terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) – Outros Contistas – Maria Thereza Leite

    
        Maria Thereza Leite nasceu em Fortaleza. Cursou jornalismo na Universidade Católica do Rio de Janeiro. Pós-graduação na UECE. Ganhadora de diversos prêmios literários. Estreou em livro com Mosaicos, contos, em 2003. Passagem Secreta para a Lua, também de contos, é de 2007.

            Depois de submeter contos ao olhar de leitores experientes, em concursos, Maria Thereza Leite reuniu no volume Mosaicos algumas daquelas peças e outras inéditas. Apenas uma pode ser considerada curta: “Quando nós éramos pássaros”, com pouco mais de duas páginas. As demais vão de quatro a dezessete. Umas são narradas por protagonista; outras, por narrador onisciente. Os tradicionais diálogos antecedidos de travessão foram abolidos. No entanto, o que sobressai nessas narrativas é o uso constante do discurso indireto livre e do monólogo interior, num ir e vir do foco narrativo, ora em direção ao ser fictício e suas introspecções, ora voltado para o exterior, o ambiente ou o fato, seja ele pretérito ou presente.

Assim, o protagonista de “Mosaicos” inicia a narração com Ana a se balançar numa rede e a vasculhar os céus com o tubo formado pelas mãos, “à guisa de telescópio”. Ao mesmo tempo, descreve o ambiente: os armadores da parede, a varanda de labirinto da rede, os telhados das casas, os prédios, as luzes da cidade, a abóbada celeste. A seguir, como se a luz se apagasse, como se personagem e lugar se envolvessem em sombras, o narrador penetra na alma de Ana e lhe concede a oportunidade de falar ou monologar: “Pois contrariando todas as expectativas, ela estava ali, viva. E sentia-se feliz”. Não exatamente, isto, porque ainda o verbo se emprega na terceira pessoa. No entanto, não há episódios, mas somente flashes do passado, seguidos de análises psicológicas, considerações, observações. Os verbos inativos, por isso, substituem os de ação.

Na apresentação da obra, Carlos Augusto Viana observa: (...) “os contos comportam, ao mesmo tempo, dois motivos: o factual e as ondulações psíquicas, isto é, uma história dentro de outra história”. Verifique-se a construção de “A Desconhecida”. Logo na abertura o narrador se refere à protagonista, que até o final não terá o nome explicitado: “Desde muito pequena, começara a ouvir histórias incomuns narradas por pessoas que iam passando próximas a ela”. Ou seja, a personagem desde menina ia colhendo pedaços de uma história, da história de sua família, de uma desconhecida com quem convivia. “Contavam como aquela mulher vestida de preto (...) retornara à sua cidade natal”. A história se avolumava, aos poucos, para a menina. (...) “Mais adiante (...) os narradores procuravam outras maneiras de tecer hipóteses” (...). Veja-se o constante emprego de vocábulos próprios da teoria da narração. “Precipitados, eles esqueciam que as histórias tinham seus começos” (...). Ou seja, os narradores se precipitavam e esqueciam o início do drama, começando pelo meio ou final. “Mais adiante, quando as dores se deram por amainadas, as narrativas puderam tomar outros rumos” (...). Porque os contos não são lineares, se bifurcam, se estilhaçam. “Os contadores de histórias, já velhos, depois de levarem a filha da desconhecida a passear em paisagens antigas, para melhor se fazer compreender, resolveram entregar as provas de que ela era a herdeira de todas aquelas narrativas”. A menina seria, então, a narradora ou a dona dos dramas. Mais adiante, quase no final, se lê: “Não havia mais o que contar”. A peça ficcional se completava, alcançava o final.

Nos contos de feição tradicional, de enredo plenamente ordenado, em que o descritivo narrativo linear se manifesta com mais ênfase, os personagens são retratos, figuras, seres com feições e nomes próprios. Nas composições modernas e pós-modernas ou sem ação externa, introspectivas, eles tendem a perder as formas, os contornos e até os nomes. São como retratos psicológicos, sem rostos, sem traços característicos, muitas vezes. Ana, de “Mosaicos”, era “moça doente” e só. A protagonista de “A Desconhecida”, assim como os demais seres fictícios, parece totalmente opaca. O narrador de “A angústia das árvores do parque” é um homem a caminhar sozinho num parque. Em “Quando nós éramos pássaros” os seres fictícios são apenas “ele” e “ela”. Quando os nomes são mencionados, como Clara e Vicência, de “Um varal novo para o ‘inverno’”, o que mais importa são a casa, o sítio, as árvores, os bonecos de pano, o tempo a escoar.

Os conflitos nos contos de Maria Thereza Leite são de natureza subjetiva. Os personagens se debatem na solidão, se voltam para dentro de si mesmos, afundam em introspecções, como se não participassem de ações reais. A paisagem é como uma figura colada na parede. O tempo passa e o personagem, ao acordar do torpor, olha para o mundo e é como se não tivesse percebido que também a paisagem muda, as velhas construções são substituídas por outras (casarões por prédios), o mato dá lugar a ruas. “Logo Ana se viu só na casa paterna de corredores vazios, cozinha sem cheiros e salas mudas, onde a craviúna, outrora polida a óleo de peroba, se tornava opaca pela fina poeira”. O protagonista de “A angústia das árvores do parque” relembra um passeio ao parque: “Tudo estava cinza e pesado, num alvorecer chuvoso que não conseguia clarear”. E durante toda a narração prepara o leitor para o desfecho: as árvores choravam e com ele conversavam, como se quisessem avisá-lo da tragédia ocorrida havia pouco. Por isso, os seres não são vazios, bonecos de pano, mas, antes, complexos, em permanente conflito interior.

O espaço da ação nos contos de Mosaicos é essencial para a movimentação interior dos protagonistas. O alpendre onde Ana se balançava, deitada numa rede, e de onde podia ver as estrelas, possibilitava o ir e vir do “emaranhado de lembranças” que a fazia acordada até o amanhecer. O parque, suas alamedas, “as verdes copas das árvores”, “a capela branca do outro lado da rua” – nesse ambiente bucólico se desenhava a tragédia que iria marcar a vida do narrador de “A angústia das árvores do parque”. A casa de “Não perca tempo olhando ursos prateados”, com seu portão de ferro, o alpendre, “as tábuas corridas do nobre angico”, as persianas e a televisão a mostrar “enormes ursos prateados” a tomarem refrigerante, é nessa casa que a personagem se debate em dúvidas. Por isso a importância do olhar nas composições de Maria Thereza Leite. Como o de Ana, a vasculhar os céus, a olhar estrelas. Ou o do homem do parque, a querer ver o voltear alegre de carrossel ou um leve aceno, enquanto as árvores o observavam. Como o do “colecionador de vitrines”, a olhar a exposição dos artigos de luxo e se ver refletido no espelho. Depois, no alto da árvore de Natal, “podia ver lá em baixo, à frente, o mar e o enorme e escuro navio ancorado”. Ao chegar ao topo, podia ver o mundo. E lançar-se ao espaço. Dos mais significativos nesse aspecto é “O ‘olho da libélula’”. Seu Francisco captura uma libélula para o menino e explica: “Ela tinha também o maior olho proporcional do reino animal, com o cristalino multifacetado, o que lhe permitia enxergar a imagem de um objeto, repetida, vinte e quatro vezes”.

Enquanto os personagens olham e veem o mundo, suas partículas, sejam estrelas, sejam grãos de areia, os narradores transformam esses olhares em sons, em palavras. Pois é possível ouvir estrelas, como poetizou Bilac.

Mosaicos são pavimentos de ladrilhos variegados, desenhos, peças de cores, para serem vistos. Se são mosaicos interiores, são pavimentos para serem vistos por todos os sentidos. Pois quando o olhar é proibido, os ouvidos assumem o lugar dos olhos. A menina de “A desconhecida” é toda ouvidos, para escutar as narrativas que se contam na casa onde vive. Mas até ouvir não lhe é permitido: “Uma criança pequena não precisava ouvir aquelas histórias desmedidas”.

Assim são os mosaicos sonoros de Maria Thereza Leite.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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