segunda-feira, 31 de julho de 2023

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capitulo 6: Noite fandangueira

Finalmente chegou o momento do grande baile. E a dona Noite, bela e glamorosa, com seu vestido preto, bordado de estrelas, se preparava para dançar até o dia amanhecer, depois, por certo, exausta, adormeceria dando lugar ao sol. 

Tão iluminada quanto à noite, estavam as prendas a se enfeitar em frente aos espelhos.

Dona Ana pôs um vestido rubro com bordados em linho branco. O vestido de Isadora era de um inocente azul celeste, que enaltecia os negros fios dos seus cabelos. E Enila, sempre tão meiga, só poderia vestir-se em um delicado tom de rosa.

- Ana, por que vestiu encarnado? - perguntou o implicante marido ao ver a mulher exuberante.

- Não vejo nada demais, homem.

- Não gosto de “muié” que chama atenção.

- Pai, não cria problemas. Hoje é noite de festa - disse Isadora, ao ajeitar o lenço vermelho no pescoço do velho.

Neste momento chegaram os pais de Enila:

- Mas que barbaridade! As prendas mais lindas deste pago estão aqui - disse o senhor Fiore, ao ver as mulheres tão bem vestidas. A sua esposa, dona Eliana, optou por um vestido lilás e um coque dourado, que enalteciam o seu rosto claro. Cumprimentou gentilmente e elogiou dona Ana pela escolha do vestido.
       
- Tá na hora do baile. “Vamo”! - Chamou o senhor Antônio, sempre trajado com a sua pouca paciência.

O CTG estava lotado. Havia muitas mesas sendo servidas, e gente faceira a dançar por todo o salão. Os jurados do concurso de poesia, estavam a postos, sentados juntos em uma mesa especial. A atração mais esperada da noite já se fazia presente no palco. Tratava-se de Vitor Mateus Teixeira, o famoso Teixeirinha, juntamente com sua parceira, a Mary Teresinha.

Naquela época, eles formavam a dupla mais famosa do Rio Grande do Sul. Brilhavam em seus desafios musicais, onde a trova reinava sem pedir licença. Porém o talento de Mary Teresinha ultrapassava as fronteiras do cantar. Ela tocava gaita como poucos. Até ficou conhecida por muitos como “A Menina da Gaita”.

A família Fiore e a família Machado buscaram acomodar-se para assistirem ao show. 

Os olhos da prenda Isadora cintilavam em direção ao palco.
 
Trecho do desafio musical da dupla ...

(Teixeirinha)
Meus amigos estou chegando,
Venho de cima da Serra
Procurando um trovador 
Aqui na face da Terra
No meu rodeio de trova 
Torito baixo não berra

(Mary Terezinha)
Eu também estou chegando 
Nesta hora encantadora 
Venho vindo da fronteira
Na trova sou professora 
Aceito o teu desafio 
E vou te surrar de vassoura

(Teixeirinha)
Pra me surrar de vassoura
Se eu perder quero uma vaia
Eu procuro um cantador 
Que dê três quadras na raia
Por castigo me aparece 
Pra trovar um rabo de saia

(Mary Terezinha)
Pra trovar um rabo de saia 
Sai daqui petiço manco
Puxa a violinha e vem
Que tu vai no primeiro arranco
Trovador da tua marca
Costumo dar de tamanco 

A noite contou com outras atrações: as ilustres poetas e trovadoras, Doralice Gomes da Rosa e Neoly Oliveira Vargas, que faziam parte da comissão julgadora do concurso “Poeta Revelação’, e que logo mais também fariam suas apresentações poéticas, estavam numa reserva próxima ao palco, rindo e brincando junto de alguns jovens, fãs de seus versos.

- Aqui temos três exemplos femininos de que a mulher pode, sim, se expressar e ser feliz dentro e fora de casa. Mary e essas maravilhosas poetas. - disse a prenda bonita, sentindo-se muito orgulhosa em poder estar ali prestigiando aquelas mulheres que, grandiosamente, conseguiam expressar seus nobres talentos frente a uma sociedade tão machista.

 - “Muié” não tem que andar por aí se exibindo. - afirmou o senhor Antônio, sempre reclamando de tudo.

Após ouvirem o infeliz comentário, todos jantaram, enquanto continuaram assistindo à apresentação da dupla mais querida do pampa rio-grandense.

Logo depois do show, subiu ao palco o jovem poeta, Genuíno Campos, um jovem pouco conhecido no mundo da poesia, mas notoriamente talentoso. Ao recitar seus versos, seus olhos se cruzaram com os olhos de Isadora e ambos se atraíram feito imã...

“Sonhos... 
Eis que a prenda, neste sonhar de olhos abertos, me encontrou. 
Cabelo de sereia, olhos de jabuticaba, 
sorriso de amor faceiro. 
Meu devaneio nunca fora tão real... 
Uma mistura de bem e mal me invade agora. 
Nesse caminho cheio de ilusão, 
encontrei o meu tesouro. 
A lua, de repente, me observou... 
E resplandeceu – se inteira sobre a noite de minha pele. 
Sinto-me flutuar... 
Quero para mim este luar.
E brincar de amar, de amar um amor eterno...
O poeta não precisa adormecer para se achar no mundo dos sonhos.
Porque o sonhar é o despertar do poeta sonhador, é a sua água viva, sua realidade definitiva e amorosa."    

 Essa foi uma apresentação surpresa. Ninguém conhecia o rapaz. 

Após sua declamação, com a licença do Senhor Antônio, ele convidou Isadora para dançar. Ela tão branca, ele negro, eram como a noite e o dia a misturar –se nos compassos de uma nova dança...

O seu jeito de poeta, alegre e sonhador, logo conquistou a simpatia da prenda.

Enila sorria de longe para a amiga, acenando com a mão enquanto dançava com o noivo.

- Obrigado por aceitares essa contradança. Aprecio a crescente participação das mulheres em eventos como este. - disse o jovem rapaz, belo, alto e extrovertido.

- Não és conservador? - indagou Isadora.

- Depende do tipo de conservadorismo que estás a te referir.

- Não és da opinião de que as mulheres não devem se expor, já que nasceram somente para cuidar da família?

- Sim. O primeiro dever das mulheres é para com sua família, mas esse é também o primeiro dever dos homens, minha flor.

- Como te chamas? - perguntou ela. 

- Genuíno.

Isadora sorriu. E eles continuaram a dança.

Enila dançava com o noivo, seu Fiore, com a esposa. E dona Ana permanecia sentada ao lado do marido, que não sabia se estava feliz ou não com a decisão de ir ao baile. 

Mais tarde, para recitar alguns dos seus versos, subiu ao palco a esperada veterana trovadora, Doralice Gomes da Rosa.

- Boa noite, gaúchos e gaúchas de todas as querências. Estou aqui, nesta noite gloriosa, para lhes recitar alguns dos meus versos. Quero o aplauso de todos. Quem não gostar, pode aplaudir do mesmo jeito. - disse, fazendo o público rir com a sua irreverência. 

Queridas prendas, não façam como...
 Aquela coroa enxuta:
mal anoitece, ela sai,
dizendo que vai à luta,
- Só Deus sabe onde ela vai!

“Às mais jovens tenho a dizer:
Meninas, eis um conselho, 
vede bem por onde andais!
A honra é como um espelho,
se quebrar, não cola mais...

“Mas meu caso é diferente. E não tem jeito, não.
Longe de ser fogo brando,
nosso amor, quase heresia,
é uma usina turbinando 
vinte e quatro horas por dia!...

“Não julguem a minha contradição, façam o que digo, não o que faço, e de Deus, Patrão Velho, buenacho, terão toda proteção!

“Se bem que, os amantes, fazem parte da sua melhor criação divina!

“Quer saber? Sejam apenas felizes e nada mais.”  

O público aplaude de pé. E ela encerra a apresentação dizendo: - Estou muito orgulhosa em fazer parte de uma festa tão formosa junto de presenças ilustres.

Doralice passou o microfone para dona Neoly, uma querida confreira. 

- A vida é tão boa! Vamos agradecer?
Pelo sol, pela beleza, 
deste céu, do mar, da flor. 
e por toda a natureza
eu te agradeço, Senhor. 
Mas só agradecer, não basta, precisamos pregar a paz:
Tanto ódio!...Tanta guerra!...
Mandai bons ventos, Senhor,
aos quatro cantos da Terra,
somente espalhando amor!

Sabem porque precisamos ser assim? Porque...
Viver é recomeçar,
olhar em frente, sorrir,
é ter coragem, lutar
acreditar no porvir.”  

O público torna a aplaudir alegremente a doçura com que a poeta Neoly recitou seus versos. 

Teixeirinha cumprimentou aleatoriamente os convidados da festa. E, ao notar a presença de Isadora, admirado, interrompeu a dança do casal. 
 
- Mas bah, estou de “beiço inchado”... Aqui no Rio Grande tem muita moça bonita, mas igual a ti, minha prenda, meus olhos ainda não tinham visto. Não te enciúmes, - disse ele à Mary Terezinha - pois tu és a minha prenda favorita.

- Não me enciúmo, caro companheiro. Sei reconhecer e admito que tua admiração é justa - disse a Mary, com simpatia.

Isadora agradeceu, elogiou o talento da dupla e voltou a dançar com Genuíno.

- Onde moras? - perguntou o trovador.

- Na fazenda “Prenda Bonita”.

- Trabalho naquelas redondezas. Irei te visitar, guria. Posso?

- Sim. Quero te ver mais.

Isadora estava visivelmente feliz. Numa única noite conheceu tradicionalistas famosos de quem sempre foi fã, e um interessantíssimo jovem poeta / peão. 

Sem sombra de dúvidas, aquela fria e ao mesmo tempo calorosa noite de inverno, se fez inesquecível, tanto para Isadora, quanto para outras prendas ali presentes, habituadas ao isolamento doméstico.  

A comissão julgadora do concurso deu o primeiro lugar a Genuíno, a mais jovem revelação no mundo dos versos naquela região de Cachoeira do Sul e interior. Emocionado, ele recebeu os cumprimentos de Neoly, Doralice, da Mary, e um gratificante troféu, vindo das mãos de Teixeirinha.
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continua…

Fonte:
Enviado pela autora.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito obrigada pela carinhosa homenagem a minha amada mãe, Neoly e a sua querida amiga Doralice . Fui às lágrimas. Não consegui conter a emoção. Beijo