sábado, 22 de julho de 2023

Coelho Neto (O Príncipe de Laos)

Quando lhe disseram que o físico pedira, além da condução, uma guarda de fortes cavaleiros que lhe garantissem a vida nos andurriais (lugares ermos) assolados pelos bandidos e tantas moedas de ouro quantos fossem os dias que passasse no castelo, ergueu-se no leito o ríspido suserano bramindo, a apontar a arca em que guardava o tesouro :

— Dali não sai moeda para tão refalsado vilão! O que lamento é não ter forças para montar o meu ginete e empunhar uma lança, porque havia de mostrar-lhe como costumo responder a afrontas da ralé. Dali não sai moeda.

Disse e caiu no leito prostrado e gemendo.

Foi tamanho o furor, tão violento o arranque, tão despejados os movimentos do ancião que se lhe abriram as feridas do peito e o sangue jorrou a golfadas. Solícita e ligeira, a filha acudiu a tempo de estancar a copiosa hemorragia e, com palavras meigas e sossegadas, serenou o ânimo do pai contendo-lhe o sufocamento e os protestos coléricos da avareza e, para distrai-lo, à falta de menestrel ou jogral que lhe cantasse, ao som da rota, uma cantilena, tomando o fuso, a fiar, improvisou o romance do Príncipe de Laos.

“Logo que subiu ao trono o príncipe galhardo, o cavaleiro mais requintado e a melhor lança do reino, ordenou se fizessem grandes obras militares ao longo da fronteira, se dotasse a esquadra de navios possantes, se alistassem no exército os mancebos das principais famílias. Queria os jovens e de boa sombra, armados com esplendor para que todos que os vissem ficassem deslumbrados. Assim foi feito. Restauraram-se as muralhas, armaram-se galés altivas, escolheram-se os esbeltos infantes e os mais gentis cavaleiros.

“O que maravilhava, porém, não era a espessura das muralhas, não era o porte dos navios, nem era tampouco, o número da soldadesca, mas o fausto que em tudo se notava. As muralhas eram pintadas como paredes de paços, as naus andavam sempre enfeitadas, como em festa, com a campanha vestida de linho alvo, vergando remos que eram de sândalo; os infantes, mais pareciam donzéis de paço, vestidos de púrpura com arcos que trescalavam, escudos que eram baixelas, lanças com espículos de prata e que direi dos cavaleiros? Se os telizes (panos para sela) eram de trama de ouro, podeis imaginar como seria o mais.

“Toda essa ostentação era apenas para a vista: nem as muralhas ofereciam resistência porque as pedras, mal assentadas, rolariam ao primeiro embate abrindo brechas ao inimigo, nem os infantes meneavam as armas e os cavaleiros só em torneios galantes escaramuçavam. O príncipe contentava-se com possuir exércitos e uma esquadra numerosa. Que lhe importava a imperícia do soldado e a inexperiência do marujo? Lá estavam os vistosos esquadrões e no molhe, velas abertas, a esquadra arfando.

Sucedeu que um monarca ambicioso, cujo reino confinava com o de Laos, resolveu levantar-se em armas contra o príncipe garrido e, estendendo em campo o seu valente exército e soltando nos mares a sua aguerrida frota, impôs-se com arrogância.

Foi então que um aio falou ao príncipe :

— Senhor, é tempo de fazerdes sair a vossa gente. Guarnecei as muralhas, confiai o comando da tropa a um general arguto, entregai a um hábil capitão a esquadra e facilmente fareis recuar o ousado que nos ameaça com afronta.

— Que! – exclamou o príncipe. – Queres que exponha os meus infantes, que tanta vista fazem com os seus uniformes de púrpura, as suas perneiras de prata, os seus escudos de aço brunido e as suas lanças ornamentadas, à gente rude e devassa que aí vem?  Hei de lançar ginetes preciosos e cavaleiros que levam no corpo tesouros em pedrarias contra uma horda de maltrapilhos? Achas que navios laminados a prata, abrindo velas de linho, foram feitos para abordar chavecos? Não! E deixou-se estar.

Chegou às muralhas a chusma bravia e logo foi iniciado o assalto.

No mar as galeras ricas sofreram o abalroo da frota inimiga e, uma a uma, foram soçobrando. Corre o aio ao palácio.

O príncipe admirava a sua gente de guerra que manobrava ao sol, num campo fechado. As escunas cintilavam, os cocares dos elmos eram de todas as cores e os cavalos, cabeando airosamente ao meneio dos cavaleiros, faziam rebrilhar os jaezes (ornato para as bestas) e as armas. Estrondavam os instrumentos, refulgia o aceiro. Que lindo!

— Senhor, tornou o áulico alarmado, enquanto vos extasiais no lustro da vossa gente o inimigo vareja os muros da cidade. Já se ouve o vozeio confuso, as tubas roucas ressoam, tinem armas nas ruas. Em pouco estarão convosco. Fazei sair a vossa gente. Que, ao menos, se defenda a vossa residência e o trono.

Não deu resposta o príncipe. Expor à morte aquele brilhante exército... E deixou-se estar contemplando o garbo luzimento dos infantes e dos cavaleiros.

Um tumulto assustou-o: era tarde. Quando se lembrou de bradar aos seus guerreiros, mãos brutas arrastaram-no e, manietado, cativo, lá foi o príncipe de Laos. “

Calou-se a donzela.

Soergueu-se o enfermo e, fitando os olhos na filha, que baixara a cabeça loura e retomara a meada e o fuso, bradou:

— Por Deus! E os guerreiros ?

— Os guerreiros...?

— Sim. Porque não saíram em defesa do seu soberano ?

— Porque ele não os tinha para batalhas, mas para simples encanto dos olhos.

— Essa agora! Guerreiros querem-se na luta, não são atores para divertimento de cortes. De que lhe serviu exército tão numeroso e tão rico se acabou em tamanha miséria nas mãos dos brutos?

— Lastimai-o, senhor: tinha mais amor às armas resplandecentes do que à pátria e à própria vida. Não tendes vós ali na arca moedas sem conta, barras de ouro e de prata, pedrarias e baixelas ? Não nutris nas vastas campinas tantos ginetes aderençados? Não dispondes de cavaleiros fiéis ao vosso comando? Entanto, a Morte ronda o castelo e, em breve, estará convosco, porque vos negais a ceder ao pedido do físico. Moedas amealhadas são economias que devem sair ao reclamo da necessidade. A formiga, no inverno, alimenta-se com o que recolheu no estio. Vale mais que um reino a vossa vida e, se sucumbirdes, ainda que vos forrem de ouro o túmulo e o incrustem de gemas, não deixareis de apodrecer como o animal que morre na charneca. Quem fica debruçado a contemplar tesouros esquece todos os deveres. A avareza é um crime. Se o príncipe houvesse atendido à voz do aio ainda seria rei e não estaria a gemer no fundo de uma masmorra, carregado de ferros.

– Que venha o físico! - bradou o príncipe. – Manda-lhe a condução e os cavaleiros e que lhe digam que, além das moedas do ajuste, terá ainda um vaso de ouro no dia em que eu puder vestir a couraça e brandir a faixa de armas. Exércitos querem-se em campo.

— E moedas em giro, quando é preciso. - disse a donzela. E, levantando-se para transmitir as ordens de seu pai, suspirou: Tivesse o príncipe ouvido as palavras do aio e ainda hoje seria rei do lindo país de Laos.

— E onde fica esse país? – indagou o velho interessado.

— Onde fica? Só os poetas o sabem, meu senhor, os poetas que tudo conhecem, porque a imaginação os leva a toda a parte. Hei de perguntar a um menestrel.

Disse e, sorrindo, saiu a transmitir as ordens necessárias para que fossem buscar o físico à montanha.

Fonte:
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.
Atualização do português por J.Feldman

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