sábado, 22 de julho de 2023

Goulart Gomes (Fazenda Solidão)

Mormente o chão ficar dessa tez, que nem asa de graúna, mode o piche chamado asfalto, as coisas pouco mudaram. Desta varanda, donde meu pai espichava os ossos, na madorna depois do almoço, só se enxergava ocre, cor de terra pisada e estrume de boi, até o horizonte.

As coisas se eternizavam. Mal o sol acordava já os galos seguiam seu rastro. Nós, depois. Dentes limpados com folha de juá e o cheiro de estrume saudava, antes do vapor do bule de café. Pilado ali mesmo, com porretadas firmes: tum - tum – tum - creque - tum - tum - tum - creque. 

E o resto do dia era relando o traseiro na sela da montaria, catando gado como quem cata piolho, nas carapinhas do sertão, entre um e outro aboio.

— Pintado, Pintado! Malhada, Malhada! Estrelinha, Estrelinha! Tinhoso, Tinhoso! Ê, gado, ê gado!

A bênção do Velho Chico, matando a sede, lavando roupas e almas. Honra, não, que essa só sangue afoga, todo caboclo sabe.

Mas falava do almoço, e meu pai nele.

Comida vária, cachaça e pimenta-de-cheiro. Malagueta, às vezes, de dar escorredeira nas ventas e água nos olhos. Isto para mim, que era moleque. Meu pai esmagava, mascava, ruminava, feito suas reses. Pior só seu rapé, misturado com folha moída de umburana e demais. Guardava-o numa bolsa, fixa na algibeira.

Mas falava do almoço, e meu pai nele.

Silêncio de sacristia. Sem camisa, não. Peito guardado do vento, por respeito e resguardo. Convém evitar espinhela caída. O velho à cabeceira, a mãe, da cozinha para a sala, no vai-e-vem de pratos, travessas e panelas de ferro. Todos os irmãos, presença obrigatória. E comida farta, como farta inda é. 

Só não os filhos, que nenhum Deus me deu. Irmão sempre procura desavença: uma carne mais torrada, a coxa do frango, a casca do pão... E meu pai sério por fora e sorrindo por dentro, hoje eu sei, dos nossos rompantes. Crescidos, tomaram rumos vários. Quase todos na querência de serem "doutores" de anel no dedo, e arribaram para não sei quantas e quantas capitais. As mulheres, casadoras e parideiras, hoje cuidam dos filhos seus. 

Eu por aqui me acoitei, vendo as coisas mudarem lentamente, cada vez mais grisalhos os cabelos. Até um pé de parabólica, que plantei, nasceu.

Fui eu quem fechou os olhos do velho, derradeira diligência, e atendi seu último desejo:

— Fio, panhe acolá uma ruma de terra do currá e me faça um trabisseiro. Quero suspirar com esse cheiro nas venta.

E assim foi. Tenho para mim que morreu contente, se morte é coisa que se alegre. Pensei de ver, também, filho meu crescendo como os pé-de-pau. Quem vai fazer meu travesseiro de estrume? Talvez Noêmia, servidora de forno, fogão e esteira.

— Alô.

— Alô. Ernesto? Como vai?

— Aqui, como Deus quer. E você?

— Bem, obrigada. Liguei porque Fábio vai fazer aniversário, sexta-feira, e queria lhe convidar para uma festinha que vamos fazer para ele. Você sabe, ele vai fazer dois anos... é o tempo que eu não lhe vejo.

— Carecia ter trabalho? Agradeço pela lembrança mas, você sabe, é uma tirada e tanto até aí. Fica para outra vez. Oportunidade não haverá de faltar, né?

— Está bem. Um abraço. Tchau.

— Outro. Até mais.

Não sei da tenência desse telefonema. Ela sabia que eu não iria. Certamente a saber se vivo estou. Dois anos, já. Dez anos que a conheço. Não fui e não vou. Ela devia de estar abancada aqui, tomando conta de mim e deste mundo de coisas. Mas não, preferiu os cinemas, as praias, os chópingues, as coisas da cidade. Viagem para a Europa, Estados Unidos, roupas caras, joias? Isto eu também podia lhe dar, e bem mais. E nem fazia questão de amor, que isso é coisa de poeta, bastava me aquentar o corpo. Mas não. Agora fica assim, ligando como quem faz caridade. Um marido que nem lhe tem serventia. Dizem que nem cria ele sabe fazer.

Dessa arte eu lhe dei conta, ela sabe, meses antes de se casar. Agora não lhe quero, nem que me desse o filho que já tem. Casou emprenhada, para amarrar o besta. Quem bem sabe? Deus escreve certo em arame farpado. 

Nem quero saber que fim leva essas terras, sem um dono, que um dia tudo se acaba. E acaba infestada de bandeiras vermelhas, ou cheia d'água. O sertão não vira mar? O sertão Todo não virá a amar? O ser tão mar não vira? O ser... não... vir... amar... tão - tão - tão. Zoada de porrada desamassando panela. Eu carecia mesmo era de não olhar tanto para trás. 

Ver, além de mim, um fruto, um futuro: um filho, para falar de seu pai aos seus filhos. Mas ela, já vai tarde!

— Noêmia! Bota a mesa pra janta que já tem lua! E bote dois travesseiros na cama, que hoje é sábado, dia de dormir mais tarde.

– Diacho de rede que me acaba as costas!

Fonte:
Goulart Gomes. Todo tipo de gente. Poético Edições, 2011.

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