domingo, 9 de julho de 2023

A. A. de Assis (Higiene da alma)

Seu Tóvão, às vezes também chamado Cristóvão, tinha ainda a saúde em razoável estado. Porém já passara dos 90 e bem por isso começara a se preocupar mais seriamente com a revisão da vida, decerto julgando estar próxima sua transferência para o eterno plano.

Era um homem abastado, pelo menos o suficiente para garantir um confortável fim de linha e ainda deixar herança. Então pensava ser o momento de se desapegar de vez das coisas da terra e se concentrar mais cuidadosamente na higiene da alma.

Foi sempre uma pessoa correta, desde criança. Nascido em berço humilde, se fez sozinho, trabalhou duro, formou uma família nos conformes, daí que não carregava na consciência nenhuma lembrança de culpa importante que lhe pudesse dificultar a prestação de contas. Havia, porém, um porém: acumulara ao longo da existência algumas dolorosas mágoas; na verdade, três injustiças contra ele cometidas e em razão das quais cultivava amargosa desafeição por três non-gratos.

1. Um professor que o punira severamente, acusando-o de um malfeito que ele jamais cometera;

2. Um tio que traiçoeiramente passara seu pai para trás num negócio;

3. Uma parenta que mentirosamente telefonara para sua mulher dizendo tê-lo visto em flagra de namoro com uma fulana, com isso provocando grave abalo em seu até então pacato contexto conjugal.

Os três já haviam morrido, contudo permaneciam cricrilando na memória dele, o que lhe causava vexação e tristeza. Afinal aprendera que amar os inimigos e perdoar setenta vezes sete eram condições especialmente fortes para entrar no céu; daí que vinha rezando e se esforçando bastante para curar de todo aqueles três ressentimentos.

Contudo supunha faltar ainda um gesto concreto, e nisso matutava quando num de repente se lembrou de outro precioso preceito: “Bem-aventurados os que injustamente sofrem perseguição”. Era o caso dele, e nesse caso, pensando bem, em vez de vítima, o correto seria ele se sentir devedor. Devia aos ex-malqueridos a graça de haver somado alguns pontos em seu processo de purificação. Precisaria, portanto, de algum modo retribuir.

A ideia veio luminosa: escolheu três instituições de caridade e a cada uma fez uma doação em nome de cada um daqueles tais: o professor perverso, o tio safado e a parenta fofoqueira.

Bom efeito de pronto surtiu. E agora sim, com o coração levinho, a consciência pacificada e a alma sossegada e límpida, poderia aguardar sem susto o momento de assumir o celestial status, evento que todavia não estava tão próximo como imaginava. Já chegou aos 99 e começa a convidar a família e os amigos para partilhar com ele o bolo dos 100 anos.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – 02.3.2023)
 
Fonte:
Blog do Rigon 

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