sábado, 15 de fevereiro de 2014

Acruche Collection - Trova 22


José Roberto Balestra (Autofágico)

(miniconto em três capítulos)

Capítulo I:

Era de câncer.

Capítulo II

Comeu caranguejo.

Capítulo III - Final

Morreu.
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José Roberto Balestra é jornalista, de Maringá/PR

Fontes:
Imagem by www.antares.com.br
http://zerobertoballestra.blogspot.com.br/2011/01/tragediautofagica.html

2º Prêmio de Trovas Humorista Chico Anísio/2013 – UBT-Maranguape (Resultado Final) 3a. Parte, final

ÂMBITO: ESTADUAL

TEMA: Personagens de Chico Anysio

(Trovas Humorísticas)

TROVAS VENCEDORAS

VENCEDORES

1º. Lugar:


Pra contar uma potoca
Pantaleão não se aperta
Sem milho já fez pipoca
Quem quiser pergunte a Terta.
HORTÊNCIO PESSOA
Fortaleza/CE

2º. Lugar:


Nazareno bem parece
Mas, de besta nada tem.
Sua mulher, sempre esquece,
Pra paquerar, a de alguém.
ABELARDO NOGUEIRA XAVIER
Aracoiaba/CE

3º. Lugar:


Cuidado, Brasil querido,
Pra não cair na besteira
De ser, de novo, iludido
Por Eike "Canavieira"!
NEMÉSIO PRATA CRISÓSTOMO
Fortaleza/CE

MENÇÕES HONROSAS

4º. Lugar:


Por não gostar da pobreza
Justo Veríssimo diz:
sem o voto da pobreza
fui eleito e sou feliz...
GUTEMBERG LIBERATO DE ANDRADE
Fortaleza/CE

5º. Lugar:


O Coronel Limoeiro
Leva chifre com certeza
Sempre diz ao mundo inteiro
Cadê Maria Tereza?
MARIA RUTH BASTOS A BRANDÃO
Maranguape/CE

 

6º. Lugar:

Azambuja, um trambiqueiro,
Conhecido por machão,
Ao lograr um motoqueiro
Sua fama foi ao chão.
ANA MARIA NASCIMENTO
Aracoiaba/CE

MENÇÕES ESPECIAIS

7º. Lugar:


Justo Veríssimo é,
O retrato verdadeiro
Do sujeito de má fé,
Chamado politiqueiro.
ABELARDO NOGUEIRA XAVIER
Aracoiaba/CE

8º. Lugar:

 

O primo rico se orgulha
Pela fartura que tem
E o primo pobre mergulha
Na classe do Zé-Ninguém.
RAIMUNDO RODRIGUES DE ARAÚJO
Maranguape/CE

9º. Lugar:

 

Painho pediu penico
Quase que descadeirou
Porque na casa do Chico
Privada não encontrou.
HORTÊNCIO PESSOA
Fortaleza/CE

DESTAQUES

10º. Lugar:


Justo Veríssimo, diz:
que não gosta de pobreza,
quando vê um infeliz
dobra esquina, com certeza...
GUTEMBERG LIBERATO DE ANDRADE
Fortaleza/CE

11º. Lugar:


Hoje clamo ao Deus Altíssimo
Pra livrar nossa Nação
Da praga "Justo Veríssimo",
Causa do mal "Mensalão"!
NEMÉSIO PRATA CRISÓSTOMO
Fortaleza/CE

12º. Lugar:


O primo pobre procura
O primo rico-abonado
Conta a sua desventura
Sai sempre desconfiado.
RAIMUNDO RODRIGUES DE ARAÚJO
Maranguape/CE

ÂMBITO: INTERNACIONAL EM LINGUA HISPANICA

TROVAS CLASIFICADAS

TEMA: SONRISA (S) [L/F]

VENCEDORES

 

1º. Lugar:

Si quieres la puerta abierta
ten presente esta premisa:
todo éxito se concierta
siempre con una sonrisa.
MARÍA ELENA ESPINOSA MATA
San Nicolás De Los Garza/Nuevo León/  México

2º. Lugar:

 

Tu sonrisa me fascina
invitándome a soñar.
Eres imagen divina
que me cautiva mirar.
MARÍA CRISTINA FERVIER
Salto Grande/ Provincia Santa Fe/ARGENTINA

3º. Lugar:


En el niño la sonrisa
es un reflejo del cielo,
es como la suave brisa...
es ver a DIOS, sin un velo.
MAGUI DEL MAR (MARGARITA RUIZ)
Tijuana/Baja California/México.

Menciones Honrosas

4º. Lugar:


Si quiere tener salud
y gozar de larga vida
la sonrisa es la actitud
que sana cualquier herida.
HÉCTOR JOSÉ CORREDOR CUERVO
Bogotá DC./Colombia

5º. Lugar:


Pienso en Dios y su sonrisa
ilumina la mañana,
y en mi mente se improvisa
un salmo que lo engalana.
GISELA CUETO LACOMBA (CUBA)
Union City/New Jersey/USA.

6º. Lugar:


Como amor de amanecer
Siento tu beso de brisa,
y enciendes todo mi ser
con el sol de tu SONRISA.
TERESA DE JESÚS RODRÍGUEZ LARA
San Cristóbal de La Laguna/ Islas Canarias/España

Menciones Especiales

7º. Lugar:


Hay sonrisas seductoras
que nos llenan de pasión,
tan pícaras, tentadoras,
que al beso es invitación.
CATALINA MARGARITA MANGIONE (MARGA MANGIONE)
Berazategui/ Buenos Aires/Argentina

8º. Lugar:


Soy amiga de las risas
y me gusta ser así.
Si repartes mil sonrisas
ellas volverán a ti.
FABIANA PICEDA
Florencia (Santa Fe) /Argentina

9º. Lugar:

 

Tu sonrisa prende luces
en tus ojos por hermosos,
estrellitas que conduces
si me miran silenciosos.
STELLA MARIS TABORO
San Jorge/ Provincia Santa Fé/Argentina

Destacas

10º. Lugar:

 En el rostro una sonrisa
demuestra dulzura y paz;
si en tu cara se entroniza,
donde vayas la hallarás.
HILDEBRANDO RODRÍGUEZ
Mérida/ Mérida/Venezuela

11º. Lugar:


La sonrisa fue el oficio
que sublimaste con arte,
Dios te guarde Chico Anisio
en una estrellita aparte.
ALMENDRA VICTORIA AGUIRRE
San Fernando/Buenos Aires/Argentina

12º. Lugar:


El valor de la sonrisa
solo es dable comparar
con el soplo de la brisa,
con la eternidad del mar.
MARÍA ROSA RZEPKA
Fcio Varela/ Provincia de Buenos Aires/Argentina

Irmãos Grimm (O Ganso de Ouro)

Era uma vez um homem que tinha três filhos. O mais moço era chamado de Dummling[1] — mais conhecido como João Bocó, pois todos achavam que ele era mais do que a metade de um tolo, — e ele era o tempo todo zombado e mal tratado por todos da casa.

Aconteceu que o filho mais velho cismou de ir à floresta para buscar lenha, e a sua mãe lhe deu um bolo delicioso e uma garrafa de vinho para ele levar, para que ele pudesse se refrescar e se alimentar durante o trabalho.

Quando ele entrou na floresta, um pequeno velhinho cinzento lhe disse bom dia, e falou:

— Será que você poderia me dar um pedaço de bolo que você tem no prato, e um pouco de vinho da sua garrafa, porque estou com muita fome e sede. Porém, este jovem e esperto rapaz respondeu:

— Dar a você o bolo e o vinho que trago comigo? Não, obrigado, eu não tenho o suficiente para mim mesmo. E foi embora.

Logo ele começou a derrubar uma árvore, mas não tinha dado senão algumas machadadas quando ele errou o golpe, e se cortou, e foi obrigado a ir para casa para cuidar do ferimento.

Ora, tinha sido o pequeno velhinho que fizera ele cometer este acidente.

Em seguida, o segundo filho saiu para trabalhar, e sua mãe lhe deu também um pedaço de bolo e uma garrafa de vinho. E o mesmo velhinho encontrou-se com ele também, e lhe pediu algo para comer e para beber.

Mas ele também se achava muito esperto e falou:

— Quanto mais você comer, menos sobra para mim: então vá embora! O pequeno velhinho pensou que ele também teria a sua recompensa, e no segundo golpe que ele deu contra a árvore, ele errou o alvo e acertou bem na perna, então ele foi obrigado a ir para casa.

Então João Bocó disse:

— Pai, eu gostaria de ir para cortar lenha também. Mas o seu pai respondeu:

— Os seus dois irmãos machucaram as pernas, seria melhor que você ficasse em casa, pois você não sabe nada sobre esse negócios de cortar lenha.

Mas João Bocó era muito teimoso, e finalmente seu pai concordou:

— Vai então! Você ficará mais esperto quando você sofrer por causa da sua tolice. E a sua mãe deu a ele somente um pouco de pão seco e uma garrafa de cerveja choca. Mas quando ele entrou na floresta, ele encontrou o pequeno velhinho que lhe disse:

— Me dê um pouco de comida e de bebida, pois estou com muita fome e sede.

João Bocó disse:

— Eu tenho apenas pão seco e cerveja choca; se isso for bom para você, poderemos sentar para comer tudo que temos, juntos.

Então eles se sentaram e quando o rapaz pegou o pão para comerem, eis que ele se transformou num bolo delicioso: e a cerveja que estava choca, ao saboreá-la, havia se transformado em vinho finíssimo. Eles comeram e beberam com satisfação, e quando haviam acabado, o pequeno homem disse:

— Como você tem um bom coração, e teve a alegria de dividir tudo comigo, eu lhe darei uma bênção. Alí está uma árvore velha, corte-a e você encontrará algo embaixo de suas raízes. Então, ele pediu licença e continuou o seu caminho.

João Bocó pôs-se a trabalhar, e derrubou a árvore; e quando ela caiu, ele encontrou, em buraco debaixo das raízes, um ganso com penas de puro ouro. Ele pegou o ganso, e foi em direção a uma pequena estalagem à beira do caminho, onde ele pensou dormir durante a noite antes de retornar para casa.

E aconteceu que o estalajadeiro tinha três filhas, e quando elas viram o ganso, elas ficaram muito curiosas para saber, como era maravilhosa aquela ave, e queriam muito retirar uma das penas do rabo do ganso. Por fim, disse a mais velha:

— Eu quero e vou conseguir uma pena. Então ela esperou até quando João Bobo foi dormir, e então segurou o ganso pela asa, mas para sua grande surpresa ela ficou grudada, pois nem sua mão, nem seus dedos conseguiam se soltar.
   
Depois veio a segunda irmã, e pensou em pegar uma pena também, mas no momento que ela tocou a sua irmã, ela também ficou grudada.

Finalmente veio a terceira irmã, e ela também queria uma pena, mas as duas outras gritaram:

— Se afaste, pelo amor de Deus, se afaste!

Todavia, ela não entendeu o que elas queriam dizer.

— Se elas estão lá, pensou ela, eu também posso ir lá. Então ela foi até elas, mas no momento que ela tocou as suas irmãs ela ficou grudada, e presa ao ganso, como elas tinham ficado. E então elas fizeram companhia para o ganso a noite toda no relento.

Na manhã seguinte João Bocó levantou-se e colocou o ganso debaixo de seus braços. Ele não percebeu de modo nenhum as três garotas, mas saiu com elas penduradas bem atrás dele. Então, toda vez que ele corria, elas eram forçadas a segui-lo, quer elas quisessem ou não, tão rápido quanto suas pernas pudessem correr.

No meio de um campo um pastor os encontrou, e quando ele viu o cortejo, ele disse:

— Vocês não se envergonham de si mesmas, suas garotas atrevidas, correr atrás de um jovem rapaz dessa maneira pelos campos? Esse é um comportamento digno?

Então ele pegou a mais jovem delas pela mão para levá-la embora, mas, assim que a tocou ele ficou preso imediatamente, e seguia o cortejo, embora totalmente contra a sua vontade, pois não estava ele em boa forma para correr tão depressa, e exatamente, naquele momento ele sentiu uma pequena agulhada no dedão do seu pé direito.

Foram andando e encontraram um sacristão, e quando ele viu o seu amo, o pastor, correndo atrás de três garotas, ele ficou espantado e disse:

— Calma aí, senhor reverendíssimo, para onde vais com tanta pressa? Tem um batizado hoje?

Ele ele correu e tocou na sua roupa, e eis que ele ficou grudado também.

Enquanto os cinco estavam assim marchando rapidamente, um atrás do outro, eles encontraram dois camponeses que vinham do trabalho com suas enxadas, e o pastor gritou com toda sua força para que eles o ajudassem. Porém, mal eles tocaram as mãos no pastor, quando também ficaram na fila, e daí eles já eram sete, todos correndo juntos atrás de João Bocó e do seu ganso.
   
Ora, João Bocó pensou que ele gostaria de fazer um pequeno passeio antes de ir para casa, então ele e os seus acompanhantes o seguiram, até que finalmente chegaram numa cidade onde havia um rei que tinha somente uma filha.

A princesa era pessoa tão séria e mal humorada que ninguém conseguia fazê-la rir, e o rei havia mandado falar para todo o mundo, que aquele que conseguisse fazê-la rir a teria por esposa.

Quando o jovem rapaz soube disso, ele foi até ela, com o seu ganso e todos os seus acompanhantes, e assim que ela viu os sete presos uns nos outros, e correndo juntos, e pisando um no calcanhar dos outros, ela não conseguiu segurar uma longa e barulhenta gargalhada.

Então João Bocó reivindicou a sua esposa, e se casou com ela, e ele se tornou herdeiro do reino, e viveu durante muito tempo e feliz com a sua esposa.

Mas o que aconteceu com o ganso e o rabo do ganso, isso eu nunca fiquei sabendo.
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Nota
[1] Em algumas versões desta história, o filho mais novo se chamava Simpleton


Fontes:
Contos de Grimm
ilustração de L. Leslie Brooke, (1905)

Cecília Meireles (Chuva com Lembranças)


Começam a cair uns pingos de chuva. Tão leves e raros que nem as borboletas ainda perceberam, e continuam a pousar, às tontas, de jasmim em jasmim. As pedras estão muito quentes, e cada gota que cai logo se evapora. Os meninos olham para o céu cinzento, estendem a mão — e vão tratar de outra coisa. (Como desejariam pular em poças d'água! — Mas a chuva não vem...)

Nas terras secas, tanta gente, a esta hora, estará procurando também no céu um sinal de chuva! E, nas terras inundadas, quanta gente a suspirar por um raio de sol!

Penso em chuvas de outrora: chuvas matinais, que molham cabelos soltos, que despencam as flores das cercas, entram pelos cadernos escolares e vão apagar a caprichosa caligrafia dos exercícios.

Chuvas de viagens: tempestades na Mantiqueira, quando nem os ponteiros dos para-brisas dão vencimento à água; quando apenas se avista, recortada na noite, a paisagem súbita e fosfórea mostrada pelos relâmpagos. Catadupas despenhando sobre Veneza, misturando o céu e os canais numa água única, e transformando o Palácio dos Doges num imenso barco mágico, onde se movem, pelos tetos e paredes, os deuses do paganismo e os santos cristãos. Chuva da Galiléia, salpicando as ruas pobres de Nazaré, regando os campos virentes, toldando o lago de Tiberíades coberto ainda pelo eterno olhar dos Apóstolos. Chuva pontual sôbre os belos campos semeados da França, e na fluida paisagem belga, por onde imensos cavalos sacodem, com displicente orgulho, a dourada crina...

Chuvas antigas, nesta cidade nossa, de perpétuas enchentes: a de 1811, que, com o desabamento de uma parte do morro do Castelo, soterrou várias pessoas, arrastou pontes, destruiu caminhos e causou tal pânico que durante sete dias as igrejas e capelas estiveram abertas, acesas, com os sacerdotes e o povo a implorarem a misericórdia divina. Uma, de 1864, que Vieira Fazenda descreve minuciosamente, com árvores arrancadas, janelas partidas, telhados pelos ares, desastres no mar e “vinte mil Lampiões da iluminação pública completamente inutilizados”.

Chuvas modernas, sem trovoada, sem igrejas em prece, mas com as ruas igualmente transformadas em rios, os barracos a escorregarem pelos morros, barreiras, pedras, telheiros a soterrarem pobre gente. Chuvas que interrompem estradas, estragam lavouras, deixam na miséria aqueles justamente que desejariam a boa rega do céu para a fecundidade de seus campos.

Por enquanto, caem apenas algumas gotas daqui e dali. Nem as borboletas ainda percebem. Os meninos esperam em vão pelas poças d'água onde pulariam contentes. Tudo é apenas calor e céu cinzento, um céu de pedra onde os sábios e avisados tantas coisas liam outrora:

"São Jerônimo, Santa Bárbara Virgem,
lá no céu está escrito, entre a cruz e a água benta:
Livrai-nos, Senhor, desta tormenta!”

Fonte:
Quadrante 2. RJ: Editora do Autor, 1963.

A Saudade em Versos Diversos III


ARNALDO JABOR
Volta


Existe gente que precisa
Da ausência para querer a presença
O ser humano não é absoluto
Ele titubeia, tem dúvidas e medos
Mas se a pessoa realmente gostar, ela volta
Nada de drama.

FLORBELA ESPANCA
Saudades


Saudades!
Sim... Talvez...
E porque não?
Se o nosso sonho foi tão alto e forte.
Que bem pensara vê-lo até à morte.
Deslumbrar-me de luz o coração!
Esquecer! Para quê?
Ah! Como é vão!
Que tudo isso, amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte.
Deve-nos ser sagrado como o pão!
Quantas vezes, amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar
Mais doidamente me lembrar de ti!
E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais a saudade andasse presa a mim!

ÁLVARO DE CAMPOS
Mesma saudade


Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo
Espécie de acessório ou sobressalente próprio
Arredores irregulares da minha emoção sincera
Sou eu aqui em mim, sou eu
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim...

CLARICE LISPECTOR
Sentimento urgente


Saudade é um pouco como fome
Só passa quando se come a presença
Mas, às vezes, a saudade é tão profunda
que a presença é pouco
Quer-se absorver a outra pessoa toda
Essa vontade de um ser o outro
para uma unificação inteira
É um dos sentimentos mais urgentes
que se tem na vida.

MACHADO DE ASSIS
Dever de amor


Guarda estes versos que escrevi chorando
Como um alívio a minha saudade
Como um dever do meu amor
E quando houver em ti um eco de saudade
Beija estes versos que escrevi chorando.

VITAL FARIAS
Ai Que Saudade d´Ocê

 

Não se admire se um dia
Um beija flor invadir
A porta da sua casa
Te der um beijo e partir
Fui eu que mandei o beijo
Que é pra matar meu desejo
Faz tempo que eu não te vejo
Ai que saudade d´ocê

Se um dia ocê se lembrar
Escreva uma carta pra mim
Bote logo no correio
Com frases dizendo assim
Faz tempo que eu não te vejo
Quero matar meu desejo
Lhe mando um monte de beijos
Ai que saudade sem fim

E se quiser recordar
Aquele nosso namoro
Quando eu ia viajar
Ocê caia no choro
Eu chorando pela estrada
Mas o que eu posso fazer
Trabalhar é minha sina
Eu gosto mesmo é d´ocê.

Não se admire se um dia
Um beija flor invadir
A porta da sua casa
Te der um beijo e partir
Fui eu que mandei o beijo
Que é pra matar meu desejo
Faz tempo que eu não te vejo...
Ai que saudade d´ocê .

Ray Silveira (Lúcidos delírios)

   
    Ultimamente andava dormindo demais. Não me preocupava. O sono ambulante deixa de ser metáfora da morte para se tornar hipérbole de vida. Nesta noite, porém, uma chuva me despertou em plena caminhada. Abrolhos. Tento fugir me abrigando sob uma marquise. Os fios de água me perseguem. Enviaram uma ventania para me encontrar. Sem alternativas, deixo-me molhar e me ponho a refletir a luz da verdade. Enquanto isso, a chuva chapinhava chorosa girandolando, a seguir, sobre a chapa cheia d’água de um ralo de esgoto. Não tenho futuro, nem presente, nem particípio passado. Vivo no próprio passado. Não naquele que suscita ressuscitações de acontecências agradáveis nos normais e nos poetas. Nem sou obcecado por pretéritas peripécias ou por maus influxos da infância, como sucede com os doentes d’alma. Minha agoridade é cada instante sofrido no ontem acontecendo, de fato, de novo. Continuamente. Não me queixo, não busco consolo, nem sinto autopiedade. De fato, existem pessoas vivendo o seu presente e sofrendo tanto quanto eu. Hoje não é hoje, e sim um dia tal de um mês qualquer de um ano que já houve. Contudo, tudo se passa agora, outra vez. Alguns desses pós-aconteceres são frutos privativos meus e não há como aposentá-los por invalidez. Pois apesar de serem mais velhos do que eu, jamais foram adversados.
   
   O desastre é outro: não consigo me concentrar em apenas um deles. Fogem de mim, assim como fugi da chuva. A sensação de quem vai morrer daqui a pouco não é tão diferente da de quem vai morrer daqui a muito. Todos acreditam num fim remoto (com ou sem controle), e esperam suceder algo de bom antes da morte. Curiosa esperança! Parece que a consciência - aquele atributo que dizem servir para distinguir um homem de um animal - não passa de um instinto em plena seleção natural, no estrito sentido darwiniano da expressão. Não há melhor explicação para a tolerância dos humanos à expectativa do aniquilamento total. Se assim for, não fica difícil prenunciar a extinção da espécie humana, através de suicídios em massa, enquanto a consciência avançar para a sua completude evolutiva.

       Comparo o tempo que me resta de vida com a vida restante na Terra, e me pergunto se ela, como um todo, não seria apenas isso mesmo: mera sobra de infinito; sobejo cósmico; rejeito do universo. Não. Não é desespero, nem pânico o que me leva a pensar assim. E é muito fácil demonstrar. Primeiro, se estivesse em pânico ou desesperado, seria mais lógico me apegar ao instinto de conservação e valorizar a sobrevivência. Em segundo lugar, estou suficientemente lúcido para deduzir: um medo súbito causador de uma reação descontrolada ou de uma desesperação, não permitiria a ninguém reflexões dessa natureza.

       Impossível me concentrar... Surge outra questão. Agora sofro por não ser capaz de identificar a velocidade dos pensamentos. Sinto uma forte impressão de passar demasiado rápido por acontecimentos constrangedores do meu passado-presente. Um ato de semostração que pratiquei está agora mesmo reacontecendo. Será orgulho ou vaidade? Seria desimportante distinguir? A moral condena mais o orgulho. Mas para mim ele é quase nada diante da vaidade. Sempre cuidei ser o orgulho convicção não ostensiva do próprio mérito. A vaidade, uma ambição. Gananciosidade de reconhecimento. Portanto, sou vaidoso, não orgulhoso. Então, mais fatuidade, mais nescidade e mais bestagem compõem o meu caráter. Ansiedade. Estou sendo maniqueísta. Não existe a vaidade, nem o orgulho exclusivos. Embora um deles predomine. Mas qual será o que predomina em mim? Só o existir da semostração mostra ser a vaidade.

       A chuva passou. O meu passado-presente, não. Agora ando acordado, mas sem destino. Observo tudo. Nada interessa. Os gritos dentro da noite. O calor do dia escondido no azeviche do asfalto, que nem a chuva logrou desarquivar. A suntuosidade de “estranhas catedrais” desafiando a miséria das favelas.

       Minhas ideias e eu fugimos cada vez mais. Eu, do meu passado que insiste em ser presente. Elas, de suas primas tristes: as lembranças. Minhas ideias escapam. Eu não. Quanto mais fujo, menos me liberto. Complexo de culpa não é o estado aparentemente louvável de quem se sente responsável por um desastre. Trata-se de puro egoísmo. Por isso, nem a própria morte redime. Se, involuntariamente, cometesse um crime, me sentiria culpado. Não por estar arrependido ou sofrendo remordimentos. Mas por causa da censura alheia. Do veredicto da opinião pública. Da sensação narcisista da rejeição e do desaplauso social. Logo, morrer, seria escapar de um martírio. Renunciar à redenção pela crucificação. Nestas circunstâncias, morrer é um crime perfeito.

       Encontro-me diante de um terrível acontecimento passado acontecendo novamente. Cato a causa cardinal daquele acaso. Tenho como a mais provável, a saudade de não ter tido pais. Fruto de uma geração espontânea, comecei a ser sem ter sido. Não me pariram: nasci-me. Sou filho adotivo de um ninguém. Um descendente em linha reta do absurdo. No máximo, um enteado de Deus. De gota em gota, o tempo modulou a minha infância. E quando me entendi por gente, já era como fui na véspera de hoje. Bolinei uma lâmpada de Aladim que não havia, e um gênio mouco escutou meus três pedidos. A partir de então, sofro alternadamente a sucessão e a simultaneidade dos instantes.

       Um sanguinoso doutor operou a minha alma e, de propósito, deixou um camundongo dentro da cabeça. Mãos avaras de piedade complementaram o trabalho, arrepanhando o coração. E restaram somente dois olhos supurando lágrimas, uns farrapos de pele porejando mágoas e uma artéria aberta vertejando vida. Sinto sendas sinuosas - sem saber a sua destinação - se estreitando à minha frente. Palmilho-as acicatado só pelo instinto. E me extravio num labirinto de tremuras, de tonteiras, de náuseas e de desbrios, sem nenhum porventura para me mostrar a saída. Nuvens carregadas de esquivanças anoiteceram minha tarde ao meio-dia. Meus cartões de crédito de esperança há muito já estouraram seus limites. Tenho, enfim, a impressão de que estou morto e me esqueci de parar de respirar...

       Cansado de aconteceres que não consigo compreender, volto a ter sono. Ando enxergando demais ultimamente. Preciso parar de andar e me deitar para dormir.

Fonte:
http://cronopios.com.br/site/colunistas.asp?id_usuario=40

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Outros Contistas – Ray Silveira

               
Ray Silveira (Raymundo Silveira) nasceu em Fortaleza, 1947. Médico aposentado. Adepto da literatura na Internet. Vencedor de vários concursos literários. Seus contos estão espalhados em sites e blogs, assim como em antologias. Conquistou diversos prêmios literários.

                Alguns narradores de Ray Silveira são seres incomuns, em constante conflito interior, como se delirassem em suas ruminações. O de “Lembranças do inexistido”, na verdade, “jamais tivera mãe. Fruto de geração espontânea, começara a ser sem pré-existir. Enteado de Deus, nasci-me. Ninguém me pariu”. Busca explicações para sua vida e a morte de sua mãe, em narração de acontecimentos em tempos variados. Em “Sacrifício” o contista se vale de outro expediente: ao lado do narrador principal, o protagonista, dá voz a outro personagem. As falas de ambos se intercalam, em diálogos (“Falei com o diretor. Estão te esperando. Senhor... O quê? Desististe? Não! Pelo contrário: o mecanismo de lavagem interior não funcionou ontem.”) e em narrações (“Senti-me como quem entra são numa clínica de check-up, e sai com um diagnóstico de te prepara. Passou aquela noite transpirando poças de terror...”).

                Ray dá aos personagens uma liberdade quase que ilimitada, como se perdesse o controle sobre eles. Disso resultam considerações filosóficas, éticas, umas demasiadamente óbvias ou há muito repetidas ou desgastadas pelo uso: “A condição humana é um emaranhado de contradições”; “Só os bêbados conhecem este hiato diabólico entre a embriaguez e a sobriedade.”

                Talvez nem seja essa a razão pela qual Ray se abeire tanto da filosofia, dos conceitos, das definições, em detrimento da narração. Sua vontade quiçá nem seja a de contar histórias ou pintar personagens e paisagens. Certamente a ele interessam os temas essenciais do ser, motivo por que se vale tanto da alegoria. “Deplorável véu”, que lembra sonho, pelo ambiente opaco, nebuloso, sombrio, nos remete à busca da essencialidade humana: a alma, o ser. “Quem?” poderia ser crônica, não fosse a alegoria da feminilidade, afirmada no final da peça.

                Há também nas narrativas de Ray Silveira um constante jogo de palavras e sons: “dos hediondos cozinheiros que flambaram, tostaram, fritaram, refogaram, guisaram, torraram, assaram, cozinharam, sapecaram, esturricaram, carbonizaram o corpo e a alma da Joana do Arco e de milhares de outros inocentes”. Faz uso também da associação de ideias e nomes: “valsando às margens de vienenses Danúbios straussianos. Bailando o bailado das Alegorias da Primavera, ao som de sinfonias entremeadas de bemóis de suspiros e sustenidos de desejos, acompanhada de cavalheiros de longos cabedais e de cavaleiros de távolas redondas”. Vale-se ainda das sequências de substantivos e adjetivos: “sonatas mozartianas, tocatas e cantatas bachianas, cavalgatas wagnerianas e sambatas noelroseanas...”. Além disso, se dá bem com os neologismos.

                Percebe-se também a preocupação do escritor em se mostrar cosmopolita, como na ambientação das tramas em cidades europeias (sem explicação aparente). No conto “Via dolorosa”, o protagonista explica: “Soube apenas, em fragmentos, que fui removido do Hotel Ibis, no centro da cidade, para o setor de Urologia do Kaiser-Franz-Josef-Spital, na zona sul da capital austríaca.” Em “A última vez que viu Paris” toda ação se passa na capital de França. “... E os dois choraram” é de inspiração grega: “Viveu, no Asclepion de Trica, na Tessália”. Em Londres se ambienta “O duplo eu”. Mas nem só na Europa vivem os seres fictícios de Ray. Moram também em Fortaleza, como o narrador de “Alguém me viu?”: “Moro nas proximidades da rua Treze de Maio, entre Assunção e Floriano Peixoto”.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 41 – 20 de dezembro de 1887

Nos quoque gens sumus, digo
Sem nenhum acanhamento;
Se é moda, eu a moda sigo;
Se é vento, acompanho o vento.

Não somente ao literato
Cabe descobrir mistérios;
Eu sou curioso nato,
Tão sério como os mais sérios.

Et quoque cavalgare
Sabemus, como ia expondo;
Lá se acaso errar, errare
Humanum est
, respondo.

Eu, — não é porque me gabe,
Mas acho que o elogio
De um tio muito mais cabe
Na boca do próprio tio.

Esperar que outras pessoas
Descubram seus pensamentos
E cantem honrosas loas
Aos nossos merecimentos,

Palavra que me parece
Negócio muito arriscado;
Este cala, aquele esquece,
Nada fica publicado.

Vamos ao caso. Há dois dias
Recebi este bilhete
Do meu amigo Mathias,
Residente no Catete:

“Pois que já fomos colegas,
Manda-me a razão bastante
Por que se diz: “cá o degas”.
Não corri à minha estante,

Corri à pena e ao tinteiro,
Porque trazia comigo
O histórico verdadeiro
Do que me pede este amigo.

E aqui lhe conto, — deixando
Que riam maus e praguentos:
Ouço o riso e vou andando
Cá com os meus bolorentos.

Ora bem, ninguém ignora,
(Menos que ninguém, Mathias)
Que houve um grande Egas outrora,
Varão de alias bizarrias.

Afonso, meio enteado,
De um tal Peres, se encastela
Em Guimarães já cercado
Pelas forças de Castela;

Vai então Egas, pensando
Em livrar o rei, caminha
Para o castelhano infando
E segreda-lhe ao que vinha.

Vinha prometer que o moço
Afonso obedeceria,
Sem mais sangue nem destroço.
Castela creu no que ouvia

Mas logo que os castelhanos
Daquele sítio abalaram,
Afonso e os seus lusitanos
Entregar-se recusaram.

Que faz o grão Egas? Vendo
Que faltara ao prometido,
Faz sacrifício horrendo,
Ele, pai, ele, marido.

Vai com a família, e dá-se
Ao inimigo. Ação única!
Outra não há que a ultrapasse,
Ou esta fé, ou fé púnica.

Tempos vindos, tempos idos,
Entrou no povo esta fala,
Quando alguém os ofendidos
Brios punha em grande gala:

“Cá o Dom Egas não há de
Deixar de cumprir a jura”.
Depois a celeridade
Do tempo, que tudo apura,

Foi diminuindo o adágio,
Perdeu-se o jura primeiro
E foi crescendo o naufrágio
Do primeiro ao derradeiro.

Já no século passado
Ia em tais e tantas penas
Que ficou — do que era usado,
Cá o Dom Egas” — apenas.

Mas o Dom tanto se escreve
Na forma acima apontada,
Como por outra mais breve,
Um D, um ponto e mais nada.

Daí resultou que o povo,
Lendo, como lê, às cegas,
Faz um dito inda mais novo
E ficou só: — “Cá o degas”.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Teófilo Braga (A madrasta)

Recolhido no Porto

Uma mulher tinha uma filha muito feia e uma enteada bonita como o sol; com inveja tratava-a muito mal, e quando as duas pequenas iam com uma vaquinha para o monte, à filha dava-lhe um cestinho com ovos cozidos, biscoitos e figos, e à enteada dava-lhe côdeas de broa bolorentas, e não passava dia algum sem lhe dar muita pancada. Estavam uma vez no monte e passou uma velha que era fada, e chegou-se a elas e disse:

– Se as meninas me dessem um bocadinho da sua merenda? Estou a cair com fome.

A pequena que era bonita e enteada da mulher ruim deu-lhe logo da sua codinha de broa; a pequena feia, que tinha o cestinho ceio de coisas boas, começou a comer e não lhe quis dar nada.

A fada quis-lhe dar um castigo, e fez com que ela feia ficasse com a formosura da bonita; e que a bonita ficasse em seu lugar, com a cara feia.

Mas as duas pequenas não o souberam; veio a noite e foram para casa. A mulher ruim, que tratava muito mal a enteada que era bonita, veio-lhes sair ao caminho, porque já era muito tarde, e começou às pancadas com uma vergasta na própria filha, que estava agora com a cara da bonita cuidando que estava a bater na enteada.

Foram para casa, e deu de comer sopinhas de leite e coisas boas à que era feia, pensando que era a sua filha, e a outra mandou-a deitar para a palha de uma loja cheia de teias de aranha, e sem ceia.

Duraram as coisas assim muito tempo, até que um dia passou um príncipe e viu a menina da cara bonita à janela, muito triste e ficou logo a gostar muito dela, e disse-lhe que queria vir falar com ela de noite ao quintal.

A mulher ruim ouviu tudo, e disse à que estava agora feia e que cuidava que era a sua filha, que se preparasse e que fosse falar à noite com o príncipe, mas que não descobrisse a cara.

Ela foi, e a primeira coisa que disse ao príncipe foi que estava enganado, que ela era muito feia. O príncipe dizia-lhe que não, e a pequena descobriu então a cara, mas a fada deu-lhe naquele mesmo instante a sua formosura.

O príncipe ficou mais apaixonado e disse que queria casar com ela; a pequena foi-o dizer à que pensava que ela era a sua filha.

Fez-se o arranjo da boda, e chegou o dia em que vieram buscá-la para se ir casar; ela foi com a cara coberta com um véu, e a irmã, que estava agora bonita, ficou fechada na loja às escuras.

Assim que a menina deu a mão ao príncipe e ficaram casados, a fada deu-lhe a sua formosura, e foi então que a madrasta conheceu que aquela era a sua enteada e não a sua filha.

Corre à pressa a casa, vai à loja da palha ver a pequena que lá fechara, e dá com a sua própria filha, que desde a hora do casamento da irmã tornara a ficar com a cara feia.

Ficaram ambas desesperadas e não sei como não arrebentaram de inveja.

É bem certo o ditado: «Madrasta nem de pasta».

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Nelson Alexandre (Disfunção passageira de um sujeito que não sabe se quer matar ou morrer)

Essa gente tem a mania de misturar a vulgaridade da comida com a magia das emoções... São como porcos, que engolem tudo. Não podem parar nunca. Comem, ao mesmo tempo, a rosa e o esterco que rodeia a roseira...
Louis Ferdinand Céline.

Muitas coisas podem arrebentar com o coração de um homem.

Mas o que fazer a respeito de um homem que tem coração, mas não consegue amar. Que só tem a sensação de estar com os pés no vazio. Num estado onde todas as emoções estão vivas, interligadas, e ao mesmo tempo, elas não se mexem. Parecem todas robotizadas. Travando qualquer movimento que seja voluntário.

Nasci com um nome, mas não vou dizer qual é. Tenho vinte e dois anos e não estou próximo de ser algo relevante para a sociedade ou para qualquer pessoa. Estou próximo de uma grande avalanche de acontecimentos que podem marcar a minha vida.

Desde criança só conheci a rua como porta de entrada e saída para minhas investidas na vida. A vida, aliás, que desde sempre só havia me pregado peças e mais peças, e eu, caindo em todas as armadilhas como um verdadeiro imbecil.

Às vezes o coração tem culpa por sermos mesquinhos ou otários.

Eu tinha veneno nas veias. Sabia que tinha um talento fervilhando dentro de mim, sendo apurado, esperando a hora certa de vir ao mundo, amadurecido, pronto para colocar para fora do corpo, tudo o que eu vinha acumulando com as experiências boas e ruins. Eu queria derreter o paredão de gelo que está aprisionando o coração da humanidade. Eu queria lutar desesperadamente contra a ideia de que somos uma experiência que não deu certo. De que o irmão é capaz de levantar a mão com uma faca e tirar a vida do próximo. Eu queria negar isso, fazendo de mim uma cobaia para testar a compreensão e sabedoria das pessoas comuns.

Me estrepei.

Eu não tinha pretensão de me canonizar, de que as pessoas me vissem à altura de um Santo; eu tinha, justamente, a ideia contrária.

Eu tinha fé de que era exatamente quebrando a hierarquia celeste que chegaríamos lá.

Um delírio.

Foi num delírio que Deus falou comigo. Dizia que eu precisava ter paciência, que não é num só dia que se faz uma ponte que liga uma margem de estranhamento à outra de conhecimento. É necessário calcular, planejar, deixar que as coisas se encaixem na proporção em que vão acontecendo. Como num fluxo de pensamento onde a bondade faz desaparecer a água estagnada do lago gelado do coração humano.

Eu havia renunciado a muita coisa que me veio de mão beijada durante esse período, por me encontrar numa enorme cegueira. Eu tinha olhos, mas não via. Tinha vontade, mas me abatia. Em síntese, era como uma planta morta que implorava água, e quando era regada, renunciava ajuda, gritando para que todos fossem para o inferno.

Eu havia desesperadamente lutado para me tornar um escritor, mas já não via muito sentido nisso. Nessa mistura ainda apurando dentro das minhas veias.

Havia dias em que eu colocava a mão sobre o papel e ficava lá, por horas, sem que nada saísse da minha cabeça. Uma vogal que fosse. Uma partícula de mentira ou verdade para me resgatar do meu caos particular.

Para mim, tudo era negro e desesperado. Eu era um palhaço sem graça que fazia  as criancinhas chorarem ao invés de fazê-las sorrirem até que arrebentassem a pança cheia de vermes. Nada mais do que um palhaço dentro do seu próprio circo de horrores, maquiando um rosto triste, penteando a face com uma navalha.

Aprendi que o mundo, a vida, nos coloca numa roda-gigante que podemos escolher se queremos ficar embaixo.

                                 ou
                                 em cima.
                              
O segredo está em querer ser GRANDE ou pequeno.

Depois dessa escolha, o negócio é agarrar-se a essa ideia com dentes e unhas. Desejar e colocar em prática esse desejo que quer se libertar de correntes e cadeados.  É  preciso, ainda, extrair desse desejo todo o sumo que nele existe, cuspindo toda a sobra, todo o resíduo que insiste em querer retardar esse processo mágico.

Você fica na distinta problemática de querer matar ou morrer.

Essa é uma disfunção em que sinto liberdade, a verdadeira liberdade que tanto eu buscava com fúria, com amor, com determinação, e que para minha surpresa estava tão perto e eu não a enxergava, porque haviam arrancado os meus dois olhos com uma faca, e eu vagava como um sonâmbulo lunático pronto para cair dentro de uma sepultura sem inscrição na lápide, apenas a terra úmida e os vermes para me devorarem pedaço por pedaço.

É a época das primeiras descobertas.

De um louco cego lutando sozinho na “quebrada”.

Fonte:
Contos Maringaenses

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

2º Prêmio de Trovas Humorista Chico Anísio/2013 – UBT-Maranguape (Resultado Final) 2a. Parte


ÂMBITO:
NACIONAL/INTERNACIONAL

TEMA: PERSONAGENS DE CHICO ANYSIO
(Trova Lírica/filosófica)

TROVAS VENCEDORAS

VENCEDORES

1º. Lugar:


Bento Carneiro - a vingança
foi "malígrina", por certo:
- quanto vampiro enche a pança
com nosso sangue... e liberto!!!
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

2º. Lugar:


Esbanjando humor profundo
conquistaste o mundo inteiro
como "Professor Raimundo"
ou como "Bento Carneiro"!!!
ERCY MARIA MARQUES DE FARIA
Bauru/SP

3º. Lugar:


A extrema sabedoria
o povo aplaudia até...
-Que saudade da ironia
nas falas de Salomé!
EDMAR JAPIASSÚ MAIA
Nova Friburgo/RJ

MENÇÕES HONROSAS

4º. Lugar:


Percorrendo o meu calvário,
sinto um desgosto profundo:
" - Eu ganho o mesmo salário
do bom Professor Raimundo..."
ANTONIO COLAVITE FILHO
Santos/SP

5º. Lugar:


Chico Anísio - O Professor...
Da Escolinha do Raimundo -
Foi Por Deus - o grande ator...
mais feliz ... e mais profundo!!!
ANA MARIA GUERRIZE GOUVEIA
Santos/SP

6º. Lugar:


Deu-me o professor Raimundo
a mais difícil lição:
mostrar meu sorriso ao mundo,
olhando a televisão!
JOSAFÁ SOBREIRA
Rio de Janeiro/RJ

MENÇÕES ESPECIAIS

7º. Lugar:


Ensinando ao aprendiz,
nosso professor Raimundo,
no quadro negro e com giz
sonhava mudar o mundo.
DULCÍDIO DE BARROS MOREIRA SOBRINHO
Juiz de Fora/MG

8º. Lugar:


Sábio o Professor Raimundo
que disse: – o salário, ó!
De professor nesse mundo
nunca ninguém teve dó!
GERALDO TROMBIN
Americana/SP

9º. Lugar:


Quando assisto à "Escolinha"
do bom Professor Raimundo,
volto a ser professorinha
querendo salvar o mundo!
MYRTHES MAZZA MASIERO
São José dos Campos/SP

DESTAQUES

10º. Lugar:


Grande Professor Raimundo,
notável filho do agreste,
Deus te pague no outro mundo
cada lição que nos deste.
GERSON SILVESTRE ALENCAR GONÇALVES
Belo Horizonte/MG

11º. Lugar:

 

Ele só pensa em dinheiro,
que exibe no paletó;
Justo Veríssimo, inteiro,
é só casca, embaixo é pó.
NADIR NOGUEIRA GIOVANELLI
São José dos Campos/SP

12º. Lugar:


Sou Frei Justino de Assis,
o popular “Franciscano”,
hoje orgulhoso e feliz,
visto que o Papa é meu mano!
ANTÔNIO AUGUSTO DE ASSIS
Maringá/PR

ÂMBITO: ESTADUAL

2º PRÊMIO DE TROVAS CHICO ANYSIO – 2013

TEMA: PERSONAGENS DE CHICO ANYSIO
(Trova Lírica/filosófica)

TROVAS VENCEDORAS

VENCEDORES


1º. Lugar:

A mentira só tem graça
Na voz do Pantaleão;
Pois na verdade ela é traça
Que corrói o coração!
NEMÉSIO PRATA CRISÓSTOMO
Fortaleza/CE

2º. Lugar:


Nosso professor Raimundo
Tornou-se perpetuado,
Revelando para o mundo
O seu salário minguado.
ANA MARIA NASCIMENTO
Aracoiaba/CE

3º. Lugar:


Está sempre reclamando
das injustiças do mundo
do pouco que vem ganhando
nosso Professor Raimundo.
GUTEMBERG LIBERATO DE ANDRADE
Fortaleza/CE

MENÇÕES HONROSAS

4º. Lugar:


Eternizando a memória
Do nosso herói do sertão
Eis a contar sua história
O grande pantaleão.
ABELARDO NOGUEIRA XAVIER
Aracoiaba/CE

5º. Lugar:

 

Como professor Raimundo,
Chico Anísio fez menção;
Com humor sério e profundo
Criticou a educação.
ABELARDO NOGUEIRA XAVIER
Aracoiaba/CE

6º. Lugar:


Salomé de Passo Fundo
Vivia lá seu segredo
Com algo muito profundo
Com o guri Figueiredo.
AUREILSON DE ABREU
UBT-Maranguape/CE

MENÇÕES ESPECIAIS

7º. Lugar:

 

Nosso Professor Raimundo
naquela escola, coitado,
com salário moribundo,
sempre lamenta um bocado...
GUTEMBERG LIBERATO DE ANDRADE
Fortaleza/CE

8º. Lugar:


Mostrou a realidade
Com humor bom e profundo.
Demonstrou capacidade
Nosso Professor Raimundo
ARTEMIZA CORREIA
Ocara/CE

9º. Lugar:

 

Pantaleão mentiroso
Disso ninguém o liberta
E fica mais duvidoso
Se diz: “É mentira Terta”.
MARIA RUTH BASTOS A BRANDÃO
UBT-Maranguape/CE

DESTAQUES

10º. Lugar:


A Escola é coisa séria,
Disto sabe todo mundo,
Dela não se faz pilhéria;
Só o Professor Raimundo!
NEMÉSIO PRATA CRISÓSTOMO
Fortaleza/CE

11º. Lugar:

 

No futebol, já fui o tal
Mas adoro a malandragem
Azambuja, o genial
Só me falta é a coragem.
LUIZ CARLOS A BRANDÃO
UBT-Maranguape/CE

12º. Lugar:


O Coalhada diz que topa
Jogar pela seleção
Convocado para a copa
Joga em qualquer posição.
RAIMUNDO RODRIGUES DE ARAÚJO
UBT-Maranguape/CE
== = = = = = = = = =

NACIONAL/INTERNACIONAL

TEMA: PERSONAGENS DE CHICO ANYSIO
(Trova humorística)

TROVAS VENCEDORAS

VENCEDORES

1º. Lugar:


Foi uma "Zorra Total"
quando "Meinha" e "Coalhada"
numa confusão geral
disputavam a "pelada"!!!
ERCY MARIA MARQUES DE FARIA
Bauru/SP

2º. Lugar:

 

Sua mulher por dinheiro
se casou e, agora, é "dama"...
Mas Coronel Limoeiro
diz: "Essa bichinha me ama"!...
ROBERTO TCHEPELENTYKY
São Paulo / SP

3º. Lugar:


Azambuja, revoltado,
comenta a Convocação:
“Coalhada foi desprezado:
Não vai longe a Seleção”.
EDWEINE LOUREIRO DA SILVA
Saitama/Japão

MENÇÕES HONROSAS

4º. Lugar:


Haroldo tenta ser macho,
mas seu fetiche desfaz:
- Luana, vira capacho,
aos pés de um guapo rapaz.
FABIANO DE CRISTO MAGALHÃES WANDERLEY
Natal/RN

5º. Lugar:


Tropeçava no seu pé,
furava na cabeçada,
mas se julgava um Pelé
o nosso bravo Coalhada.
LICÍNIO ANTÔNIO DE ANDRADE
Juiz de Fora/MG

6º. Lugar:

 

Justo Veríssimo assume
nossa política toda:
quando fala, ele resume:
“Quero que o pobre se exploda”.
MILTON SOUZA
Porto Alegre/RS

MENÇÕES ESPECIAIS

7º. Lugar:


Se a pergunta é do fedelho,
Pantaleão não tem dó.
Quem pintou o Mar Vermelho?
Foi sua mãe, Pedro Bó!
GERSON SILVESTRE ALENCAR GONÇALVES
Belo Horizonte/MG

8º. Lugar:

 

Alberto Roberto amava
ser símbolo sexual!
Aos gritos, desmunhecava,
retorcendo e dando "tiau"!
MARIA CONCEIÇÃO DE PAULA (CONCEITITA)
São José dos Campos/SP

9º. Lugar:

 

O trabalho um tanto rude
“Alfacinha” leva a sério...
Vende Planos de Saúde
no portão do cemitério!
EDMAR JAPIASSÚ MAIA
Nova Friburgo/RJ

DESTAQUES

10º. Lugar:


Professor Raimundo tem
a paciência de Jó,
alunos burros também
e o salário dele, Óh!
DILMA RIBEIRO SUERO
Rio de Janeiro /RJ

11º. Lugar:


Parece o craque Coalhada
com o galã falastrão:
não aguenta uma pelada
mas diz que joga um bolão.
DULCÍDIO DE BARROS MOREIRA SOBRINHO
Juiz de Fora/MG

12º. Lugar:

 

À líder desta nação...
Uma dica, em um segundo:
Pra pasta da Educação...
Basta o professor Raimundo!
ANDRÉ LUÍS SOARES
Guarapari/ES

=================
continua…

Irmãos Grimm (Rei Bico-de-Tordo)

Um Rei tinha uma filha que era linda além de qualquer medida, mas que era tão orgulhosa e arrogante que nenhum pretendente era bom o suficiente para ela. Ela mandou embora um após o outro, assim como os ridicularizava.

Certa vez o Rei fez um grande banquete e convidou então, de longe e de perto, todos os jovens que pudessem casar. Eles estavam todos organizados em uma linha de acordo com seus níveis e reputação; primeiro vieram os reis, então os grão-duques, então os príncipes, condes, barões, e os gentios. Então a filha do rei passou pelas fileiras, mas para cada um ela tinha alguma objeção para fazer; um era muito gordo, "O barril de vinho", ela disse. Outro era muito alto, "longo e magro com pouco dentro." O terceiro era muito baixo, "pequeno e grosso nunca é rápido." O quarto era muito pálido, "Tão pálido quanto a morte." O quinto era muito ruivo, "Um galo de briga." O sexto não era direito o suficiente, "Um galho verde seco atrás do fogão."

Então ela tinha algo para dizer contra cada um, mas ela se fez especialmente agradável sobre o bom rei que estava quieto bem no final da fila, e cujo queixo cresceu um pouco curvo. "Bem," ela gritou e riu, "ele tem um queixo parecido com uma bico-de-tordo!" e a partir de então ele ganhou o apelido de Rei bico-de-tordo.

Mas o velho Rei, quando viu que sua filha não fazia nada além de zombar das pessoas, e desdenhava todos os pretendentes que havia reunido ali, ficou com muita raiva, e jurou que ela teria como seu marido o primeiro mendigo que viesse a sua porta.

Alguns dias depois um violinista veio e cantou abaixo da janela, tentando ganhar um pouco de esmola. Quando o Rei ouviu ele, disse, "Deixe-o entrar." Então o violinista veio, com sua sujeira, roupas rasgadas, e cantou diante do Rei e sua filha, e quando ele terminou pediu por um presente insignificante. 

O Rei então disse, "Sua música me agradou tanto que eu te darei minha filha aqui, como esposa."

A filha do Rei estremeceu, mas o Rei disse, "Eu fiz um juramento de te dar para o primeiro mendigo que aparecesse, e vou manter minha palavra." 

Tudo que ela dizia era em vão; o padre foi trazido, e ela teve que se deixar casar ao violinista na mesma hora. 

Quando estava terminado o Rei disse, "Agora não é apropriado para você, uma mendiga, permanecer mais no meu palácio, você pode ir agora com o seu marido."

O mendigo a levou para fora pela mão, e ela foi obrigada a andar a pé com ele. Quando eles chegaram a uma grande floresta ela perguntou, "A quem pertence esta bela floresta?" 

"Pertence ao Rei bico-de-tordo; se o tivesse tomado como marido, ela teria sido sua." 

"Ah, que garota infeliz que sou, se tivesse escolhido o Rei bico-de-tordo!"

Logo depois eles chegaram a uma campina, e ela perguntou de novo, "A quem pertence esta bela e verde campina?" 

"Pertence ao Rei bico-de-tordo; se o tivesse tomado como marido, ela teria sido sua." 

"Ah, que garota infeliz que sou, se tivesse escolhido o Rei bico-de-tordo!"

Então eles chegaram a uma grande cidade, e ela perguntou de novo, "A quem pertence esta bela grande cidade?" 

"Pertence ao Rei bico-de-tordo; se o tivesse tomado como marido, ela teria sido sua." 

"Ah, que garota infeliz que sou, se tivesse escolhido o Rei bico-de-tordo!"

"Não me agrada," disse o violinista, "ouvir você sempre desejar por outro marido; não sou bom o suficiente para você?" 

Por fim eles chegaram a uma pequena cabana, e ela disse, "Oh, meu deus! que casa pequena; a quem pertence esta barraca miserável de segunda categoria?" 

O violinista respondeu, "Esta é minha casa e sua, onde nós viveremos juntos."

Ela teve que se inclinar para poder passar pela porta. "Onde estão os criados?" disse a filha do Rei. 

"Que criados?" respondeu o mendigo; "você deve fazer por conta própria o que quiser que seja feito. Apenas acenda o fogo de uma vez, e coloque água para cozinhar minha sopa pois estou muito cansado." 

Mas a filha do Rei não sabia nada sobre acender o fogo ou cozinhar, e o mendigo teve que ajudá-la para conseguir qualquer coisa bem feita. Quando terminaram a escassa refeição eles foram para a cama; mas ele a forçou a acordar bem cedo de manhã para cuidar da casa.

Por alguns dias eles viveram deste jeito tão bem quanto podia, e veio então o fim de todas as suas provisões. Então o homem disse, "Mulher, não podemos seguir mais comendo e bebendo aqui sem ganhar nada. Teça algumas cestas." 

Ele saiu, cortou alguns salgueiros, e os trouxe para casa. Então ela começou a tecer, mas os salgueiros duros machucaram suas delicadas mãos.

"Vejo que isto não funcionará," disse o homem; "melhor você fiar, talvez consiga fazer melhor." 

Ela sentou e tentou fiar, mas o duro fio cortou seus dedos macios fazendo o sangue escorrer. 

"Veja," disse o homem, "você não serve para nenhum tipo de trabalho; Fiz uma barganha ruim por você. Agora vou tentar fazer algum negócio com os potes e cerâmicas; você deve se sentar no mercado e tentar vendê-las." 

"Ai de mim," ela pensou, "se qualquer pessoa do reino de meu pai vier ao mercado e me ver sentada lá, vendendo, como eles irão zombar de mim?" 

Mas não houve jeito, ela tinha que ir exceto se quisesse morrer de fome.

Pela primeira vez ela foi bem sucedida, pois as pessoas ficaram satisfeitas de comprar cerâmicas de uma mulher e ela era muito bonita, e pagavam o que ela pedia; muitos inclusive davam o dinheiro e deixavam os potes com ela também. 

Então eles viveram com o que ela ganhara enquanto durou, então o marido comprou um novo lote de cerâmica. Com estes ela sentou na esquina do mercado, e ajeitou a sua volta pronta para começar a vender. Mas de repente veio um ladrão de estradas bêbado galopando ao longe, e ele cavalgou entre os potes quebrando todos em mil pedaços. 

Ela começou a chorar, e não sabia o que fazer por medo. "Ai de mim! o que acontecerá comigo?" ela gritou; "o que meu marido dirá disso?"

Ela correu para casa e contou a ele sua falta de sorte. 

"Quem se sentaria na esquina do mercado com cerâmicas?" disse o homem; "para de chorar, vejo muito bem que você não pode fazer um trabalho comum, então fui ao palácio de nosso Rei e pedi se eles não teria um lugar para uma empregada na cozinha, e eles prometeram aceitar você; deste jeito irá conseguir comida de graça."

A filha do Rei era agora empregada na cozinha, e tinha que estar a disposição do cozinheiro, e fazer o trabalho mais sujo. Em seus bolsos ela prendeu um pequeno pote, no qual ela levava para casa sua parte dos restos, e com estes eles viviam.

Aconteceu que o casamento do filho mais velho do Rei iria ser celebrado, e a pobre mulher subiu e foi até a porta do salão para observar. Quando todos as velas foram acessas, e pessoas, cada uma mais bonita que a outra, entraram, e tudo estava cheio de glória e esplendor, ela pensou na sua sorte com o coração triste, e amaldiçoou o orgulho e arrogância que a humilhou e a trouxe para tamanha pobreza.

O cheiro delicioso dos pratos que estavam sendo trazidos pra dentro e fora alcançaram ela, e agora e então os empregados jogaram para ela alguns pedaços deles: estes ela guardou nos potes e levou para casa.

De repente o filho mais velho do Rei entrou, vestido em veludo e seda, com uma corrente de ouro em seu pescoço. E quando ele viu a bela mulher em pé perto da porta ele a segurou pela mão, e a teria levado para dançar; mas ela se recusou e recuou com medo, porque ela viu que era o Rei Bico-de-tordo, seu pretendente que ela havia repudiado com escárnio. 

Seu esforço foi em vão, e ele a levou para o salão; mas o barbante pelo qual seus bolsos estavam pendurados partiu, e os potes caíram, a sopa escorreu, e as migalhas se esparramaram. E quando as pessoas viram, houve uma risada e zombaria geral, e ela ficou tão envergonhada que preferia estar mil vezes num buraco abaixo do chão. 

Ela saltou em direção a porta e teria fugido, mas nas escadas um homem a segurou e trouxe de volta; e quando olhou para ele era o Rei Bico-de-tordo novamente. 

Ele disse a ela gentilmente, "Não tenha medo, sou o violinista com quem tem vivido naquela cabana miserável. Por amor a você me disfarcei assim; e também fui o ladrão de estradas bêbado que cavalgou entre a cerâmica. Tudo isto foi feito para seu espírito orgulhoso, e para puni-la pela insolência com o qual você zombou de mim."

Então ela chorou amargamente e disse, "Fiz muito errado, e não sou digna de ser sua esposa." 

Mas ele disse, "Console-se, os dias ruins estão no passado; agora nós vamos celebrar nosso casamento." 

Então as damas de companhia vieram e a colocaram numa roupa esplêndida, e seu pai e toda a sua corte vieram e desejaram sua felicidade pelo seu casamento com o Rei Bico-de-tordo, e a alegria começou a sério. 

Gostaria que eu e você estivéssemos lá também.

Fonte:
Contos de Grimm

A Saudade em Versos Diversos II


DÚ KARMONA
Saudade...


" ...     Quando penso que já foi...
Volta e rasga, sangra e dói!
Nem sei onde está, sei que ficou...
O que ficou... é mais que a dor...
Dor da falta, da perda...
Ficou um vácuo que me devora...
E tento sentir o que deixou
para estancar toda esta dor... "

FERNANDO PESSOA
Saudade

 
Eu amo tudo o que foi
Tudo o que já não é
A dor que já não me dói
A antiga e errônea fé
O ontem que a dor deixou
O que deixou alegria
Só porque foi e voou
E hoje é já outro dia.

MARTHA MEDEIROS
Vivendo e Aprendendo


Eu sou feito de Sonhos
interrompidos
Detalhes despercebidos
Amores mal resolvidos.

Sou feito de
Choros sem ter razão
Pessoas no coração
Atos por impulsão.

Sinto falta de
Lugares que não conheci
Experiências que não vivi
Momentos que já esqueci.

Eu sou
Amor e carinho constante
Distraída até o bastante
Não paro por um instante.


Tive noites mal dormidas
Perdi pessoas muito queridas
Cumpri coisas não prometidas.

Muitas vezes eu
Desisti sem mesmo tentar
Pensei em fugir para não enfrentar
Sorri para não chorar.

Eu sinto pelas
Coisas que não mudei
Amizades que não cultivei
Aqueles que eu julguei
Coisas que eu falei.

Tenho saudade
De pessoas que fui conhecendo
Lembranças que fui esquecendo
Amigos que acabei perdendo
Mas continuo vivendo e aprendendo.

ODYLA PAIVA
Saudade de você


Não há um dia que não lembre de você.
Saudade do seu abraço,
Saudade da sua voz,
Saudade de como você era para mim.

Não há um dia que não lembre de você.
Saudade de nossas conversas,
Saudade de seus recados ao telefone,
Saudade de saber você ao meu alcance.

Não há um dia que não lembre de você.
Saudade de fazer perguntas,
Saudade das suas respostas,
Saudade da sua atenção.

Não há um dia que não lembre de você.
Saudade de nossas saídas,
Saudade do “tudo bem”,
Saudade, saudade, saudade de você.

PABLO NERUDA
Fostes minha, fui teu


Já não se encantarão os meus olhos nos teus olhos
Já não se adoçará junto a ti a minha dor.

Mas para onde vá, levarei o teu olhar
E para onde caminhes levarás a minha dor.

Fui teu, foste minha. O que mais? Juntos fizemos
Uma curva na rota por onde o amor passou.

Fui teu, foste minha. Tu serás daquele que te ame
Daquele que corte na tua chácara o que semeei eu.

Vou-me embora. Estou triste: mas sempre estou triste
Venho dos teus braços. Não sei para onde vou.

Do teu coração me diz adeus uma criança
E eu lhe digo adeus.

VINICIUS DE MORAES
Sem despedidas suas


Tomara
Que você volte depressa
Que você não se despeça
Nunca mais do meu carinho
E chore, se arrependa
E pense muito
Que é melhor se sofrer junto
Que viver feliz sozinho

Tomara
Que a tristeza te convença
Que a saudade não compensa
E que a ausência não dá paz
E o verdadeiro amor de quem se ama
Tece a mesma antiga trama
Que não se desfaz

E a coisa mais divina
Que há no mundo
É viver cada segundo
Como nunca mais...

Teófilo Braga (O Sapatinho de Cetim)

Recolhido no Algarve

Era uma vez um homem viúvo e tinha uma filha; mandava-a à escola de uma mestra que a tratava muito bem e lhe dava sopinhas de mel. Quando a pequenita vinha para casa, pedia ao pai que casasse com a mestra, porque ela era muito sua amiga. O pai respondia:

– Pois queres que case com a tua mestra? Mas olha que ela hoje te dá sopinhas de mel, e algum dia te dará de fel.

Tanto teimou, que o pai casou com a mestra; ao fim de um ano teve ela uma menina, e tomou desde então grande birra contra a enteada, porque era mais bonita do que a filha. Quando o pai morreu é que os tormentos da madrasta passaram as marcas. A pobre da criança tinha uma vaquinha que era toda a sua estimação; quando ia para o monte, a madrasta dava-lhe uma bilha de água e um pão, ameaçando-a com pancadas se ela não trouxesse outra vez tudo como tinha levado. A vaquinha com os pauzinhos tirava o miolo do pão para a menina comer, e quando bebia água tornava a encher-lhe a bilha com a sua baba. Deste feitio enganavam a ruindade da madrasta.

Vai um dia adoeceu a ruim mulher, e quis que se matasse a vaquinha para lhe fazer caldos. A menina chorou, chorou antes de matar a sua querida vaquinha, e depois foi lavar as tripas ao ribeiro; vai senão quando, escapou-lhe uma tripinha da mão, e correu atrás dela para a apanhar. Tanto andou que foi dar a uma casa de fadas, que estava em grande desarranjo, e tinha lá uma cadelinha a ladrar, a ladrar.

A menina arranjou a casa muito bem, pôs a panela ao lume, e deu um pedaço de pão à cadelinha. Quando as fadas vieram, ela escondeu-se detrás da porta, e a cadelinha pôs-se a gritar:

– Ão, ão, ão,
Por detrás da porta
Está quem me deu pão.

As fadas deram com a menina, e fadaram-na para que fosse a cara mais linda do mundo, e que quando falasse deitasse pérolas pela boca, e também lhe deram uma varinha de condão.

A madrasta assim que viu a menina com tantas prendas, perguntou-lhe a causa daquilo tudo, para ver se também as arranjava para a filha. A menina contou o sucedido, mas trocando tudo; que tinha desarrumado a casa, quebrando a louça, e espancado a cadelinha. A madrasta mandou logo a filha, que fez tudo à risca como a mãe lhe dissera tintim por tintim. Quando as fadas voltaram, perguntaram à cadelinha o que tinha sucedido; ela respondeu:

– Ão, ão, ão,
Por detrás da porta está
Quem me deu com um bordão.
   
As fadas deram com a rapariga, e logo a fadaram que fosse a cara mais feia que houvesse no mundo; que quando falasse gaguejasse muito, e que fosse corcovada. A mãe ficou desesperada quando isto viu, e dali em diante tratou ainda mais mal a enteada.

Houve por aquele tempo uma grande festa dos anos do príncipe; no primeiro dia foi a madrasta ao arraial com a filha, e não quis levar consigo a enteada que ficou a fazer o jantar. 

A menina pediu à varinha de condão que lhe desse um vestido da cor do céu e todo recamado com estrelas de ouro, e foi para a festa; todos estavam pasmados e o príncipe não tirava os olhos dela. 

Quando acabou a festa, a madrasta veio já achá-la em casa a fazer o jantar, e não se cansava de gabar o vestido que vira. 

No segundo dia, foi a menina à festa, com o poder da varinha de condão, e com um vestido de campo verde semeado de flores. 

No terceiro dia, quando a menina viu que a madrasta já tinha ido para casa, partiu a toda a pressa, e caiu-lhe do pé um sapatinho de cetim. O príncipe assim que viu aquilo correu a apanhar o sapatinho, e ficou pasmado com a sua pequenez. Mandou deitar um pregão, que a mulher a quem pertencesse o sapatinho de cetim seria sua desposada. Correram todas as casas e a ninguém servia o sapatinho.

Foi por fim à casa da mulher ruim, que apresentou a filha ao príncipe, mas o pé era uma patola e não cabia no sapatinho de cetim; perguntou-lhe se não tinha mais alguém em casa. 

Quando a madrasta ia responder que não, abriu-se a porta da cozinha, e apareceu a enteada com o vestido do primeiro dia das festas e com um pezinho descalço, que serviu no sapatinho de cetim. O príncipe levou-a consigo, e à madrasta deu-lhe tal raiva, que se botou da janela abaixo e morreu arrebentada.

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 40 – 14 de dezembro de 1887

Por Júpiter! Cobre o rosto.
Risonha Hélade amiga,
Cobre-o de pejo e desgosto;
Chora a tua graça antiga.

Lembras-te daqueles tempos,
— Da galante mocidade,
Em que eram teus passatempos
Grave e fina agilidade?

Em que as tuas formas belas
Mostravam-se aos olhos puros,
Tempos quase sem mazelas,
Quase sem dias escuros?

Então floresciam jogos
De toda casta e destino,
E coros cheios de rogos
Ao céu e ao povo divino.

Já não falo dos famosos
Jogos de corridas — quando
Voavam carros briosos
Pelo solo venerando.

Falo (e serve ao que ora trato)
Falo daquelas usanças
Em que vinha o pugilato
Entre cantigas e danças.

Seguramente que havia
Pancada — porém pancada
De valor e bizarria
Por uma cousa sagrada.

Eram modos e maneiras
De lutar de língua e punho,
Traziam tantas canseiras,
Grécia, o teu amável cunho.

E agora, ai, chora pitanga!
Pitanga é fruta moderna,
Mas a qualquer mágoa ou zanga
Qualquer fruta é fruta eterna.

Contudo, se não te agrada,
Chora aquele mel do Himeto,
Que inda agora a abelha amada
Verte ao comum e ao seleto.

Chora o que for, chora, chora...
Vês este grego, chamado
Manuel Rottas, que aqui mora?
Foi há pouco encarcerado.

Que pensas tu que fazia
Este filho tão malandro,
Em cujas veias podia
Correr sangue de Lisandro?

Ouve... fecha os olhos... Cobre
O belo rosto, faceira;
Não há cautela que sobre...
Rotas era capoeira.

Sim, capoeira, repito.
E cometia na praça
Das Marinhas o delito
De dar aos colegas caça.

Chamavam-lhe por gracejo
O grego das ostras, nome
Que em si mesmo não dá pejo,
Antes creio que dá fome.

Grego e capoeira! Ó manes
Dos seus avós acabados!
Ó recordações inanes
De outros tempos e outros lados!

Bem conheço que, assim como
Cada roca tem seu fuso,
Cada macieira seu pomo,
Tem cada terra seu uso.

Nem é o uso que me espanta
Espanta-me esse contraste
Da terra e da sua planta,
Da habitação e do traste.

Bem sei que a Grécia recente
É outra da Grécia antiga,
Mas no coração da gente
És a mesma, Hélade amiga.

E por mais que a razão pura
Mostres que ora estás mudada,
Espanta-me esta figura:
Rasteira, grego e facada.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Natalício Barroso (Rastro de Fogo)

"O ato de escrever é uma espécie de lepra, uma enfermidade cancerosa e opaca que deve ser escondida das pessoas que transitam normalmente à luz do dia"
Kafka


As vinhas da ira bem que poderiam ter uma outra composição se tivesse ocorrido com John Steinbeck o mesmo que aconteceu comigo. Havia terminado de dar um ponto final no meu último romance quando, por descuido, toquei uma das teclas do computador que, no lugar de salvar, deletava depois de mandar as mensagens, via e-mail, para outros computadores – pois foi o que aconteceu. O endereço, felizmente, era de um sobrinho meu mas, como não o encontrei em casa, deixei para telefonar depois; quando telefonei, mais tarde, havia saído novamente. Assim, passei o dia inteiro procurando localizar meu sobrinho; quando dei com ele, à noite, disse-me que havia enviado aquele mesmo texto para uma outra pessoa (não sei qual); como possuía o endereço eletrônico desta pessoa, passou para mim. Não tinha o telefone dela, asseverou, mas não era difícil localizá-la pelo e-mail. Assim tentei.

A sensação que tive quando comecei a mandar e-mails pra um conhecido e outro em busca de Rastro de fogo (como se chamava meu romance) era a de que ele havia se perdido. Tinha entrado na boca de um monstro que, mesmo que atenda pelo nome de Internet, nem por isso é menos voraz do que um buraco negro no interior do qual – se alguém conseguisse vê-lo por dentro – havia de se deparar com coisas extraordinárias: textos antiquíssimos, da época de Assurbanipal, ou outros, mais recentes, mas, nem por isso, menos valiosos.

A noite, quando chegou, encontrou-me debruçado sobre o computador. A luz da vela, que havia posto no canto esquerdo da tela para iluminar meus rascunhos, tal como os monges faziam no tempo dos velhos castelos medievais, apenas bruxuleava enquanto eu escrevia.

Moro sozinho. Minha casa tal como um velho solar abandonado à beira de uma estrada, mais parece um casarão antigo – destes mal-assombrados – do que uma residência; no entanto, é aí mesmo que moro. A intenção, quando resolvi comprar um prédio antigo e mal assombrado num lugar ermo como este foi, justamente, a de não ser importunado por ninguém. Mas sou. As pessoas passam defronte da mansão onde moro e, como a acham muito estranha, resolvem parar o carro para vê-la por dentro. Fosse eu um assassino – ou algo parecido – já teria morto várias delas mas, como não sou, deixo-as pensar que a velha herdade de dois andares com um brasão na fachada está vazia realmente. Assim, seguem adiante. Eu fico por trás das cortinas olhando para elas; quando vão embora respiro fundo. A casa é muito pesada; fosse um trailler dava um jeito de levá-la para longe da estrada; como não é, o jeito é ir me acostumando com ela.

Kafka, autor de livros importantes como O processo e A metamorfose, escreveu, certa vez, que "o ato de escrever é uma espécie de lepra, uma enfermidade cancerosa e opaca e opaca que deve ser escondida das pessoas que transitam normalmente à luz do dia" – e tem razão. Afinal, qual o profissional que, para trabalhar, precisa se isolar dos outros?

A comparação mais acertada sobre a vida e a literatura que considero, no entanto, não é nem a de Kafka; a comparação mais acertada que acho é a que fez um autor anônimo quando comparou os poetas e romancistas de seu tempo com monstros tal como o Dr. Jekyll de Louis Stevenson e Charles Ward de Howard Philip Lovecraft. A comparação é evidente. A literatura, assim como uma droga qualquer servida por uma feiticeira em uma taça de ouro, transforma o indivíduo num homem solitário; capaz de praticar qualquer desatino.

Alexandre Dumas, se não tivesse sido escritor, talvez tivesse se tornado um homicida. Basta dizer que, quando escrevia, tinha o hábito de pendurar vários bonecos diante dele; quando seus personagens começavam a brigar o autor de Os três mosqueteiros também se punha a atirar ou a traspassar os seus bonecos com uma espada. Isso, para mim pelo menos, é uma prova mais do que evidente de que Dumas era, no fundo, um assassino.

A maior tolice da humanidade, portanto, é imaginar que a poesia – tanto quanto a música ou a pintura – é inútil. Tenho para mim, que não sou genial, que a poesia é muito mais importante aos homens do que todo o petróleo que se encontra atualmente sob a terra. Assim, a única comparação possível que se pode fazer entre a produção literária e o mundo circundante, é com o amor – pois só o amor, a exemplo da inspiração, é capaz de mudar, completamente, o comportamento das pessoas.

Mas não enveredemos por este caminho.

Voltemos à minha preocupação inicial: a perda de meu livro.

Quantos escritores perderam seus livros no passado? Muitos. Camões foi um deles. Nenhum, contudo, perdeu o seu original da maneira como perdi o meu. Camões, se não me engano, perdeu os seus poemas ("livro de muita erudição, doutrina e filosofia", segundo um de seus contemporâneos, Diogo do Couto) numa viagem que fez de Goa para Moçambique. Eu perdi o meu sem sair de casa e é sem sair de casa que pretendo achá-lo novamente. Afinal, fazer como os escritores antigos que batiam de porta em porta em busca de seus originais, é impossível – pois não há original algum. Há uma série de palavras iluminadas que, da mesma forma como surgiram no mundo, podem desaparecer.

Gostaria até de saber o que acontece com os textos quando a pessoa que trabalha neles digita a tecla destinada a apagar todos eles. Será que desaparecem completamente ou será que viram uma pequena centelha dentro do computador capaz de incendiar uma cidade inteira se, por acaso, forem tocados outra vez? É difícil dizer. A minha situação, em todo caso, não é nada fácil. Camões, quando perdeu seu livro em Moçambique tinha muito mais chances de encontrá-lo do que eu – apesar de não tê-lo achado. Um dia o encontram – quem sabe? A minha obra-prima, infelizmente, jamais. Ela pode até está sendo acessada, neste exato momento, por um português ou um gaulês. Tudo isso é possível. Como ela não existe, porém (pelo menos na mente destas pessoas) ninguém vai imaginar que se perdeu ou que alguém a procura, desesperadamente, na Internet.

Outro dia recebi uma mensagem em árabe no meu site. Como não sei árabe, resolvi apagar a mensagem; hoje, se tivesse recebido esta mesma mensagem não teria feito isso; iria pensar que alguém, depois de atirar o tapete no chão e rezar para Alá com o rosto voltado para Meca, tinha lido o meu apelo e, tendo encontrado o meu livro, mandava um recado para mim.

Como ainda não havia perdido nada na Internet, porém, dei pouca atenção àqueles garranchos todos. Pobre de mim!, comparo-me, na situação em que me encontro, a um pirata que, como o Capitão Ahab no Perquot, procura por uma baleia que, se não é Moby Dick, é, pelo menos, algo tão difícil de encontrar quanto ela. E aqui estou, navegando noite e dia neste mar que, se não tem céu nem estrelas tem, pelo menos, as ondas cibernéticas de um veículo de comunicação.

A aldeia onde nasci é pequena e fica a poucos quilômetros daqui. De vez em quando aparece gente de lá. "Seu pai", dizem elas, "mandou isso e aquilo para você". Eu recebo. Afinal, como todo escritor pobre que tem, como único orgulho, a sua literatura, não posso me dar ao luxo de dispensar seja lá o que for. Assim, recebo meus antigos vizinhos, mas sinto que não gostam de mim.

Houve um tempo, quando morava na aldeia, que me tratavam até com certa deferência; neste tempo, contudo, eu era uma outra pessoa, ainda não tinha descoberto a literatura; hoje, depois que li Tolstoi, Dostoievski e Proust, não sou mais o mesmo. É natural, portanto, que meus antigos vizinhos, quando me veem, se sintam mal. A casa onde moro, por outro lado, não ajuda muito; como costuma ficar fechada noite e dia e a única pessoa que se move, dentro dela, sou eu, não há como negar o pavor que isso provoca nos outros.

Mas isso pouco importa. Melhor do que estas observações fortuitas e pouco esclarecedoras, é que tenho tido notícias de Rastro de fogo. Foi visto no Himalaia, ao pé de um rio que, segundo dizem, percorre aquela região durante o verão; também foi visto na Índia ou em regiões mais distantes como a China; teve um amigo meu que, como morou por lá, disse haver acessado os sites brasileiros e viu o meu livro passar por ele tal como aquele rio que desce o Himalaia durante o verão.

A história mais incrível que ouvi a respeito de meu romance, porém, não foi a de que passou por choupanas ou por palácios requintados; a história mais incrível foi a de uma senhora que, se dizendo muito emocionada depois de folheá-lo (parece que o imprimiu), me falou de vários personagens que, infelizmente, não eram os meus. assim, fica muito difícil dar, na Internet, com o que existe apenas em potencial mas não concretamente; por outro lado é interessante dar com estas pessoas que, antes mesmo que você se apresente, parece que já sabem tudo sobre você: quando nasceu, onde e quando (chegam a este tipo de perversão) vai morrer. No início até estranhava isso; com o tempo, porém, passei a dar pouca importância a este tipo de vidente. Hoje, quando ligo o computador, a única coisa que me interessa é o meu romance. Onde se encontra? Em que tipo de rede está sendo acessado neste momento? Não sei. Alguém, no entanto, talvez o esteja lendo justamente agora quando pergunto por ele e não consigo localizá-lo.

A vida é estranha. As pessoas, por mais que pareçam próximas, por causa da Internet, continuam distantes; esta ideia de que o computador foi capaz de reduzir o mundo a uma simples aldeia de pescadores, não passa de especulação; pois a única coisa que se vê, no mundo, depois do computador, não é a sabedoria mas a ignorância.

Rafael, meu amigo, apareceu no solar onde moro e me trouxe notícias do mundo real. A aldeia onde nasci e onde meus pais ainda residem, foi praticamente varrida por um vento muito forte. As pessoas ficaram tão impressionadas com aquilo – a força do vento – que tiveram medo; algumas delas, por sinal, foram obrigadas a repor as telhas que o vento, depois de sua passagem, havia levado consigo; a casa de meus pais, felizmente, não sofreu nenhum dano – exceto, contou-me Rafael sorrindo, uma árvore enorme, do tamanho de uma torre, que praticamente desabou; não fosse o muro que cerca a casa, ela teria caído mas, como o muro é alto e resistente, manteve-a praticamente suspensa no ar por um bom tempo.

Todas essas histórias de um mundo que eu praticamente havia esquecido, me impressionava bastante. Rafael, enquanto isso, continuava falando: meus pais, depois que o vento passou e levou as folhas verdes (e outras nem tão verdes), resolveram dilapidar a árvore. E assim foi feito. A frente da casa onde moram, portanto, não tem mais aquela velha carnaubeira que, como uma palmeira no deserto, anunciava para as pessoas que o oásis começava ali; a carnaubeira tombou, sob o peso das intempéries; felizmente, como não tombou para dentro mas para fora do terreno onde a casa se encontra, não feriu ninguém.

Rafael, quando me dava essas notícias, sorria. Havia alguma coisa de ingênuo em Rafael, é verdade. Ele via o mundo como sempre foi; era incapaz de reter algo, na memória, que não tivesse, primeiro, passado por um de seus sentidos. Agia, no tempo dos computadores e dos satélites artificiais, com a mesma simplicidade com que os irmãos de José, segundo o Velho Testamento, agiam quando partiam em grupo para o Egito. A maneira de Rafael contar uma história, portanto (ou dar uma notícia) não diferia muito da maneira como os velhos escribas do tempo de Israel relatavam suas profecias; caso tivesse paciência para ouvir Rafael por mais algum tempo, era bem possível que, assim como os aviões que cruzam os céus, ele me falasse de tropas de jumentos que, à semelhança dos camelos que atravessam o Saara, na África, cruzam os sertões com as cangalhas carregadas de frutas ou legumes; como o meu tempo é todo ele dedicado à leitura ou às minhas pesquisas infrutíferas, é verdade, na Internet, despedi-me dele e vi quando, no lugar de entrar num carro, como seria de esperar no século XXI, montou num cavalo – tão bem selado quanto o de qualquer outro do século XIX – e saiu por aí, trotando.

Com a partida de Rafael voltei a meus afazeres costumeiros. A tela do computador, como sempre, mostrava um quadro de Rembrandt que, com o tempo, se transformava num outro, de Rubens, e assim sucessivamente até retornar ao quadro de Rembrandt outra vez; depois que apertei um botão no teclado, porém, tudo isso desapareceu; surgiu, no lugar da pintura voluptuosa de Rembrandt, de Rubens ou de Ticiano, a página branca da Internet sobre a qual me pus a trabalhar. Meu livro, como sempre, era uma incógnita, mas não custava nada dar um novo passeio por aí e ver se o localizava em algum lugar.

Havia um recado para mim. A língua na qual havia sido escrito me era inteiramente desconhecida; em todo caso, como estava determinado a não deixar passar nenhuma informação (mesmo que não fosse sobre meu livro) resolvi imprimi-la e mandá-la para alguém em algum lugar do mundo, que pudesse identificá-la. Assim, imprimi o seguinte:

Os caracteres, como se pode observar, não são ocidentais, mas asiáticos; as letras, imitando ideogramas chineses ou japoneses, até parecem esculpidas e não apenas desenhadas sobre a superfície branca do papel. A decifração delas, contudo, e não a sua aparência, era o que mais me chamava a atenção. O que será que significavam? De onde vinham e quem, dentre as milhares de pessoas que possuem computador no mundo, pode ter pensado em mandá-las para mim? Terão elas alguma relação com meu trabalho literário perdido na Internet ou não? A única maneira de saber isso, naturalmente, era lendo a mensagem – e foi o que fiz. Mandei-a para alguns japoneses que conhecia no Japão, exatamente, e eles me enviaram a resposta. Aquelas garatujas não pertenciam à terra dos samurais nem à China mas a Coréia; um deles, como lia coreano perfeitamente, me mandou dizer o seguinte: meu livro tinha sido lido por uma grande figura da Coréia do Norte; ela, a figura, ficou interessada na história mas, como estava incompleta, gostaria de saber como poderia obter os outros capítulos.

A leitura de meu livro, como se vê, tinha sido feita em coreano. Isso significa que estava sendo traduzido para outras línguas. O esquisito, nisso tudo, era que, apesar de traduzido parece que meu nome e meu e-mail continuavam na capa ou na folha de rosto do romance.

Por outro lado nada me tirava da cabeça que, como meu livro estava sendo impresso e traduzido por aí, não acharia nem um pouco estranho se ele aparecesse publicado com o nome de outra pessoa. Como não estava registrado com meu nome, era natural que não tivesse como provar sua autoria – o que muito me preocupava, evidentemente.

A tela do computador, assim como um buraco negro no interior do qual se pode ver de tudo, funcionava, para mim, como uma janela enorme depois da qual eu tanto podia ver quanto ouvir tudo aquilo que passava na minha frente.

A alegria que senti quando soube que aquelas figuras geométricas que vinham da Coréia tinham algo a ver com meu livro, me deixaram quase sem fôlego. Como manter contato com tal criatura? Como perguntar a ela em coreano ou em inglês que eu não tinha mais os capítulos que faltavam nem possuía aqueles que ela – este seguidor de Buda mal disfarçado em militar – havia lido?

Tudo isso passava por minha cabeça com a mesma velocidade com que os meteoros atravessam a atmosfera terrestre, se iluminam por um instante e desaparecem para sempre em seguida.

Havia, porém, uma alternativa. Aqueles mesmos japoneses com os quais eu me comunicava em inglês e que sabiam do meu romance, podiam me ajudar. E assim aconteceu. A informação de que eu gostaria de receber os poucos capítulos que meu leitor coreano possuía, foi enviada para ele; estes poucos capítulos, contudo, nunca chegaram. A impressão que eu tenho é a de que o coreano, desconfiando de que talvez eu não fosse o autor daquela obra-prima, resolveu não me importunar mais ou, quando muito, não se preocupar mais comigo. Assim, a segunda vez em que tive a informação de meu livro (a primeira foi quando aquela velhinha me escreveu dizendo que o havia lido mas, quando citou os personagens percebi que não se tratava de meu romance mas de um outro) foi uma nova decepção.

As regiões montanhosas da Coréia que ficam entre a China e o Japão, parece que guardam, para sempre, pedaços deste meu trabalho que, pelo visto, se perdeu para sempre.

Santa ignorância!, a Internet, já disse alguém, se parece muito com os redemoinhos que se agitam nas proximidades da Noruega; ali, quando eles aparecem, as pessoas têm o hábito de contemplá-los de longe mas nunca de se aproximar. A tolice que cometi, na minha busca desesperada de ser lido, foi esta: ter apertado um botão, no computador, que não só joga os trabalhos escritos na Internet; também os desmancha completamente no monitor onde foram gerados; assim acho que agi como um náufrago que, tendo encontrado uma ilha e não sabendo como se comunicar com o continente, se serve da única alternativa que dispõe no momento: esvazia as velhas garrafas de rum para colocar, dentro delas, cartas e mapas onde supostamente se encontra no oceano; feito isso espera o momento em que um navio ou um homem de bom coração que tenha lido suas mensagens venha procurá-lo e salvá-lo da solidão.

A casa onde moro, como já disse antes, é um tanto quanto misteriosa. De vez em quando as portas e as janelas batem, sozinhas. Quando isso acontece tenho a impressão de que não estou realmente sozinho neste velho bangalô. Mas deve ser só impressão. Mesmo assim – para tirar todas as dúvidas – desço as escadas de madeira que dão no térreo e saio por aí abrindo e fechando portas e janelas; quando estou muito disposto vou mais longe. Levanto um velho alçapão, em tudo parecido com aqueles que se vê em filmes de terror, e desço uma escada que, se não é de madeira nem por isso deixa de ser tão tétrica quanto aquela: trata-se de uma escada de ferro – bastante enferrujada, por sinal – que vai dar numa antiga adega e num poço cheio de sapos e casas de aranha. Ali abro os baús que se conservam amontoados no chão para ver se encontro algum vampiro dentro deles mas não acho nada nem ninguém.

Não há nada mais absurdo do que procurar fantasmas onde eles talvez não existam – mas como dizem que moro com alguns deles (há quem diga que sou um deles) tomo as minhas precauções pois a fantasia, mais do que a realidade, é responsável por coisas absurdas. Gontcharov, autor de Oblomov, passou a vida toda acusando Turgueniev de haver roubado parte de suas novelas. Chegou ao cúmulo de se trancar com algumas delas num quarto.

Tinha medo de Turgueniev – considerado um pilantra por ele – aparecer por acaso em sua residência e levar as suas últimas produções. Assim, quando penso que há alguém em casa ou que algum fantasma – mal saído das páginas de Oscar Wilde – se infiltrou nos compartimentos lúgubres do velho prédio onde percorro as salas e corredores em silêncio, não penso duas vezes, corro atrás dele; quando o encontro (como se isso fosse possível) (mas há sempre indícios deles em lugares tristes e remotos como este onde me refugio) dou-lhe as boas vindas; quando não me deparo com eles fecho as portas e janelas para que não batam mais e volto para o computador.

A sala onde trabalho também é tão lúgubre quanto o resto da casa, mas, como tem duas janelas – uma que dá para o mar, muito longe, e outra que dá para a aldeia onde nasci – é até arejada. A ventania, quando entra na sala, no entanto (e faz isso com certa frequência), penetra nela com tanta violência que não deixa nada – nem mesmo as cortinas (e olhe que são pesadas) – imóveis. A luz do sol, por sua vez, me deixa ver coisas incríveis. Marcas de antigos quadros que foram pendurados durante muito tempo nas paredes; livros, quase do tamanho de códices medievais retirados das estantes em volta aparentemente com violência e pesados bustos de bronze que apenas sugerem a sua presença com o recorte ainda visível por cima dos plintos mal conservados. Mesmo assim me sinto bem aqui. É como se o corvo de Allan Poe estivesse aqui, entre essas quatro paredes, batendo as asas e esperando o momento certo para, como fez com o poeta norte-americano certa vez, me dizer aquilo que mais temo ouvir neste mundo: "never, never more..."

Foram poucas as pessoas que leram meu romance, realmente. Com exceção de meu sobrinho, para quem mandei uma cópia sem saber, acho que só o amigo dele para quem havia enviado o e-mail, leu o meu livro; esta criatura que mora na Coréia e que teima em ignorar meu apelo para que me mande pelo menos algumas páginas de meu trabalho, foi outro leitor. Assim, num mundo onde habitam quase cinco bilhões de pessoas, talvez apenas quatro ou cinco tiveram a oportunidade – mais do que o prazer, penso eu – de ler meu último romance.

Todos que o leram, felizmente, dizem que gostaram muito. Apenas uma delas – aquela velhinha que, no final, vi que não tinha lido o meu mas outro original – fez uma ressalva: "seu livro é muito bom, disse-me ela, mas há um porém..." Foi a partir deste porém, por sinal, que vi que não se tratava do meu mas de outro texto.

Dizem por aí que quando alguém escreve um livro tem que esperar pelo menos alguns anos para publicá-lo; isso, felizmente, no tempo de Horácio que, quando editou aquele opúsculo a que deu o nome de Poética, escreveu, textualmente, que todo poeta que se preza terá que aguardar pelo menos nove anos para, finalmente, dar à luz seus rabiscos. E quem sou eu para me contrapor a Horácio?

O mundo no qual vivemos, no entanto, não permite mais tamanha disparidade. Tudo no mundo hoje (devido à televisão e ao computador, naturalmente) tem que ser imediato. Talvez por isso não se redijam mais livros como antigamente. Virgílio, quando morreu, ainda não havia terminado a Eneida e Dante, que passou boa parte de sua vida no exílio, só publicou a Comédia (aclamada como "divina" posteriormente) após dez anos de trabalho. Mas será que a literatura terá que ser sempre assim: cheia de exigências? Stendhal, autor de livros famosos como Lucien e Crônicas italianas, que o diga; ele que publicou O vermelho e o negro após muitos anos de trabalho (mas não tanto quanto pretende Horácio) teve que enfrentar um dilema gravíssimo: a partir de quando O vermelho e o negro seria entendido? Stendhal, ele mesmo, respondeu: "daqui há trezentos anos". E foi o que aconteceu.

Pobre Stendhal, fosse médico, o que teria ocorrido? A literatura, felizmente (ou será infelizmente?), tem esta virtude: o autor pode até ser derrotado; a sua produção literária, contudo, pode se sair vitoriosa.

Hoje, no entanto, não se pensa mais assim. A fúria com que os meios de comunicação procuram desvendar o futuro é tão grande que, por mais que se queira exaltar aqueles que se contrapõem a isso, não se consegue.

A literatura, por outro lado, não foge à regra: a poesia, que era escrita com a maior parcimônia (porque era feita para as gerações futuras e não as contemporâneas) sofreu um abalo tão grande com os novos meios de comunicação que deixou de ser poesia para se transformar em letra de música: sendo assim fica difícil imitar Camões ou Fernando Pessoa. Camões porque, como não tinha condições – nem físicas nem financeiras – para publicar Os lusíadas, passou a vida inteira esperando uma oportunidade que só surgiu à beira da morte; Fernando Pessoa, que não estava nem um pouco interessado em se exibir para o mundo como poeta apenas deixou escrito, no baú, o seguinte: "Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,/ eles lá terão a sua beleza, se forem belos/ (...)/ porque as raízes podem estar por debaixo da terra/ mas as flores florescem ao ar livre e à vist" – e assim aconteceu. Seus poemas, como eram belos, vieram à luz e, com eles, a vida boêmia e obscura deste cidadão pacato que ganhava seu sustento traduzindo cartas comerciais num pequeno escritório da Baixa, em Lisboa.

A necessidade de se exibir hoje em dia é tão grande, no entanto, que tanto a poesia quanto as outras artes não têm mais importância alguma: ninguém publica livros ou promove vernissage para mostrar seus trabalhos: o objetivo é outro. A imprensa está aí. A televisão, como atinge milhares de pessoas ao mesmo tempo, é capaz de dar notoriedade a qualquer um, independentemente da qualidade de sua produção. Por isso as "instalações", que não exigem nada do artista, a não ser "boas relações", pululam por aí.

Mas aqui estou eu me metendo onde não devo. Melhor do que falar mal da criatividade alheia é voltar a falar de meu livro que, como continua viajando pela Internet, talvez já tenha sido publicado na Indonésia com o nome de outra pessoa enquanto o autor, que sou eu, fica por aqui remoendo tamanha desdita.

Miguel de Cervantes, para escrever Dom Quixote, imagina que o autor deste livro é um árabe chamado Cide Hamete Benengeli cujos rascunhos encontrou num mercado, comprou e pagou a um outro árabe para o traduzir. O mesmo acontece comigo. O autor de Rastro de fogo (título do meu livro) sou eu; o tradutor, no entanto, seja ele quem for, é quem passou a deter os Direitos Autorais a partir do momento em que assumiu a sua paternidade – e talvez seja assim mesmo. Marco Polo, que nunca escreveu uma linha sequer sobre a sua vida, também é considerado autor daquele livro que desde a Idade Média circula pelo mundo e que tem a China como cenário principal; o verdadeiro autor do livro de Marco Polo, contudo, não foi ele mas um outro veneziano chamado Rusticiano ou Rustigielo de Pisa que, como foi preso pelos genoveses numa torre em 1298 ali se encontrou com o filho de Nicolo Polo e passou a ouvi-lo: ao sair da prisão, Rusticiano, que não era tolo, escreveu e publicou o livro que, até hoje, leva o nome de Marco Polo e não de seu verdadeiro autor.

Meu livro, certamente, não fará o mesmo sucesso de Dom Quixote nem, muito menos, de Marco Polo mas só o fato de ser meu e não ser assinado por mim me machuca tanto quanto aquela segunda parte do Cavaleiro da Triste Figura, escrita, supostamente, por Lope de Veja e que tanto mal causou a D. Miguel – a ponto deste investir furiosamente contra o falsário: "isso não é carga para os seus ombros", vocifera o pacato Dom Miguel contra Lope de Veja, "nem assunto para seu resfriado engenho".

Agora, porém, é tarde. Não dá mais para recuperar o que foi perdido. Miguel de Cervantes conseguiu: matou o ingenioso hidalgo no final de sua segunda saída pelas terras da Mancha; eu, como não disponho nem da primeira nem da última página de minha produção literária, só possuo um consolo: a casa onde moro e que, se fosse vista por um escritor genial – Edgar Allan Poe, por exemplo – é bem provável que tal criatura, num rasgo de imaginação sem limites, comparasse a minha situação com a de "um vírus perdido no interior de um arquivo morto" – e estaria certo. Difícil seria dar com estas palavras num dos textos de Poe.

Mesmo assim fica a imagem: a casa onde moro é, de certa forma, um arquivo; eu, por outro lado, não passo de um vírus que, fuçando os computadores da Europa e da Ásia, procuro um livro que, como a luva de um astronauta antigo que se perdeu no espaço sideral, também se perdeu num espaço que, se não é tão incomensurável quanto o Cosmo, não deixa de ser mais ou menos equivalente a ele: a Internet.

Assim, para que minhas lamúrias não se prolonguem por muito tempo e este "desabafo" não se transforme num novo romance, reproduzo, aqui (à guisa de informação) o refrão que todo dia envio pela Internet: mandem meu livro de volta, ordeno mais do que suplico; preciso muito dele, choramingo em seguida – tanto quanto Merlin quando foi aprisionado por Morgana e ainda hoje se encontra lá mais indefeso do que cativo em sua nuvem.
 
Rastro de fogo, como disse, é o nome do romance que escrevi e que sumiu. A história, banal, tem, pelo menos, uma virtude: boa parte dela se passa no espaço sideral e não aqui, na Terra. As personagens principais, portanto, são um asteróide e um arquiteto. A função do asteróide é a de atingir o arquiteto, no futuro; a deste é servir como prova de que o futuro da humanidade talvez, como diz lá o ditado árabe, já esteja escrito nas estrelas.

A grande surpresa que tive estes dias, no entanto, foi assustadora: alguém, não sei quem, me mandou trechos deste bendito romance pela Internet. Abri o computador um dia e, quando fui ver, lá estavam eles – os trechos. A alegria, no início, foi imensa; com o tempo, porém, vi que não tinha muito motivo para comemorar. Havia tantas mudanças na composição do romance que não era mais o mesmo que redigi. Era outro.
 
As pessoas quando mudam ou fazem uma viagem muito longa, são altamente admiradas por isso – principalmente quando aprendem línguas novas ou falam de lugares por onde passaram e ninguém nunca imaginou que tal coisa fosse possível um dia.
 
A situação do livro é diferente: ninguém quer saber de ler um romance que, tendo sido escrito por uma pessoa, passou por tantas transformações ao longo de sua trajetória, que nenhum leitor saberia identificar o autor nem a língua em que foi redigido. De repente passa do português para o inglês, deste para o alemão e assim por diante como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. Assim, para quem lê Homero é preferível pensar que se trata de um único autor do que de vários que, se revezando ao longo do tempo, nos deram estas duas obras-primas que são a Ilíada e a Odisséia.

A mesma coisa – ou quase – ocorreu com meu livro na Internet. A diferença – se houve alguma – foi apenas de lugar (e tempo) mas não de comportamento. As pessoas que se debruçaram sobre a Ilíada e a Odisséia para modificá-los ou para acrescentar alguma nova aventura, todas elas eram gregas; a língua que usaram, portanto, foi a grega; as pessoas que se aproveitaram do meu romance para criar novos personagens ou dar vida às suas idéeas macabras nem todas elas eram portuguesas -–ou de língua portuguesa – pertenciam a vários países e a várias etnias.

As ideias do Dr. Frankestein quando se pôs a juntar restos de cadáveres, eram a de criar o homem do futuro; o mesmo homem que Nietzsche havia profetizado em seus livros e que o Dr. Mengelli, médico nazista, tentou reviver durante a II Guerra Mundial. A criatura que surgiu destas duas experiências, contudo, não foi nem um super-homem, como queria Nietzsche, nem um ser altamente civilizado como o Dr. Mingelli sonhou no futuro mas, como afirma a autora, um monstro abominável.
 
Rastro de fogo, como passou pelo mesmo processo de formação adotado pelo professor Frankenstein no romance de Mary Shelley (Dr. Mengelli não existe neste universo), também não foge à regra. Aquelas criaturas que Santo Agostinho pensava que existiam na América antes desta ser descoberta, perdem é feio para a aparência miserável de meu romance. Caso Rastro de fogo tivesse tido a sorte de ser modificado por aqueles mesmos escritores que substituíram Homero no passado, a sua redação teria melhorado consideravelmente, mas como quem interferiu em sua narrativa não tinha a mesma genialidade dos colaboradores de Homero, o resultado foi o pior possível: Rastro de fogo, hoje, é mais digno de um estudo de teratologia do que de estética.

A história, no entanto, não muda. Continua a mesma. Trata da viagem interplanetária de um meteoro.

A viagem, no meu livro, pelo menos, começa em Saturno, o planeta; dali o objeto perdido no espaço sideral se dirige para a Terra. Neste exato momento nasce, na Terra, uma criança que se chama Eduardo. A trajetória de Eduardo, desde o instante em que nasce até aquele em que se torna adulto, está intimamente relacionada com a do meteoro pois este – mesmo sem Eduardo saber – está destinado a matar o filho de Dona Creuza. Assim, todos os passos que Eduardo dá, na Terra, são imediatamente relacionados com os movimentos que o meteoro executa no espaço.

No meu texto Eduardo não vive no melhor dos mundos; também não vive no pior – tem lá as suas paixões e as suas ambições: arquiteto, pai de família, sai por aí desenhando plantas de casas e acompanhando a construção de algumas delas; quando o engenheiro o interpela por algum motivo, Eduardo não se deixa convencer: exige que a casa em construção seja levantada de acordo com a planta que elaborou e não de acordo com as ponderações apresentadas pela engenharia civil.

A vida de Eduardo, neste caso, é semelhante a de qualquer outro que, como ele, exerce uma profissão dita liberal – pois este homem feliz (pelo menos até certo ponto) – está condenado a ter um fim trágico: o fragmento espacial que surgiu no Universo antes mesmo de a Terra ser o que é – o habitat não só da humanidade mas de uma imensa quantidade de seres vivos – parece que o persegue desde que o mundo foi criado.

Aí está o resumo – mal pincelado, é verdade – de meu romance. A intenção, quando escrevi este livro, foi a de chamar a atenção das pessoas para o fato de que o futuro – se existe – já está no passado: a nossa morte, neste caso, já está resolvida há muito tempo assim como as nossas aspirações, tão difíceis de serem atingidas, talvez já tenham sido alcançadas de alguma maneira.

A história que me chegou pelo computador, como disse antes – apesar de todas as interferências apontadas – não é muito diferente desta. Eduardo que, no meu romance, se chama José Eduardo Horta, no livro que me foi enviado, tem outro nome: Eduardo, apenas; a mulher dele, que se chamava Ane, passou a se chamar Luiziane e a mãe – uma personagem importante na novela – também não se chama Creuza mas Lucíola.

A mudança do nome dos personagens principais, penso eu, tem um objetivo muito claro: confundir o leitor ao mesmo tempo em que procura dar maior credibilidade à nova narrativa.
 
A história principal – aquela que trata da morte de Eduardo por um asteróide – esta é contada na íntegra – com algumas alterações, logicamente: a morte de Eduardo, no romance que escrevi, não se dá num espaço aberto, mas fechado; a morta de Eduardo no livro em questão ocorre numa praça e não numa sala. A diferença de lugar, como se pode notar, também é uma outra estratégia do Lope de Veja moderno para, como no caso do nome dos personagens do meu romance, confundir tanto o leitor quanto o autor verdadeiro.

Agora, porém, não há mais alternativa. Rastro de fogo, o livro que escrevi, não me pertence mais: pertence àqueles que o copiaram e o publicaram na Internet mas, como a Internet tem as suas peculiaridades – nem tudo o que está nela pertence a quem o introduziu mas a quem o descobriu – talvez tenha alguma outra oportunidade: provar que Rastro de fogo me pertence e não a um aventureiro que, tendo tomado conhecimento dele por intermédio da rede mundial de computadores dele se assenhoreou e o publicou como sendo o dono de um livro que nem sequer copiou direito.

A dificuldade que vou ter, claro, vai ser a de provar isso perante a justiça. Caso houvesse uma legislação específica de Direitos Autorais para quem trabalha na Internet, seria mais fácil; mas, como não há, o jeito vai ser apelar para a sorte.

Rafael esteve comigo novamente na casa onde moro e, como sempre, trouxe novas notícias da vila. Meu pai, segundo ele, está muito preocupado comigo; afinal, andam dizendo por aí que não sou mais o mesmo. Aquela criança que jogava bola em torno da aldeia e que todo mundo conhecia como sendo o filho do seu Nô, não existe mais.

As ideias de Rafael, claro, se confundem com as da aldeia mas como o mensageiro de meu pai está mais próximo de mim e de minha família do que os demais, parece que não dá muita atenção ao que escuta. Por isso Rafael, quando fala, me faz rir por dentro.

O fato de meu pai está preocupado comigo, no entanto, me deixa apreensivo. Ele sabe muito bem o que levou a me isolar completamente do mundo no qual vivi até então. Kafka, como citei antes, foi muito feliz quando disse que todo escritor é como um vampiro que não deve ser sequer tocado pela luz do sol quanto mais pelas pessoas que o rodeiam.

A conversa que tive com Rafael, portanto, foi bastante proveitosa. Como Rafael lida com o mundo de uma maneira bastante diferente da minha, acho que esta disparidade facilita – e muito – a nossa conversação mas não é o suficiente para me tirar deste mundo de sonho e fantasia no qual me habituei e no qual outros escritores – Sófocles e Montaigne, por exemplo – também mergulharam completamente.

Após esta longo digressão que começou com as dificuldades que a poesia, o conto ou o romance trazem para aqueles que se dedicam à sua produção e terminou agora com o retorno – feito aos pedaços, é verdade – de meu último romance, voltamos a falar da minha casa e das histórias macabras que a cercam – e por quê? Porque a minha vida, aqui dentro, não difere muito da dos ascetas que, pretendendo se afastar do mundo – seja lá porque for – escolhem um lugar ermo e distante como este para morar; quando estes ascetas são monges ou pessoas dadas à religião, o lugar onde moram (ou o pequeno oratório que constroem perto do tugúrio onde dormem) se transforma em igreja ou em capela que, com o tempo, vira catedral; a minha situação, logicamente, não é nem um pouco semelhante à de tais criaturas até porque, como não tenho a menor pretensão de ser pioneiro em nada, é natural que esta casa velha e mal assombrada venha a ser, no futuro, o que sempre foi: um antro medonho de morcegos e fantasmas.

Por falar em fantasma, aqui vai um segredo aterrador: tenho visto coisas surpreendentes estes últimos dias; desde que meu livro – ou pedaços dele – reapareceu no meu site, aliás, que tenho tido visões estranhíssimas. A primeira delas foi a de que o mar, pacato a princípio, levantava,, como se fossem páginas mal arrancadas de um temporal, ondas e mais ondas de poesia em torno de mim; a segunda – tão esquisita quanto esta – foi a de uma mulher que, como carregava um ramo de oliveira numa das mãos, confundi com uma Suplicante de Minerva – e assim era – mas, no momento de depositar os ramos sob os pés da deusa adorada pelos tebanos no tempo de Édipo, a Suplicante mudava de direção e punha os ramos de oliveira diante de mim.

A explicação mais satisfatória que encontrei – isso depois de vários dias de meditação – foi a seguinte: as ondas do mar, quando se ergueram na minha frente, não estavam apenas me mostrando poemas e contos fabulosos: estavam me incitando, penso eu, a voltar a escrever; as Suplicantes de Minerva, por outro lado, fazia a mesma coisa só que, no lugar de me mostrar o reino mágico da poesia e da prosa, me tratava como se eu fosse um deus – pois só um deus (apontava ela com seu gesto) era capaz de exercer a mesma profissão de Homero.

As visões, neste caso, se sucediam – eram uma atrás das outras e cada uma delas mais fascinante que a outra. Assim, cada janela que batia, cada degrau que rangia ou cada lufada de vento que por acaso entrava no prédio ou na sala onde me encontrava e levantava a poeira quase secular que me envolvia, me chamava a atenção para uma destas visões ou para uma ideia que eu ainda não tinha tido e que era quase impossível esquecer.

Desta forma aqui estou escrevendo estes rascunhos que, a princípio, não tinha a menor intenção de publicar, mas, como parece que se tornaram imprescindíveis para o romance que perdi, aqui estão eles expostos à luz do dia como se fossem velhos manuscritos do Mar Morto recém descobertos em Quram, na Palestina.

Mal conservados e mal traduzidos ainda nem por isso deixo de publicar na íntegra para que tanto os escritores quanto os leitores mais afoitos tomem conhecimento do meu infortúnio e possam se precaver melhor contra tudo e todos que os cercam no momento em que estão lendo ou escrevendo.

Acho até que foi a partir deste dia – este dia em que tomei esta decisão heróica de mostrar as próprias entranhas – que tudo mudou. Abri as portas e janelas do casarão onde moro, afugentei os fantasmas que me perseguiam e deixei que as visões – aquelas visões de escritor mal sucedido que me importunavam tanto – desaparecessem completamente.

Agindo assim cheguei à conclusão de que a poesia, tanto quanto o romance, também tem a sua luz interior, como aquela que guiou os hebreus no deserto no tempo de Moisés, e é capaz de transformar um ser esquivo e arredio como todo escritor num ser humano mais ou menos tratável e equilibrado emocionalmente como deve ser toda e qualquer pessoa…

Fonte:
http://www.jornaldepoesia.jor.br/nb2.html