva a Revolução! 

O pobre homem repetiu as três saudações e, prometendo fielmente atendê-los, resignou-se pacientemente a mais uma pequena jornada em sua escura toca. 

Durante os três seguintes meses, tudo mudara, menos a boa sorte do Mestre Janos. Nem o tempo nem o acaso tinham conseguido despojá-lo do seu lugar, como acontecera a tantos outros. Ele era ainda vice-carcereiro da nobre cidade de Peste, como sempre o fora. Era o mês de setembro. A pena do serralheiro terminara; Mestre Janos chamou por ele. O rosto do prisioneiro traduziu que havia alguma coisa de importante; e logo que o dito carcereiro se aproximou dele, segurando-lhe a mão, exclamou entre soluços: 

- Ó Mestre Janos, diga àquela pessoa que lhe beijo humildemente a mão e que desejo do mais fundo da minha alma as prosperidades da República. 

Como o lobo faminto cai sobre o cordeiro, Mestre Janos mais uma vez agarrou o serralheiro pela sua mal cuidada gola. De fato, o digno carcereiro estava tão ofendido que, tendo conduzido o prisioneiro à sala estreita, levou algum tempo até voltar a si, o suficiente para explicar os acontecimentos ao sujeito negro e magro que mais uma vez ocupava o lugar do outro, grande e corado; e grande foi seu desgosto quando aquele cavalheiro, em vez de condenar o delinquente a ser esmagado na roda, apenas lhe deu mais três meses de detenção. 

No dia três de novembro todas as pessoas detidas por pequenos delitos políticos foram postas em liberdade; o serralheiro, entre elas. Quando Mestre Janos abriu a porta, o infeliz serralheiro tapou a boca com o lenço, dando a entender ao carcereiro que dali em diante guardaria suas íntimas saudações apenas para si mesmo. Poderia ter-lhe servido de consolo o fato de se saber que não fora ele o único a gritar "Viva!" na hora errada.

Fonte:
Mör Jokai. Publicado originalmente em 1854, 
em Hungarian Sketches in Peace and War

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