domingo, 16 de fevereiro de 2014

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Outros Contistas: Ricardo Kelmer

      
      Ricardo Kelmer (Fortaleza, 1964) estreou como cronista de jornal em 1994 e no ano seguinte publicou o primeiro livro. Cursou Letras e Comunicação Social e foi redator de publicidade. Livros publicados: Quem apagou a Luz?, ideias espiritualistas,1995; O irresistível charme da insanidade, romance, 1996; Guia Prático de sobrevivência para o final dos tempos, contos, 1997; Baseado nisso – viagem pelo universo folclórico da maconha, contos; Matrix: o segredo dos predestinados, artigos, 2003;  A arte zen de tanger caranguejos, crônicas, 2003; Matrix e o despertar do herói, 2005; Blues da vida crônica, crônica, 2006, e Guia do Escritor independente.

            Em Guia prático de sobrevivência para o final dos tempos, Ricardo Kelmer reuniu nove narrativas, quase todas longas. Trata-se de uma literatura diferente da que se vem publicando no Brasil, sobretudo nos gêneros conto e romance. Na obra de Ricardo não se vê nada de violência urbana, infância desamparada, miséria, favelização das cidades, etc, temas tão caros à maioria dos escritores brasileiros desde os anos 1970. Para ele a “realidade” se encontra muito longe disso. Seus personagens convivem com íncubos, demônios, princesas perdidas em bosques e sonhos, mortos que vivem em outras dimensões, bichinhos invisíveis, etc.

                Em “O íncubo” o narrador onisciente fala a uma mulher ideal, faz suposições, usa muitas vezes os verbos no futuro, como se fizesse a defesa do íncubo, que estaria nos sonhos de todas as mulheres. No final observa: “Lera certa vez alguma coisa sobre demônios que invadem o sono das mulheres para copular com elas, lendas medievais.” Temas como esse reaparecem em outras peças do livro. Em “Quando os homens não voltam para casa”, um casal – Luciane e Junior – vive uma história inteiramente insólita: o homem deixa uma carta para a moça, desaparece e... A carta narra uma estranha sequência de fatos: a aquisição de um quadro em que uma princesa posa diante de um lago, um sonho, uma briga do casal, outros sonhos. Lida a missiva (ponto de vista de Junior), se inicia (ou se completa) a narração, por narrador onisciente, de uma série de fatos, com o surgimento de outros personagens e o desfecho misterioso.

                Esse clima de mistério aparece em todas as narrativas do livro. Em “O presente de Mariana” o leitor deparará o mundo do espiritismo, dos transes, dos orixás. No belíssimo “Há algo de podre no 202” (o conto não merece este título), veem-se o amor de duas meninas, a sequência da vida delas, a separação, o reencontro (já moças), a morte de uma delas, e, sobretudo, os misteriosos seres que atormentavam a narradora. História terna e, ao mesmo tempo, chocante.

                Não há como negar a vocação de Kelmer para o fantástico. Não o realismo mágico dos hispano-americanos, mas o fantástico puro ou mais próximo do absurdo. Em “O cilindro da luz azul” o leitor poderá até vislumbrar nele uma alegoria, uma sátira às sociedades totalitárias, como o fizeram Aldous Huxley, George Orwell, Anthony Burgess e outros. O povo é dividido em categorias: desobedientes, destoantes, resistentes, etc. Ao surgirem uns cilindros nas areias das praias, o leitor percebe que não se trata de literatura de protesto e pode até pensar em ficção científica. Entretanto, no final verá que o conto nada tem nem de uma coisa nem de outra. Mas Kelmer também pratica ficção científica, como em “Pequeno incidente em Hukat”.

                As tramas de Ricardo Kelmer se desenrolam quase sempre em espaços irreais ou imaginários. Uma das poucas histórias em que os personagens se movimentam em espaço real é “A vertigem”. Em Quixadá, cidade do sertão cearense, vive seo Pepeu, um velho aloucado que conversa com uns “bichinhos”, seres invisíveis, pequenos demônios. Também a cidade de Fortaleza é palco de outra narrativa: “Crimes de Paixão”, que destoa das demais, por seu realismo urbano.

                Em algumas composições, mundos opostos – o real e o irreal – se mesclam. Luciene de “Quando os homens não voltam para casa” trabalha num escritório, mora em apartamento, vive numa cidade grande. Outra “realidade”, no entanto, se manifesta no mundo pintado num quadro de sua casa. A cidade de “Cilindro azul” é absolutamente irreal, fantasmagórica.

                Ricardo se vale dos mais variados recursos expressivos. Em algumas peças utiliza somente a narração. Em outras intercala, como se tem feito ao longo dos tempos, diálogos (ainda com travessão) à narração. A linguagem coloquial das falas, com seus erros gramaticais comuns, ele a usa com muita frequência. Há um conto – “O strip-tease”– constituído somente de diálogo. Não há, portanto, em sua literatura, insubordinação de linguagem, como se pode ver em Jorge Pieiro. Pelo contrário, Ricardo Kelmer cultiva as formas tradicionais de contar. Mas isto não desmerece a sua arte.   

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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