sábado, 18 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 243


Aparecido Raimundo de Souza (À Margem do Nada)


DECIDI PARAR. Dar um tempo em tudo. Refazer, voltar no caminho percorrido, tentar de alguma forma ressuscitar os erros cometidos para acertar o que ficou pela metade. Ou que nem metade teve. Talvez não haja mais espaço para o que planejo, porém acho que só o fato de tentar, de querer, de estar decidido, já me deixa um pouco melhor. E eu me sinto mais confortável.

Sei que cometi muitos erros e outros tantos e infindáveis desacertos. Feri, maltratei corações, pisoteei almas que só queriam o meu bem. Tudo em nome da minha mediocridade pessoal, da minha insensatez barata. Do egocentrismo bobo, da vontade de querer ser mais que os outros. Na verdade, hoje, na casa dos sessenta e sete, percebo, não somos nada.

Não passamos de terra ruim, sem o adubo da perfeição, sem o tempero certo que nos torne únicos, ou insubstituíveis. Não passamos de um punhado de barro podre, poeira que, de um momento para outro, poderá ser levado pelo vento.  Estamos, na verdade, presos no espaço a um Ser Superior que nos mantém sob seu domínio, como se fossemos uma linha esticada de um extremo ao outro do destino.

Basta um movimento em falso e esse fio se arrebenta, se rompe, se parte. Partindo, lá se vai todo nosso orgulho, toda nossa pompa, toda nossa ganância e luxúria por água abaixo. Não adianta, pois, sermos mais do que somos, ou do que, por dádivas divinas chegamos  a alcançar na grande voragem desse ciclo que nos movimenta, ora para um lado, ora para outro, a bel prazer do Criador de todas as coisas.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    

Por isso, é bom parar. E vou fazê-lo. Estancar as mazelas, dar um basta nas vulgaridades que povoam o ser. Dar um chega pra lá nos planos mirabolantes que alimentamos. Planos, às vezes, destituídos de um fundamento sólido e, em face disso, por entendermos estarmos certos, acabamos vencidos e desolados no fundo do poço.

A vida é tão simples, se olhada com carinho e esmero. A vida é pura, é maravilhosa, é boa de ser vivida. Com a nossa mediocridade sem par, à flor da pele, com a nossa cegueira interior, com a nossa falta de luz e bom senso, deixamos passar momentos maravilhosos. Instantes de paz, minutos de harmonia... Trocamos todas essas quimeras ao nosso alcance por sonhos bobos, por planos hercúleos que só nos levam para o abismo da sórdida derrocada.

Dela ao fracasso, com certeza, um pulo. Derrota e fracasso andam de mãos dadas,  estão sempre dispostos a nos passar uma tremenda rasteira E acreditem, caros amigos, se não formos espertos o suficiente, acabaremos de mãos vazias, o coração combalido, a alma entristecida, e pior, com uma vida pela frente, uma vida que poderia ter sido melhor, muito melhor  do que foi.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Tobias Barreto (Poemas Avulsos) II


NAMORO NÃO É CRIME
(A um juiz da Escada)

Considerando que as flores
Existem para o nariz,
E as mulheres para os homens,
Na opinião do juiz;

Considerando que as moças,
Ariscas como a perdiz,
Devem ler seu perdigueiro,
Na opinião do juiz;

Considerando que a gente
Não pode viver feliz
Sem fazer um namorico,
Na opinião do juiz;

Amemos todos, amemos,
E Cupido quem o diz;
Pois namoro não é crime,
Na opinião do juiz...
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O REI REINA E NÃO GOVERNA
(Apólogo)

Não sei por que a língua humana
Os brutos não falam mais,
Quando hoje têm melhor vida.
E há muita besta instruída
Nas ciências sociais...

Ultimamente entenderam
Que tinham também razão
De proclamar seus direitos,
Pondo em uso os bons efeitos
Que trouxe a Revolução...

Seja o leão, diz o asno,
Um rei constitucional;
Com assembleias mudáveis,
Com ministros responsáveis,
Não nos pode fazer mal.

Fiquem-lhe as garras ocultas,
Não ruja, não erga a voz,
Conforme a tese moderna
Qu'ele reina e não governa,
Quem governa somos nós...

Todas as bestas da terra,
Todas as bestas do mar
Tenham os seus delegados,
Sendo os ministros tirados
Do seio parlamentar...

Muito bem! grita o macaco,
A gente vai ser feliz!
Respeito a ciência alheia;
Publicista de mão cheia,
O burro sabe o que diz.

Todavia, acho difícil
Que Dom Leão rugidor,
Sujeito à sede e à fome,
Queira ter somente o nome
De rei ou de imperador!...

Acostumado a pegar-nos
Com suas patas reais,
Calar-se, fingir-se fraco !...
Segundo penso eu... macaco...
Dom Leão não pode mais!

Acode o asno: "Eu lhe explico.
Nada vale a objeção:
Se o rei viola o preceito,
Salvo nos fica o direito
De fazer revolução."

Mestre burro, isto é asneira,
Palavrão de zurrador,
Esse direito é fumaça,
De que nos serve a ameaça,
Quando nos falta o valor?

Só vejo, que bem nos quadre
No trono, algum animal,
Que coma e viva deitado:
O porco!... Exemplo acabado
De rei constitucional..."
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PAPEL QUEIMADO

Procuro as moças: por que de mim fogem,
Por mais que eu queira lhes fazer agrado,
Faltam-me graças, expressões, maneiras.
Ah! já entendo... sou papel queimado.

Então escutem, não se zanguem, digam:
Acham bonito este penoso fado
De andar de rastos a seus pés chorando?
Não! antes quero ser papel queimado.

A vida do homem, que é um belo drama,
Inda que às vezes mal representado,
Tem dois papéis: um é o papel de bobo,
Outro mais sério: é o papel queimado.

Mas, venham cá, não me excomunguem, vamos:
Toda esta cisma é porque sou casado?
Para guardar um certo amor platônico,
Que tem agora ser papel queimado?

Noivo... não posso, pretendente... nunca,
Nem há mais jeito para namorado;
Então serei adorador eterno...
Que tem agora ser papel queimado?

Nada lhes quadra! Querem gente livre,
E assim me deixam pelo meu estado;
Também não vale conversar com feias...
Que tem agora ser papel queimado?

Não me desejam como par na dança,
Tanto melhor, que ficarei sentado:
Acho-as tão murchas, tão desenxabidas...
Oh! como é belo ser papel queimado!

Melhor, ao certo, que viver na peça
A envelhecer e a ficar mofado,
Esta ou aquela, por exemplo, gentes,
Também não gosta do papel queimado?

Aí que já sentem suas trinta festas,
Trinta dezembros sobre seu costado,
Tantos suspiros não tiraram d'alma,
Doidas por terem seu papel queimado?

Essas ruguinhas que se vão formando,
Esse desgosto que se lê pintado,
Por entre as sombras d'um sorrir sem graça,
Não são a falta do papel queimado?

Por que a menina suspirando vive,
Penosa e langue de causar cuidado?
Por que o piano toda noite geme?
Não é a falta do papel queimado?

Fonte:
R. Magalhães Junior. Antologia de humorismo e sátira. RJ: Bloch, 1998.

Ruth Guimarães (O Padre e o Menino Esperto)


Um padre viajava, certa vez, pelas aldeias, escarranchado* numa velha besta ruça. À margem de um rio largo, encontrou um moleque brincando.

– Menino! – Perguntou ele, querendo passar para o outro lado. – Esse rio é fundo?

– Que esperança! – respondeu o menino com uma carinha de anjo. - O gado do meu pai atravessa aí, com a água pelo peito.

O padre, em vista dessa informação, tocou a besta para a água, mas o rio era de uma fundura sem fim, e a besta perdeu o pé. Ela e o padre desapareceram rio adentro, rodaram arrastados pela correnteza, e somente a muito custo conseguiram se salvar. Quando o padre atingiu a margem onde estava o menino, perguntou:

- Onde você mora?

- Perto daqui.

– Quero ir lá.

Foram, mas não encontraram ninguém em casa.

– Onde está seu pai, menino?
   
- Papai foi plantar o que não nasce.

– E sua mãe?

- Foi trabalhar para comer ontem.

– Esperarei que eles cheguem – declarou o padre, fechando a carranca.

Os pais do menino se demoraram muito, porém quando apareceram, lá estava o padre sentado, esperando, e aí não mais de carranca fechada, e sim todo sorridente.

– Que menino esperto esse seu filho! – disse ele ao casal. – É muito inteligente. Quando eu vinha para cá, ele me disse que o gado do seu pai atravessava o rio com água pelo peito.

– É verdade, – falou o pai - nós criamos patos, eles não afundam.

O padre disfarçou uma careta.

– Pois é – disse ele, sorrindo amarelo. – Ele disse que a senhora tinha ido trabalhar para a família comer ontem.

– Está certo – disse a mãe. – Fui fazer pães para pagar uns que tomei de empréstimo.

– Ele disse também que o senhor foi plantar o que não nasce.

– É isso mesmo – disse o pai. – Fui ao enterro de um dos meus amigos.

"Esse moleque me fez tomar um banho no rio, e quase morrer afogado, mas ele me paga" – pensou o padre. E continuou em voz alta:

- Se os senhores não se incomodassem, eu levaria o menino comigo. Ele é tão inteligente, que é pena deixá-lo na roça, onde o mais que poderá aprender é carpir, cuidar de plantações de milho e feijão miúdo. Se for comigo, será diferente. Frequentará escolas, e poderá vir a ser um grande homem…

Tanto falou, tanto insistiu, que conseguiu o consentimento dos pais do menino e o levou para a cidade. Mal chegaram, o padre perguntou:

- O que é isto onde moro?

- Casa – respondeu o garoto, prontamente, um pouco admirado da pergunta.

– Não é casa, é traficância. Você vai apanhar, para não falar mais bobagem.

Pegou um chicote e deu-lhe umas lambadas na perna.

- O que é que eu sou?

- Padre.

- Não está certo. Sou papa-cristo.

- O que é minha empregada?

- Mulher.

– Não é mulher, é folgazona.

E dava-lhe de chicote.

– O que é isso, menino? – dizia, abrindo a torneira.

– Água.

– Não é água, é abundância.

– Que é isto?

- É um gato – dizia o menino amedrontado.

– Não é gato, é papa-rato.

– E isto?

- Fogo.

– Não é fogo, é esquenta-mundo.

E batia de chicote no garoto. Quando se cansou, guardou o rabo-de-gato e foi dormir a sesta.

Então, o menino pegou o gato, amarrou-lhe um feixe de sapé no rabo e pôs fogo. O bichano, sentindo o rabo queimar, correu pela casa, espantado, e foi parar no telhado, miando desesperadamente. Em pouco tempo, ateou fogo à casa. O menino, vendo o estrago feito, trancou a porta do quarto onde dormia o padre, amontoou os móveis diante dela, e começou a gritar, com toda a força dos pulmões:

        "Acorda seu papa-cristo,
        que lá vai o papa-rato
        com o esquenta–mundo no rabo!
        Acorde com a abundância,
        Que leva o diabo à traficância!"

O padre acordou e começou a berrar:

- Menino, destranque a porta! – gritava quase asfixiado pela fumaça.

E o menino, sem piedade:

- Não é porta, é batedeira.

– Menino, põe a chave por baixo da porta!

- Não é chave, é giradeira.

– Menino, traga água.

– Não é agua, é abundância.

– Apague o fogo, menino!

- Não é fogo, é esquenta-mundo.

O menino, então, pegou a trouxinha de roupas, e saiu correndo para a sua casa, sem nem olhar para trás.
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* Escarranchado – Montado ou sentado com as pernas abertas.

Fonte:
Ruth Guimarães. Lendas e Fábulas do Brasil. 1964.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 242


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) O Melhor Lugar do Mundo


Nasci em São Fidélis-RJ. Com 20 anos, mudei para Bauru-SP, onde permaneci durante um ano e meio. No dia 17 de janeiro de 1955, viajando de jipe em companhia do meu irmão Luiz, cheguei a Maringá para iniciar vida nova. Paramos em frente ao Bar Central, na praça hoje denominada Napoleão Moreira da Silva, para tomar um refrigerante. Lá estava o pioneiríssimo Ângelo Planas, a primeira pessoa a quem fui apresentado em Maringá. Meu irmão já o conhecia lá de Bauru e lhe disse que eu estava chegando para morar aqui. Planas me deu um abraço e garantiu: “Parabéns, menino. Isto aqui vai ser logo a melhor cidade do mundo”. Acreditei sem reticências. Gamei pela cidade à primeira vista. Virei maringaísta no primeiro impacto.

     Hospedamo-nos no Hotel Esplanada, então existente na Avenida Duque de Caxias, perto do escritório da Companhia Melhoramentos. Nunca me esqueci do primeiro banho. Tendo entrado no chuveiro com o corpo inteiramente coberto pela poeira da estrada, via a água rolando vermelhinha, uma coisa linda. À noite jantamos na Churrascaria Guarani e na manhã seguinte, com a cara e a coragem, assumi minhas novas funções: gerente de uma lojinha de peças de automóveis que meu irmão e um cunhado dele haviam comprado de um parente. Luiz voltou para Bauru e fiquei morando sozinho numa casa de madeira nos fundos da loja.

     Vim de lugares antigos, encontrei aqui uma cidade nascendo. Misturou tudo na cabeça: a sensação de que eu havia entrado de penetra num filme de faroeste; sonhos de rapaz vendo o futuro abrir-se à sua frente; aquela poeira colorida com cheiro de vida; aquela gente apressada passando nas ruas com suas botas e chapéus de palha; caminhões puxando madeira; jipes trotões levantando redemoinhos; de noite o tuque-tuque dos motores de luz, e eu ali no meio, um fluminense romântico fascinado pela chance de mergulhar na aventura do pioneirismo.

     Villanova era o prefeito, o primeiro do município, e o pessoal começava a falar em novas eleições. Puxa, que emoção: eu ajudaria a escolher o segundo prefeito de Maringá. Transferi meu título, votei no Haroldo. Mas o Américo era um candidato diferente, tocava viola, falava simplão, arrumava as ruas com sua motoniveladora, ganhou a eleição.    

     O transporte da maioria era a bicicleta, a lambreta, ou a circular do Polônio, que de vez em sempre atolava na Avenida Brasil, obrigando os passageiros a descerem para empurrar. Os mais abonados rodavam de jipe ou perua. Eu tinha uma monareta.

     A diversão durante a semana era ver algum filme no Cine Maringá ou no Cine Horizonte. No sábado um baile no Aero Clube ou no Grêmio dos Comerciários. No domingo matinê dançante e em seguida a primeira sessão do cinema, terminando com a saideira no Bar Colúmbia. Bons tempos. Primeiros tempos da futura melhor cidade do mundo. Planas tinha razão.

Fonte:
Crônica enviada pelo autor, publicada no “Jornal do Povo” – Maringá – 27-02-2020.

Vivaldo Terres (Poemas Escolhidos) XIV


ALMA ILUDIDA

Como é bela a juventude,
Nos áureos tempos da vida.
Enche-nos de esperanças,
E nos deixa a alma iludida.

Pensando que essa alegria,
E plena felicidade
Seguira por toda vida,
Sem tristeza e sem saudade.

Pobres jovens desconhecem
O transcorrer da existência,
Depois de muita alegria.
Dos amores do passado,
Vem-nos a melancolia,
A angústia e o desagrado.

Ah! Se a vida nos fosse sempre,
O fulgor da juventude.
De alegria e felicidade,
Sem tristeza e sem saudade.
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A MIM DEVOTOU TANTO CARINHO

Pretendo ser feliz com aquela,
Que um dia sem pensar a abandonei.
Hoje sinto a sua falta...
E sigo como loco arrependido,
Pelo mau que pratiquei.

Ela sempre me amou,
E a mim devotou tanto carinho.
Como fui fazer um ato desses,
E não seguir junto dela o mesmo caminho.

Ah! Como a mente às vezes não aceita...
Os apelos do coração até por que se aceitasse,
Evitaria tantas tristezas sofrimentos e desilusões.
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DOCE ENLEVO

Minhas noites são sofridas
Entro em desespero
Pois sonho sempre com ela
Com lágrimas molho meu travesseiro

Até por que no sonho ela aparece
Sempre bela e formosa a vista
Me beijando docemente não me faltando carícias

Depois desse doce enlevo
Em que a tristeza aparece
Olho pra onde ela estava e não a vejo
E fico desencantado
Espero que chegue à noite
Para sonhar com ela e se deitar ao meu lado
E ter de mim piedade
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NÃO SOU AMADO

Não sei por que vivo preso.
Na cela do meu coração,
Eu quero sair, mas não tenho condição.

Vivo por isso sofrendo,
Triste sacrificado.
Preciso abrir a cela,
Para ficar libertado.

Por este amor que um dia,
Mudou o meu jeito de ser.
Era feliz e alegre,
Hoje vivo a padecer.

Por tanto amar fiquei,
Um pobre coitado.
Fui parar em um manicômio,
Triste e desorientado.

Depois de muito tempo!
A insanidade acabou...
Voltei a racionar.
E a saber quem eu sou,

Hoje já não me preocupo.
Por ser um pobre coitado.
Pois sei que não mais a amo,
E também não sou amado.
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QUANDO AFAGO TEUS CABELOS

Quando afago teus cabelos
Faço isto a sorrir.
Quando beijo tua boca,
Penso logo no porvir.

Pois vejo este porvir
Com muita realidade,
Sinto só ter alegria,
E nem um pouco de saudade.

Pois o nosso amor é lindo,
E cheio de esperança.
Quando estou perto de ti,
Vejo-te como criança.

Mas, uma criança grande,
E repleta de carinho
E também cheia de sonhos,
Envolvendo o meu destino.
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TEMPESTADE
A tempestade destruiu...
A minha única esperança,
Pois ainda tinha de ti vaga lembrança.
Dos belos momentos por nós dois vividos.

Hoje ficou tudo destruído!
Por saber que no teu insensível coração,
Trocas-te o amor por uma paixão,
Onde me trouxe tristeza e desilusão.

Hoje apesar dos tempos,
É que eu pude entender,
Que a nossa separação,
Esta falta de amor
Esta falta de carinho por ti gerada!
É que eu já não era mais a pessoa amada.
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VIBRAVA COM LOUCURA

Ela que amo há muitos anos!
Foi o meu primeiro amor,
Como era linda e toda encantamento...
E sussurrava aos meus ouvidos,
Palavras de amor,

Porque partiu ainda não sei...
Apesar do tempo já passado!
Nunca mais pode saber,
Da mulher que foi sempre o meu agrado,

Seu beijo era diferente tinha outro sabor.
Quando me beijava, era com loucura,
E enlouquecida vibrava no amor!

Fonte:
Poemas enviados pelo poeta.

Olivaldo Júnior (O Pequeno Rio)


Conheci-o muito, muito pequeno. A bem da verdade, tanto ele, o rio, quanto eu, este à-toa, éramos muito, muito pequenos. E, em nossa pequenez, pequeneávamos pela vida, grande, tão grande quanto o mar, destino de um rio.

À margem do rio, do pequeno rio de minha infância, a mata ciliar cobria os olhinhos dele de muito verde, esperança viva de ver de perto o que o mundo tem: casa, gente, bicho, planta e céu, muito céu sobre o rio, o mar.

Nós, o rio e eu, sabíamos que a vida passa como passa um pássaro, sem pouso fixo na mão da gente, no olhar do bicho, no pé da planta, no céu da casa e no cais do céu. A vida é um canarinho, um vão pardal voando livre.

Livre, de manhãzinha, cruzava o rio, o pequeno rio, com meus barquinhos. Tinha-os feito à tarde outra, ao chegar da escola. Eram iguais às caravelas!... Não descobririam o Brasil, mas um país de peixes, um estado novo, a pesca.

Caindo o dia, ribeira azul, o pequeno rio e este velho amigo, crianças, contaríamos um ao outro o que vimos daquele dia, das barcarolas, das canoinhas, sem nada, quase nada de histórias. Assim, inventaríamos tudo. Tão bom!...

O rio, sem saber do mar, e eu, sem saber do mal, fomos crescendo juntos, envelhecendo as mágoas que, desde a foz, trazíamos todas, como marcas d'água nessa limpidez, nessa face fria que é só disfarce em nós. Tempo: mágoa.

A bem da verdade, tanto ele, o rio, quanto eu, este à-toa, inda somos muito, muito pequenos. E, em nossa pequenez, pequeneamos pela vida, grande, tão grande quanto o lar, destino de um filho, dois filhos do Pai: o mar.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 241


Fernando Sabino (A Última Crônica)


A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num incidente doméstico, tomo-me simples  espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e  tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu queria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem  assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.

Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acentuar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando  para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês.  O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.
       
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de coca-cola e o pratinho que o garçom deixou à sua  frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa a um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a coca-cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as  chamas.

Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num  balbucio, a que os pais se juntam, discretos: parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura -  ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. De súbito, dá comigo a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se  perturba,  constrangido -  vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu queria a minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

Fonte:
Fernando Sabino. A Companheira de Viagem. RJ: Editora Sabiá, 1972.

I Jogos Florais do Equador (Aviso a Trovadores/as Premiados/as)


Prezados/as Trovadores/as:

Os I JOGOS FLORAIS DO EQUADOR, em virtude da crise que causou a pandemia do novo coronavírus terão adiamento do evento até novo aviso.

Quando for possível realizar os I Jogos Florais do Equador, os interessados serão avisados com três meses de antecedência para que os que desejam assistir possam fazer os arranjos convenientes.

Àqueles que puderem assistir serão dados pessoalmente os seus diplomas e certificados. Aos que não puderem assistir serão enviados por via eletrônica. Sempre lembrando que serão avisados três meses de antecedência, por isso, entende-se que os certificados não serão enviados antes do mencionado.

Fonte:
Maria Luiza Walendowski
Coordenadora


quarta-feira, 15 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 240


Célio Simões de Souza (No Portão do Cemitério)


Recordo com saudade a fase da minha juventude nos anos sessenta, “Anos Dourados” nos quais atravessei o breve reinado da puberdade, todo ele vivida no mundo telúrico e cambiante do interior amazônico. Os namoros obedeciam a certas convenções, ditadas pelos recatados costumes da época. Começava com uma troca de olhares lânguidos e inebriados, fazendo o coração acelerar. Um incômodo gostoso nas entranhas evoluía para o indefectível bilhetinho, conduzido por mãos amigas, com a já esperada pergunta: "Quer namorar comigo?"

A expectativa de um “fora” fazia o tempo transformar-se em lesma deslizando sobre a nossa inquietude, enquanto a resposta não vinha. Para minimizar a angústia, devotávamo-nos ao doce lirismo das madrugadas, dialogando com a lua em pungentes serestas, cujo repertório de lindas canções tinha secreto endereço, dizendo à amada que havia mais um apaixonado na cidade.

Um aceno positivo, por mais discreto que fosse, era o prenúncio de um encontro, geralmente na pracinha ao anoitecer, onde fotos trocavam de mãos como se fosse um documento de cartório, firmando tacitamente o início da paquera.

Outra praxe era a estudada indiferença da moça, incrementando o suspense e eletrizando o clima, com o fim de valorizar a relação que mal se iniciava, contribuindo para aumentar em doses quase insuportáveis a paixão do rapaz.

Conquistado o coração, seguia-se o primeiro contato corporal. O simples toque de mão cercava-se de uma solenidade daquelas só vistas em certos rituais tribais, a têmpora pulsando pela repressão de desejos ocultos, mãos trêmulas entrelaçadas sinalizando primícias de um amor sem fim para quem quisesse ver.

Daí que os pombinhos já podiam dançar de rosto colado nos salões da cidade, ousadia balizada de perto pelo viver especulativo das famílias locais. Época de desejos reprimidos, o primeiro beijo só acontecia após driblada a vigilância paterna, assim de repente, sem aviso prévio, espertamente roubado.

José de Alencar, em “Senhora”, publicado em 1874, descreve uma cena que bem poderia, guardadas as proporções, servir às convenções sociais do meu tempo, quando o assunto era os namoricos, urdidos nos bailes realizados indiferentes à feérica iluminação dos salões: “Esse enlevo inocente da dança, entrega a mulher palpitante, inebriada, às tentações do cavalheiro, delicado, mas homem, que ela sem querer está provocando com o casto requebro do seu talhe”. Tudo era paixão à flor da pele, na eclosão biológica dos seres que percorriam ainda hesitantes os caminhos de Eros, como referiu Ildefonso Guimarães em “Sombras do Entardecer”.

O drama dos dramas era o fim do namoro de forma unilateral. A preterida se debulhava em lágrimas, ao som de melosas canções estilo dor de cotovelo. Se fosse ele o defenestrado, vinham os pileques sem conta, traduzindo a profunda angústia de um coração sangrando. Devolviam-se as fotos, rasgavam-se os bilhetes e quando a raiva aflorava incontrolável vencida pela enormidade da inconformação, o fogo, tão intenso e crepitante quanto aquele que acendeu a própria paixão, reduzia a pó os vestígios materiais do frustrado idílio. 

Havia - claro! - exceções a esse comportamento, protagonizado entre casais que eliminando etapas, buscavam antes da hora a satisfação da volúpia que vinha à tona ao menor estímulo. Nada de bilhetinhos, de encontros na pracinha, de dança com o rosto colado, da expectativa pelo primeiro beijo. A coisa era “na vera”, com a aberta intenção de deixar agir os impulsos da idade, desde que contornado o principal obstáculo. Em que lugar? Como compatibilizar prazer e conforto, em uma cidade àquela época carente de um ambiente propício para aventuras amorosas?

De trivial, a rapaziada contava mesmo era com a providencial ajuda dos dois motores a diesel da usina de luz, que exaustos de servidão, habitualmente falhavam, mergulhando tudo no mais impenetrável negrume (algumas vezes, disque de caso pensado); com as penumbrosas encostas do Forte Velho; com o soturno matagal que beirava o Lago Pauxis ou o adro da Capela do Bom Jesus, onde depois do referver de fiéis nas novenas na entrada da noite, não restava vestígio de alma viva.

Mas alguém teve uma ideia de jerico. Não havia quietude maior do que a reinante no cemitério São João Batista, implantado por volta de 1885, nos limites da cidade, próximo ao Lago Geretepaua e contíguo ao Covão da “Ribite” (monumental voçoroca assim batizada em alusão ao apelido da conhecida feiticeira Laurentina, que ali vivia em seu tosco muquifo, figura soturna que infundia justificado terror a todos por suas pautas com o “chifrudo”, temida e evitada pelos efeitos deletérios de seu mau olhado), onde os túmulos mais altos impediam a visão externa, tentador convite aos casais mais afoitos, embora em lugar tão digno de respeito. Quem, no seu bom senso, iria suspeitar?

Depois de muito se repetir, essa prática pouco ortodoxa vazou e um dia a delegacia foi invadida por um grupo de pudicas e indignadas senhoras, que invocando os princípios da moral e dos bons costumes, denunciaram:

- Seu Lalôr, tem gente fazendo indecência no cemitério. E é de madrugada...

- Como é que é?...

- Pois é delegado, emendou dona Zefa. O Mundico foi ontem para o porto bicorar a chegada do navio, passou rente ao muro e escutou todo o estrupício. Pensou que era alma penada pedindo reza, foi espiar e viu tudo. O mais puro acesume, seu Lalôr, os dois sem-vergonha no pior disconforme, fazendo o que o senhor já sabe...

E rematou, inundando a mente do delegado com o vírus da provocação:

- A verdade é que tão nesse desabuso todo tempo e isso nós não podemos admitir. É mais uma afronta que o povo presenseia sem que a polícia nada faça! Coisa de herege seu delegado. Exigimos uma providência e já!

O velho policial, procurando disfarçar o constrangimento, arriscou:

- Pois pode deixar comigo. Acabo com essa patifaria e prendo quem está fazendo isso, seja ele quem for!

Já de saída, dona Elza do João Modesto, conhecida pela intolerância, que tinha sob sua responsabilidade as aulas de catecismo da paróquia preparando a molecada para a vida cristã, com um sorriso postiço e falso falou baixo com as outras, porém modulando o tom o suficiente para o delegado ouvir:

- Prende nada... Esse unzinho só tem moral com bêbado!

Seu Lalôr, caboclo invocado da Costa do Imperial, a modo que tomado por surda ataxia pelo impiedoso xaveco, ficou teso de raiva, mas a muito custo conseguiu se controlar. Velha f.d.p... pensou. A última coisa que queria fazer era deixar o aconchego do seu lar para vigiar a desoras casal de namorado, homem de hábitos morigerados que era, ainda mais na quadra invernosa, quando as chuvas atravessam a noite até de manhã. Mas teria que impor sua autoridade e mostrar serviço, quando mais não seja, para mitigar a ira das zelosas senhoras e no dia seguinte procurou o comandante do destacamento da Polícia Militar, para traçar uma estratégia de ação.

Na dita reunião, ficou pactuado que o cabo Jaime, um sujeito alto, parrudo e com fama de brabo, faria uma campana no fim de semana para flagrar os descarados. Na sexta-feira, virando para sábado, lá chegou o miliciano armado e municiado, preparando-se para uma noitada de penitências, pois na centenária necrópole não havia sequer onde se abrigar do aguaceiro que começava a cair. Mas intimamente ardia de vontade de dar um flagra em algum casal socialmente importante, conduzi-los sob vara para a delegacia, submetê-los a vexame público.  

Para sua frustração, nessa noite ninguém apareceu para fazer indecência. E nos albores do dia seguinte, faminto e sonolento, coturnos encharcados de lama, o corpanzil hirto de umidade que a capa de plástico e o quepe não conseguiam evitar, vislumbrou o cabo na dormência do amanhecer a aproximação do padeiro Vivaldo, assoviando “Coração de Papel”, sucesso da Jovem Guarda - que às cinco da manhã percorria o centro urbano para vender o pão ainda quente, que ele transportava nos ombros acondicionados num enorme cesto de vime, cujas alças feitas de cordéis de sisal ele enlaçava nos pulsos para sustentar todo aquele peso, permitindo-lhe uma pegada mais firme. Ah! O cheirinho convidativo daquele maná despertou o instinto gustativo do veterano soldado, que decidido a saciar a fome ali mesmo ergueu-se do túmulo em que estava sentado, pedindo ao entregador quando ele chegou rente ao portão, com sua conhecida voz anasalada:

- Padeiro, me vende um pão!... Disse e esticou o braço oferecendo o dinheiro ao vendedor, mantendo o outro também retesado para receber o alimento.

    Ah coitado! Vendo à meia-luz aquele enorme vulto erguer-se do sarcófago em sua direção como se fosse agarrá-lo, o Vivaldo deu um berro medonho que acordou as guaribas do Lago Geretepaua e fez a feiticeira “Ribite” recitar de joelhos o Pai Nosso pela primeira vez na vida, desembestando espavorido ladeira abaixo, clamando em desespero para que a “visagem” o soltasse, sem notar que ainda estava preso nas alças do cesto - agora rebocado aos trancos - no qual ele trazia todo dia para seus fregueses os deliciosos pães da “Padaria Careca”.

Fonte:
Conto enviado pelo autor, integrante de seu livro: Recados da Memória. Editora Smith, 2017, pg. 11 – 16.

J. G. de Araújo Jorge (O Canto da Terra) 7


IMORTALIDADE
   (A Joaquim Ribeiro)
  
 E a pedra veio rolando da montanha para o lago...

Depois as ondas foram crescendo,
crescendo e diminuindo
até que morreram na imobilidade
da água que parou dentro de si mesma...

Eu vi no espelho do lago a face do Tempo...

Vi homens caindo como pedras
e ouvi ruído de quedas!

E compreendi, olhando os círculos que se formaram
e se apagaram,
a efêmera ilusão dos homens e das pedras
que imaginam deixar sobre a face das águas
ondulações eternas, que se ampliam...
.................................................

Pedra que vem rolando e para o fundo vai,
eu sei bem que só existe uma imortalidade:
a da face que ri
quando uma pedra cai!...
****************************************

LIBERDADE
( A Galdino do Vale Filho)
  
A liberdade é o meu clarim de guerra
e eu sou, no meu viver amplo e sem véus,
- como os caminhos soltos pela terra!
- como os pássaros livres pelos céus.

Ela é o sol dos caminhos ! Ela é o ar
que os enche os pulmões! É o movimento!
Traz num corpo irrequieto como o mar
uma alma errante e boêmia como o vento !

Minha crença, meu Deus, minha bandeira !
Razão mesma de ser do meu destino !
- Há de ser a palavra derradeira
que há de aflorar-me aos lábios como um hino !

Liberdade ! Alavanca de montanhas !
Aureolada de louros ou de espinhos
há de cingir-me a fronte nas campanhas!
- há de ferir-me os pés pelos caminhos!

Sinto-a viva em meu sangue palpitando
seja utopia ou seja ideal, - que importa?
- quero viver por esse ideal lutando !
- quero morrer, - se essa utopia é morta!
****************************************

MAQUIS

(Aos que ontem, e aos que hoje ainda, na França, ou em qualquer parte do mundo lutam contra as mais diversas formas de opressão)

Quando a morte chegou com seu hálito ardente
secando a terra, e enchendo a terra de terror
no recesso dos chãos, vigilante e impotente,
enterraste contigo o teu ódio criador!

Lá em cima, era o inimigo... o bárbaro invasor...
a massacrar teu pouco impiedosamente!
E tu, vivo, a sofrer, como a raiz que sente
o golpe que mutila  e mata a flor!

A flor da liberdade em mil golpes ferida
renascendo ao milagre da força e da vida
e a se multiplicar, - primavera de horror!

Desafiando imortal a fúria e a prepotência
a ensanguentar, florindo, os chãos da "resistência"
do "humus" do ódio gerando as árvores do amor!
****************************************

MEDALHAS

Foi só quando ele voltou que procurou trocar as medalhas que recebera...
Ele julgava, ( na sua infinita crença e na sua infinita ingenuidade)
- que aquelas medalhas poderiam ser trocadas
por proteção e segurança para seus filhos
por pão e liberdade...

Foi só quando ele voltou, que compreendeu o engano de sua crença,
(ele que vinha sujo de sangue das profundezas do abismo!)
- porque se lembrou de perguntar se aquelas medalhas
fundidas ao calor e ao fogo das batalhas
teriam curso de paz,
e valeria a sua luta - a sua coragem, o seu heroísmo.

Reduzido à impotência, sem armas, sem trincheiras, e batalhas
sem estratégias e inimigo,
sem um companheiro no caminho,
- ele se viu sozinho,
e se sentiu sozinho...

E então, sim, compreendeu que devia começar
a sua verdadeira luta
a sua verdadeira guerra,
pelos seus filhos, pelo trabalho, pela sua terra!…
****************************************

MENSAGEM NO DIA DE NATAL
              (A Raul Brandão)

I

Eu não penso nos heróis...

Eu não penso nos heróis, cujos nomes ficarão perpetuados
na História;
eu não penso nos heróis que ficarão como restos mutilados
das batalhas
e receberão medalhas
cobertos de glória;
eu não penso nos soldados que tiveram gestos ousados
e desprendidos,
e posaram anônimos para as futuras estátuas dos soldados
desconhecidos...

Eu penso é na juventude que se apaga como um meteoro
dentro da noite;
nos sábios do futuro que ficaram com os olhos vidrados e inertes,
e que não pensarão mais;
nos futuros artistas, que caíram de bruços com o coração na terra
e encontraram a paz;
penso neles, - os sábios, os cientistas, os escritores,
os artistas, os trabalhadores,
que nada mais criarão e nada mais farão
pela Civilização!

Eu penso é na dívida insolúvel e cada vez maior
de todas as guerras,
contra o progresso dos povos
contra a grandeza das terras!

II
Eu não ouço clarim...

Eu não ouço os clarins frenéticos, nem toques de vitória
pelos espaços;
eu não ouço os hinos marciais ou o rufar dos tambores
de roufenhos compassos;
eu não ouço os burras! os vivas! e as salvas das partidas
nem a algazarra das ruas trepidantes e em festa,
onde os soldados marchando - são como os rios que passam
numa calma triunfal
e as multidões assistindo - são como imensa floresta
gesticulando os seus galhos sob um vendaval!

Eu ouço, são os gemidos de todos os que caíram e ficaram abandonados
à própria sorte
e à espera da morte;
e o choro das crianças desprotegidas
que fugiram espavoridas,
sem rumo,
e dormirão no berço que as bombas abriram na terra
entre nuvens de fumo;
e os gritos de desespero das mães que mandaram os filhos à guerra
e que veem morrer os que ficaram;
eu ouço, é essa orquestração wagnérica, descomunal,
dos instrumentos humanos que a um só tempo vibraram
na sinfonia da dor universal!

III
Eu não vejo as ruas embandeiradas...

Eu não vejo as ruas embandeiradas, nem as fardas vistosas,
e os instrumentos brilhantes
passando,
nem as janelas cheias, e as varandas cheias, e as calçadas cheias,
e as flores que mãos nervosas estão jogando;
e os olhos que estão brilhando, e os risos que estão cantando,
e os entusiasmos, e as alegrias, e os cívicos escarcéus,
e as bandeiras cheias de vento que se desfraldam nos céus . . .

Eu não vejo e não leio as manchetes enormes dos jornais
que são as letras de um hino que a multidão entoa
esquecida da paz...

Eu vejo é a terra devastada, os céus turvos, retintos,
e os homens descompostos que ficaram com as vísceras à mostra
e servirão de pasto aos abutres famintos;
e os hospitais arrasados, e as escolas destruídas,
e as pontes desconjuntadas, e as estradas interrompidas,
e os corpos inocentes das crianças espalhados no chão
criminosamente,
como brotos arrancados à passagem de um tufão
inconsciente!

IV
Em verdade...

Em verdade eu não vejo as partidas entusiastas e as chegadas vitoriosas
vejo é a derrota irremediável de todos os que não voltaram
e a surpresa maior dos que se julgaram vencedores,
e atônitos e assombrados
entre escombros e horrores
descobriram que também foram derrotados!

Em verdade
eu não penso na Glória, penso na Humanidade!

E não ouço a letra dos hinos que vibram notas marciais...
Neste dia de Natal oh! companheiros do mundo! oh! companheiros cristãos!
Eu ouço é aquela voz que atravessou os séculos num grito fraternal
de paz:
- "Amai-vos uns aos outros! Sede irmãos!”

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. O Canto da Terra. 1945.

Malba Tahan (Uma Lenda de Krishnamurti)


Muitos propósitos há no coração do homem, porém o conselho de Deus permanecerá.
Davi, Salmos, 19-91.


O rapaz pálido, com uma túnica andrajosa, que se achava ao meu lado, passou a mão pela testa e, voltando-se para Krishnamurti, assim falou em tom calmo e respeitoso:

— Mestre! Uma dúvida veio refugiar-se em meu coração. Sinto em mim um feixe de espinhos que me torturam...

— Qual é essa dúvida, meu filho? — volveu o Iluminado, cruzando os braços e erguendo os olhos para a imensidade do céu.

— Senhor! — respondeu o jovem da túnica andrajosa. — A minha dúvida está ligada a delicado problema da vida: quem tem mais amor, ou mais apego, aos bens materiais, os ricos ou os pobres? Onde apontar os mais afeiçoados às suas fazendas ou os mais agarrados aos seus trastes? Terá o mendigo mais aferrado aos seus andrajos do que o milionário às suas baixelas de ouro?

O sábio e judicioso Krishnamurti não respondeu. Baixou o rosto sereno, de linhas impecáveis, e ficou um instante a meditar. Decorridos alguns minutos, voltou-se para o discípulo que o arguira e disse:

— Não me acho, no momento, com ânimo para discorrer sobre esse problema, cuja delicadeza transcende nossa imaginação. Mas, como não seria oportuno deixar sem resposta a tua pergunta, vou contar-te uma lenda do país de Girkka. Queres ouvi-la, meu filho?

— Sim, sim — acudiu pressuroso o jovem, com um sorriso de júbilo e pueril sinceridade. — Ouviremos com encantamento a tua lenda, ó mestre, pois as tuas palavras são sempre cheias de preciosos e ternos ensinamentos!

Krishnamurti, o venerável, com voz pausada e firme, em linguagem desnuda e clara, narrou o seguinte:

Para além do país de Girkka, na Índia, entre escarpadas montanhas, vivia, há muitos anos, virtuoso anacoreta, grandemente venerado, de nome Timanak. Os dias desse bom guru, ou melhor, desse santo varão, eram consagrados à prece e à meditação. Numerosos fiéis, escalando as pedras, iam, uma vez por semana, visitá-lo na gruta úmida e triste que ele tornara famosa com sua vida modelar de penitências e sacrifícios. Budistas fanáticos, vindos de remotos climas, traziam-lhe ricos presentes e cestos com saborosos manjares.

O santo de Girkka, porém, com palavras admiráveis, recusava os presentes e devolvia as dádivas mais preciosas. Os acepipes, que faziam as delícias dos gulosos, não o atraíam. Contentava-se com um punhado de arroz branco e meia medida de ervilhas secas. Sua vida de expiação era pautada por extrema abstinência e desprendimento. Cobria a nudez do corpo magro apenas com uma tanga. Tinha, além disso, outra tanga, que usava quando se via obrigado a lavar e purificar a primeira.

Ora, esse virtuoso eremita das duas tangas ouviu, certa vez, contar que vivia em Dakka, a cidade dos 107 templos, o douto Sindagg Nagor, filósofo de renome, que conhecia a Verdade.

“Vou procurar esse homem”, refletiu o ermitão. “Quero conhecer a Verdade. Que pretendo, afinal, na vida, senão descobrir a Verdade e desfazer o Mistério?”

E, deixando a gruta que lhe servia de morada, venceu as ladeirentas estradas e encaminhou-se para a opulenta cidade de Dakka. Vestia, como sempre, a sua tanga amarelada e trazia no braço esquerdo, como troféu precioso, a outra tanga — direi assim —, a tanga sobressalente.

Viajantes e peregrinos budistas que o avistavam ao longo dos caminhos paravam para saudá-lo. Acercavam-se dele e, respeitosos, de joelho na terra, solicitavam um conselho ou imploravam a bênção.

Chegou, finalmente, Timanak, o piedoso, à fervilhante capital. Indiferente aos homens que se acotovelavam pelas praças e aos ricos mercadores que cruzavam as ruas com seus utensílios e baixelas, procurou avistar o brâmane filósofo que desejava conhecer.

Que grande surpresa para o penitente de Girkka! O sábio, deslumbramento da fé budista, mestre entre os mestres, não residia numa choupana, nem se escondia entre pedras. Habitava, ao contrário, suntuoso palácio, junto a um lago em que se espanejavam soberbos cisnes brancos. Levado por um guia, entrou o penitente na senhoril mansão. Pelo chão, que os pés mortificados de Timanak pisavam, estendiam-se tapetes riquíssimos; viam-se, pelos cantos, ou junto às colunas de mármore, jarros transbordantes de flores; oscilavam do teto, presos por correntes de prata, pesados candelabros de cristal. Tudo ali faiscava majestosa beleza e otimismo.

— Que desejas de mim, meu irmão? — indagou o sábio Sindagg Nagor, acolhendo bondoso o desnudo visitante. — Em que poderei servir-te?

Falava com tranquila segurança. Tinha a pele clara e era cheio, pesado, grisalho.

Esmagado pela pompa, ofuscado pelo luxo que o rodeava, sentiu-se o eremita confuso e perturbado. Dominou-se e disse com não pequeno embaraço, tentando um sorriso irônico:

— A fama do vosso incomparável saber chegou até a gruta obscura em que sempre vivi. Deliberei abandonar o meu refúgio e vim até aqui, desejoso de ouvir os vossos ensinamentos. Sinto-me, porém, constrangido. Como permanecer no meio de tanta riqueza? Aqueles que vivem em vossa companhia, e que residem neste magnífico palácio, envergam trajes soberbos, ao passo que eu resguardo a nudez de meu corpo, roído de chagas, com este pequeno retalho. Além da mísera tanga que visto, tenho apenas esta outra tanga sobressalente que trago sob o braço. Na seminudez em que vivo, não posso inclinar-me entre os vossos discípulos sem causar escândalo ou pisotear suscetibilidades.

— Estás profundamente equivocado, meu irmão — tornou o sábio, sem a menor ostentação e com a maior naturalidade. — Os trajes que cobrem o corpo não medem o valor do homem. A mim, na verdade, não me interessa saber se tens duas, três, vinte ou duzentas mil tangas. Que adianta ao homem vestir-se de sedas e ter a alma nua de virtudes e de predicados? Interessa-me, tão somente, as roupagens do espírito e não os vestidos e bordados que cobrem a matéria. Não te preocupes, pois, com os trajes, nem com o luxo dos que te cercam. Cuida de cultivar a tua alma e enriquecê-la. Se queres permanecer neste palácio, aqui ficarás com toda a honra e deferência que mereces. Durante a tua estada conversaremos sobre os assuntos que mais te interessam. Limitado, bem limitado, é o meu saber, mas imenso e constante é o meu desejo de servir; tudo farei, portanto, em teu auxílio. Com os minguados dons de minha inteligência, tentarei esclarecer as tuas dúvidas e vencer as tuas inquietações e incertezas.

Sequioso por aprender a Verdade, aquiesceu o ermitão ao convite do sábio e passou a figurar entre os hóspedes de honra do grande palácio. Longas horas entretinha-se em palestras com o rico filósofo, e desse brâmane ouvia notáveis e edificantes ensinamentos.

Uma tarde, ao luzir das primeiras estrelas, como faziam, aliás, quase todos os dias, partiram os dois amigos — o guru e o filósofo — a passear por atraente bosque que perto verdejava. Deambulavam sossegados entre as árvores, por pequeno caminho de bom piso, quando os surpreendeu estranho ruído. Parecia um bando de elefantes, em marcha, esmagando os galhos secos sobre um tablado.

Que seria?

A observação e a experiência levam os homens mais depressa à descoberta da Verdade do que as divagações incertas e as conjeturas vãs. Sugeriu, pois, o supersapiente hindu ao seu companheiro de Girkka:

— Indaguemos do que se trata. Algo de anormal ocorre na região que nos cerca.

Com passo normal e certo, sem mostras de impaciência, encaminharam-se para a estrada. E viram, com indefinível espanto, boquiabertos, um espetáculo pavoroso. Todo o vetusto palácio do eloquente Sindagg era presa das chamas. Colunas de fumo, levadas pelo vento, subiam negras para o céu, e o fogo, na sua faina destruidora, retorcia suas espirais vermelhas, devorando, como um chacal faminto, a pomposa residência.

Sindagg Nagor, o filósofo, ao perceber a extensão da calamidade, não teve um gesto de revolta ou desapontamento; cruzou serenamente os braços e olhou para o céu já avermelhado, não pelo crepúsculo, mas pelos clarões sinistros do incêndio. Dentro de alguns instantes, todos os seus tesouros estariam reduzidos a cinzas, ruínas fumegantes e escombros disformes.

O eremita Timanak, porém, não imitou em quietude e sossego a atitude de seu mestre. Longe disso. Depois de dardejar, em redor, olhares aflitos, atirou-se ao chão e pôs-se a rolar como um demente e a praguejar como um pária, com toda a expansão de uma dor represada:

— Que desgraça, senhor! Que desgraça! Tudo perdido!

E lamentava entre uivos e imprecações:

— Tudo perdido!

Ao presenciar o desespero do discípulo, o venerável Sindagg acudiu-o solícito e procurou erguê-lo do chão. Segurou-o pelo braço e proferiu com desusada energia:

— Domina-te, meu irmão, domina-te! “Muitos propósitos há no coração do homem, mas o conselho de Deus permanecerá!” Não te preocupes com o desastre. Errado procede aquele que se aflige e sofre diante do irremediável. Recebe com serenidade os decretos inapeláveis do destino. O palácio que ali vês, presa das chamas, é meu; todas as riquezas — tapetes, alfaias, móveis e joias — que nele se achavam eram de minha exclusiva propriedade. E, como vês, estou absolutamente calmo e indiferente; a perda dos bens materiais não chega sequer a perturbar, de leve, a serenidade de meu espírito!

A tais palavras retorquiu, com exasperação e sinistra riqueza, o guru de Girkka:

— Que me importa a mim o vosso palácio? Não me interessam tampouco as vossas alfaias ridículas e os vossos inúteis tapetes! Que leve tudo o fogo o mais depressa possível!

— E por que te mostras, assim, tão apoquentado? — estranhou, bondoso, o filósofo. — Não vejo, então, motivo para o teu desespero!

— A minha tanga! — deplorou, entre soluços, o santo, em novo assomo de ira. — A minha tanga sobressalente! Esqueci-me de trazê-la, hoje, quando saí a passeio. Perdi a minha tanga no incêndio!

E desatou em pranto, batendo, sem cessar, com a cabeça no chão. Para a dor que o afligia, não havia lenitivo no mundo. O infeliz perdera a sua tanga sobressalente!...

Calou-se Krishnamurti, o mestre admirável. O rapaz da túnica andrajosa ergueu-se. E, sem proferir palavra, retirou-se da larga varanda.

O Sol, tocando de leve a linha do horizonte, espargia pelo céu, tão martelado de nuvens, as cores avermelhadas do crepúsculo.

Fonte:
Malba Tahan. Novas Lendas Orientais.

terça-feira, 14 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 239


Ruth Guimarães (A mulher que queria ser imortal)


Em certa cidade havia, há muitos e muitos anos, uma velha e rica senhora que, atacada de estranha loucura, queria se tornar imortal. Quanto mais envelhecia, mais se apossava dela o medo da morte. Rezava todos os dias e todas as noites, pacientemente, e tanto pediu a Deus que lhe concedesse a graça de não morrer que acabou conseguindo mais ou menos o que queria.

Conseguiu-o para seu mal, como se viu mais tarde.

O caso foi que um dia sonhou que um anjo de asas cintilantes descia do céu. Ela se encolheu assustada, e, ao mesmo tempo, esperançosa. Seu quarto havia se enchido de uma radiante claridade, como se de repente se tivesse transformado numa opala gigantesca brilhando ao sol. E quando o anjo falou, todas as coisas que faziam algum rumor, dentro da noite, os grilos, as aves noturnas, os carros, as pessoas que passavam falando alto ou assobiando, tudo se calou, tomado de espanto, tudo ficou escutando a mensagem do céu.

E o anjo falou:

- O senhor Deus ouviu teus rogos. Ele manda te dizer que faças construir uma igreja. Durarás tanto quanto durar essa igreja.

Disse e desapareceu.

A velha senhora acordou sobressaltada, e nem pôde mais dormir o resto da noite, de tanta impaciência. Mal o sol espiou o quarto, pelas frestas da janela, a velha se levantou e saiu. Todos a viram muito ativa o dia todo, dando ordens, arranjando empregados, indo daqui para ali, à procura de arquitetos. À tarde, soube-se que ela havia mandado construir uma igreja de pedra.

– Para que uma igreja de pedra? – perguntavam, estranhando, pois as igrejas da cidade eram de tijolo e cal, e duravam bastante, apesar disso.

E ninguém sabia dar resposta.

O espanto da gente que habitava a cidade cresceu, quando se soube que aquela velhota maluca, em vez de ficar em casa, calmamente, recostada em gostosa cadeira de balanço, contando histórias ao netinhos, ia todos os dias fiscalizar a construção da igreja, incitando os pedreiros, aos gritos:

- Andem depressa com isso. Quero ver a igreja pronta, senão morro.

Os pedreiros abriam a boca, pasmados, sem entender patavina daquele mistério.

No dia em que a igreja ficou terminada, a velha senhora deu uma festa e viram-na brincar e rir, como se fosse uma menina. E desde então ela ria muito, seguidamente, e passava com um orgulhoso ar de posse, diante da igreja de pedra, magnífica e quase eterna: a sua vida de pedra.

Os anos foram se passando, morreram todos os velhos do lugar, e só ela permanecia firme. Quando lhe vinham contar a morte de alguém, ela casquinava um risinho assim: "Oh! Oh! Eh! Eh! Eh!", como se dissesse para si mesma: "Comigo isso não acontecerá".

Com o tempo, sua família foi se extinguindo. Morreram-lhe os filhos, os netos, os bisnetos e os netos de seus bisnetos. Ela foi ficando sozinha no enorme palácio vazio, velha, velha, enrugada, estranha, irreconhecível. Não tinha mais com quem falar, pois morreram todos os seus conhecidos. E os moços, cujo espanto não tinha limites diante daquela velhinha infinita, não queriam saber de prosa com ela e tinham até medo de vê-la. A mulher já não contava os anos um por um. Contava por séculos. Fez trezentos, quatrocentos anos e depois passou a ter cinco, seis, sete séculos. Então começou a desejar e a pedir a morte, espantada com sua medonha solidão.

Porém a sentença de Deus estava dada: "Duraria quanto durasse a igreja de pedra".

Logo se espalhou pela cidade que a velha senhora tinha arranjado outra mania. Sentava-se à porta do seu belo palácio, e perguntava aos que passavam:

- A igreja de pedra caiu?

- Não, minha senhora – respondiam eles, admirados. – Não cairá tão cedo.

E ela suspirava:

- Ah! Meu Deus!

Passavam-se os anos, e ela perguntava cada vez mais ansiosa:

- Quando cairá a igreja de pedra?

- Oh, minha senhora, quem pode saber quanto tempo durarão as pedras uma sobre as outras?

E todos tinham muita raiva e muito medo dela, pois fazia tais perguntas, além de cometer o desaforo de não morrer.

A velha senhora foi, por fim, à casa do padre, contou-lhe tudo e pediu que a deixasse ficar num caixão, dentro da igreja, esperando a morte.

Dizem que está ali até agora, e reza sem parar, todos os minutos de todos os dias, pedindo a Deus que a igreja caia.

Fonte:
Ruth Guimarães (org.). Lendas e fábulas do Brasil. 1964.

Luiz Damo (Trovas do Sul) VII


A carta torna presente
na forma de comentário,
algo do seu remetente
nas mãos do destinatário.
- - - - - –

A educação nunca morre,
tal uma flor no jardim,
o seu perfume decorre
de permanecer assim.
- - - - - –

Águas turvas vão correndo
no riacho agonizante,
lentamente estão morrendo
sem chegar ao mar distante.
- - - - - –

A noite nos presenteia
com o brilho do luar,
do céu toda a luz semeia
para a terra iluminar.
- - - - - –

A terra clama indulgente
sob grande devastação
e exige controle urgente
pra evitar a perdição.
- - - - - –

Cada dia que amanhece
surge um elo na corrente,
com trabalho tudo cresce
nada acaba inconsequente.
- - - - - –

Do alto do tenro raminho
descuidado veio ao chão,
chorou por cair do ninho
o passarinho fujão.
- - - - - –

Há quem pare no caminho
à espera de uma carona,
tal a ave fora do ninho
ambiciosa e "folgadona".
- - - - - –

Já não vemos tantas matas
nem nelas águas serenas,
se ontem haviam cascatas,
hoje, lembranças apenas.
- - - - - –

Liderar com dinamismo
mesmo na pluralidade,
exige muito otimismo
e profunda austeridade.
- - - - - –

Não deixe morrer o sonho,
mas faça-o sempre florir,
seu porvir será risonho
quanto mais puder sorrir.
- - - - - –

Não mates tua saúde;
sendo à vida o dom maior,
sem drogas e em plenitude,
teu viver será melhor.
- - - - - –

Não se assuste com o avanço
que a doença tem causado,
se a morte for um descanso,
seu sonho é viver cansado.
- - - - - –

Nesta terra tem videiras,
que produzem um bom vinho,
vinho farto das torneiras
para as taças com carinho.
- - - - - –

Nos caminhos da existência
transpomos altas montanhas,
para buscar sua essência
escondida nas entranhas.
- - - - - –

O afoito passa, e sedento,
não deixa vestígio algum,
raramente fica atento
pois, vai pra lugar nenhum.
- - - - - –

O ciclo da vida ocorre
independente de cor,
tudo nasce, cresce e morre,
como o faz a meiga flor.
- - - - - –

O escritor semeia em linhas,
nas letras traça a cultura,
das palavras, sementinhas
e da escrita a semeadura.
- - - - - –

O medo se mostra estranho,
ao ser somente ansiedade.
Nenhum medo tem tamanho,
muito menos quantidade.
- - - - - –

Ontem, nas matas estavam,
mil canários e outros mais,
hoje, apenas uns restaram
registrados nos anais.
- - - - - –

O que todo o ser procura,
é mais vida, sem chorar
e o que o remédio não cura
a fé poderá curar.
- - - - - –

Passe o pai para seu filho
um manancial de valores,
as cores tenham mais brilho
e o brilho tenha mais cores.
- - - - - –

Quando lenta a dor avança
progressiva em torno à vida,
ninguém sufoque a esperança
de encontrar a paz perdida.
- - - - - –

Quem só fala mal de alguém
não merece aplauso algum,
gesto que nunca faz bem,
conduz pra lugar nenhum.
- - - - - –

Toda estrada não florida
é penosa sem as cores,
por vezes tem pouca vida
noutras lhe faltam as flores.
- - - - - –

Todo esforço em luz resulta
quando bem iluminado,
se a sombra da noite o oculta
frente o sol é revelado.
- - - - - –

Um comportamento rude
das intrigas causa aumento,
corrompe a nobre virtude
que protege o casamento.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 238


Arthur de Azevedo (O Retrato)


O meu querido amigo Emílio Rouède, que há dias faleceu, foi um homem espirituoso, que forneceria matéria para muitos contos ligeiros.

Em vez de inventar uma anedota, vou contar-vos uma historieta em que ele figurou, e que tem, por conseguinte, o mérito de ser autêntica.

A coisa passou-se há um quarto de século pouco mais ou menos. Emílio Rouède tinha se casado havia poucos meses, e estava estabelecido com fotografia na Rua dos Ourives, numa casa que foi demolida quando se tratou de construir a Avenida Central.

Um dia Mme. Rouède, que era uma linda senhora, saiu sozinha à rua, e foi acompanhada por um impertinente que, vendo-a sorrir, supôs que ela sorrisse não dele mas para ele.

Ela entendeu que o mais prudente era voltar para casa, e assim fez; o conquistador, porém, continuou a segui-la imperturbavelmente.

Chegando à porta da casa, a moça olhou para trás, a fim de verificar se continuava a perseguição, e esse movimento animou o homenzinho, ao que parece: quando ela entrou, ele entrou também; ela subiu a escada, ele também subiu.

Emilio Rouède estava no atelier, de blusa, a trabalhar, e, ouvindo os passos de sua esposa, foi esperá-la no topo da escada.

O sujeito, quando reparou que havia ali um homem, não teve mais tempo de fugir. Mme. Rouède apresentou-o ao marido:

- Aqui tens este senhor que me tem acompanhado por toda parte, e entrou comigo. Não sei o que pretende.

- Sei eu, acudiu prontamente o fotógrafo. - Pretende tirar o retrato; não pode ser outra coisa.

E voltando-se para o desconhecido, perguntou-lhe olhando por cima dos óculos, segundo o seu costume.

- Busto ou corpo inteiro?

O pobre diabo, que não sabia mais de que freguesia era, gaguejou:

- Busto... busto...

- Faça favor.

E levou uma hora a tirar-lhe o retrato que foi pago, ficando o retratado de ir buscá-lo daí a três ou quatro dias. Este queria apenas meia dúzia, mas Emílio Rouêde convenceu-o de que devia encomendar duas dúzias e meia.

Quando o freguês saiu, Emílio Rouède disse à esposa, que ria a bandeiras despregadas:

- Tenho pena de não ser dentista, em vez de fotógrafo!

Escusado é dizer que os retratos ficaram na fotografia.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

Isabel Furini (Poemetos) 1


FIM DE TARDE
Insignificante a vida humana...
sentimo-nos tão importantes
e somos gotas de água
(delirantes)
no imenso mar da eternidade.
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OS ABISMOS DA CANETA

enquanto o poeta pensa na  dualidade filosófica
finito-infinito
a caneta invade oceanos de palavras
mergulha em poços de conceitos
avança sobre abismos de metáforas

 a caneta confessa:
“onde eu habito os opostos estão unidos
todos os poemas
de algum modo são sagrados
e são impulsionados pelo alento do infinito”.
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POEMA & DUALIDADE

o poema é dualidade
faz renascer as palavras
cria distâncias e silêncios

entre silêncios e versos
respira a eternidade.
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POESIA É...

ter estrelas nos olhos
e sonhos nas mãos
quebrar as algemas do medo
superar dilemas
e sobre linha do horizonte
escrever novos poemas.
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REDES SOCIAIS

tempo duplo:
terríveis monções afetam a alma
mas nas redes sociais
as fotos cheias de sorrisos
dissimulam o estado emocional
pois o mundo é um cristal opaco
refletindo um perpétuo Carnaval.
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Fonte:
Poemetos enviados pela poetisa.
https://www.facebook.com/isabel.furini

Oswaldo Elias Xidieh (O Alfaiate Malandro)


No tempo em que Jesus andava pelo mundo com o apóstolo Pedro, disseram que ele ia passar por uma vila onde morava uma viúva muito piedosa e sem malícia. Ela morava numa casa de parede e meia com um alfaiate danado de sem vergonha e que queria pegar a viúva. Nunca dava certo dele pegar a viúva. Então, ele fez um buraco na parede para poder ver o que ela fazia, e vivia espiando. Um dia, ele viu a viúva rezando na sala e pedindo que Jesus chegasse logo, que era o maior consolo da vida dela. Então, o alfaiate, pelo buraco da parede, disse:

- Minha querida irmã, eu já escutei o seu rogo, por isso apronte a janta e a cama que eu vou chegar antes da madrugada. Põe um pouco de vinho e de paçoca de carne na mesa.

A viúva caiu de joelhos e disse:

- Mas será que o bom Jesus vem sozinho? Disseram que São Pedro vinha também e eu não tenho cama para ele.

- Não se avexe, minha boa irmã, que eu já arrumei pouso pra Pedro, eu vou aí sozinho. Mas não esqueça do vinho que lhe pedi.

A viúva, mais que depressa, foi aprontar a comida, pensando: "Hoje o Senhor Bom Jesus vem na casa!" Dali a pouco bateram três pancadas na porta da viúva e ela disse:

- Ai, meu Deus, o Senhor Jesus já chegou? - Foi correndo e pergunto: - Quem é que está batendo na porta?

- Jesus, minha boa filha! - Ela abriu e o Jesus de impostura entrou já querendo abraçar a viúva. A viúva escapou dizendo:

- Ai, meu bom Jesus, ainda nem acabei de fazer a janta! - e fugiu pra cozinha, pensando se Jesus abraça os outros. No fim, ela pensou que ele devia mesmo abraçar os outros sem ruindade. Voltou pra sala e o Jesus de impostura olhou pra ela com dois olhos que nem de gato. Ela fugiu pra cozinha, dizendo que tinha esquecido de trazer paçoca. Veio de novo e viu o Jesus de impostura tirando a roupa e dizendo:

- Vamos deitar um pouco pra descansar, minha filha, que depois nós vamos comer paçoca e beber o vinho.

Então ela viu que aquilo não era Jesus coisa alguma e correu pra cozinha, dizendo que já voltava com o vinho. Lá na cozinha ela se ajoelhou e rogou que Jesus de verdade aparecesse e desse um jeito naquela impostura sem medida. O homem lá de dentro deu um berro:

- Venha logo, querida filha, que já vai amanhecendo e eu preciso ir antes do galo cantar!

A viúva se entanguiu (enregelou) de medo e pensou: "Quem foge antes do galo cantar é cuisarruim. Ai, que esse homem é de mal querer. Me acuda, senhor Jesus!"

Na mesma hora, bateram na porta e ela foi ver e perguntou quem era. Responderam que era Jesus e o apóstolo São Pedro, pedindo pouso e comida. Mais do que depressa ela abriu a porta e mandou entrar. Jesus disse:

- Quem é aquele rabudo que está debaixo da cama?

Na mesma hora o alfaiate virou cuisarruim e saiu uivando pro terreiro e sumiu que até hoje ninguém sabe por onde anda.

Fonte:
Oswaldo Elias Xidieh. Narrativas populares; estórias de Nosso Senhor Jesus Cristo e mais São Pedro andando pelo mundo. SP: EDUSP, 1993.

domingo, 12 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 237


Carlos Drummond de Andrade (Aconteceu Alguma Coisa)


Dois guardas à porta, barrando a passagem. O bolo de gente na calçada, espichando pescoço para assuntar.

— Vai ver que mataram alguém no edifício.

— Com certeza assaltaram o banco, e…

— Que banco? Não está vendo que não tem banco nenhum aí?

— Já sei. Pegaram lá em cima um grupo de subversivos, e eles estão encurralados, não querem se render. Não saio daqui enquanto os caras não aparecerem.

Cresce a confusão. Tão rápido, que até parece organizada. Todo mundo colabora para que seja total. E fala, fala.

— Olha aquela velha desmaiando!

— Velha coisa nenhuma, é uma lourinha muito da bacana. E não está desmaiando, está é brigando de unha e dente, alguém apalpou ela ou afanou a bolsa.

— Te garanto que houve morte. Um padre abriu caminho e entrou lá dentro, apesar dos guardas. Padre mesmo, desses de batina, sacumé?

— Se o cara já morreu, não adianta ele entrar, ora essa. Salvo se ainda está agonizando. E quem garante a você que por estar de batina esse que entrou lá não é padre de araque? Tem muita falsificação pelaí.

— Não estou vendo fumaça. Incêndio não é.

— Pode ser nos fundos. Espera até a fumaça aparecer. O último incêndio que eu assisti, na Tijuca, levou horas pra convencer.

— Quem sabe foi uma manicure que se atirou no pátio? Já vi um caso assim.

— Por essas e outras é que só moro em casa, e casa térrea, sem escada, pra não dar grilo. Eu, hem?

— É, mas tem muito inconveniente. Nas casas baixas a poluição é servida a domicílio.

— Repara aqueles dois entrando na raça.

— E na raça foram rechaçados, tá vendo?

— Pronto, interditaram o edifício.

— Pior. Estão esvaziando o edifício.

— Corta essa. Todo mundo tem direito de entrar e direito de sair. E os que trabalham lá em cima, por que irão deixar de trabalhar? Os que precisam subir para ir ao dentista, ao médico, sei lá, com que direito são impedidos? Tá errado. Qual, isso é um país sem…

— Calma, Secundino. Acho bom você moderar suas expansões.

— É, mas o senador Farah Diba entrou com passe livre, espia só.

— Não tem senador com esse nome, siô.

— Tem um parecido, mas é deputado.

— Deputado ou não, com esse ou com outro nome, mas entrou. Eu vi.

— Então não há tragédia, ele não é de ir aonde pega fogo.

— Cerraram as portas de aço!

— Isso tá me cheirando a elevador despencado. Não tem dia que não caia um em Copacabana. E essa ambulância que não vem? Devia ter sempre uma ambulância de plantão na porta de cada edifício.

— O diabo são os palestinos. Imagina se o carteiro deixou na portaria uma daquelas cartas com bomba…

— Já não se tem onde morar sossegado. Até entrar pelo cano é perigoso. Lá dentro tem assaltante à espera.

— E na rua, então? Que é que nós estamos fazendo aqui, ameaçados de todos os lados, prestando atenção num negócio que não é da nossa conta, me diga o senhor?

— Sei lá. Mas agora está saindo um caixotão, não atino o que seja. Quem sabe se não é um novo crime da mala!

— Nem me fale nisso. Só de pensar, fico toda arrepiada; passe a mão no meu braço, veja como estou. Cortar um pobre de Cristo em fatias, feito mortadela, depositar na mala e despachar de avião!

— Era de trem que as malas com cadáveres se despachavam, sua ignorante.

— Isso foi no seu tempo, vovozinho. Hoje, quem é que passa pra trás o avião pra dar preferência a trem de ferro?

— Pois então vamos chegar perto e espiar o caixão do defunto.

— Não é caixão, gente, é geladeira!

— O quê? O defunto estava dentro da geladeira?!

— Ah, meu chapa, tu não morou que isso é uma liquidação de eletrodomésticos?

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 13 - Justiça e Injustiça


Justiça, em sentido amplo, é o princípio ou atitude que consiste no respeito aos direitos de cada um e na atribuição daquilo que é devido a cada pessoa [DicionárioHouaiss]. Injustiça, portanto, é não agir segundo este princípio.

No mundo de tanto mal,
em que a moral é postiça,
falta o sangue arterial
dos princípios da justiça!
José Valdez de Castro Moura - SP
 
Injustiça, meu irmão,
sinto quando vejo em prantos
para uns negarem um pão
e para outros darem tantos.
Rodrigues Neto - RN

Como é triste o desencanto
daquele que a duro custo
desabafa e diz em pranto:
- eu me cansei de ser justo!
A. A. de Assis - PR

Quando a injustiça se expande
e usurpa do povo o ganho,
país nenhum se faz grande,
não importa o seu tamanho!...
Edmar Japiassú Maia - RJ

Cortem os pés da cobiça;
eis a atitude primaz,
para que as mãos da justiça
façam resgate da paz!
Regina Célia Andrade - RJ

No banquete da injustiça,
o rico, manjares come,
enquanto exangue, e enfermiça,
morre a pobreza, de fome...
Pedro Grilo - RN

Aturdido e impotente,
o mundo a voz desperdiça...
sem notar que, inutilmente,
vive a clamar por justiça...
Pedro Grilo - RN

Até nas faces molhadas
da chuva, a injustiça trama:
do rico lava as calçadas,
ao pobre dá frio e lama...
Vera Vargas - PR

A Justiça, enquanto instituição jurídica, compreende os diferentes órgãos encarregados de dizer o direito, aos quais os cidadãos buscam com a finalidade de equilibrar as relações sociais que lhe causaram prejuízo. Em suma, cabem a esses órgãos interpretar as leis, em geral sem a preocupação com a justiça em sentido amplo. Como não podem julgar além das leis formais, não se prestam a corrigir as injustiças sociais.

Por outro lado, não esqueçamos que as leis são feitas pela elite dominante e, portanto, historicamente são instrumentos para garantia do poder e não para distribuir justiça. Além disso, como toda instituição, a Justiça é formada por seres humanos, sujeitos a toda a sorte de erros e fraquezas.

Nos tribunais de justiça
por vezes a fala mansa
deixa a nódoa da cobiça
sentenciar a esperança.
Nilton Manoel de Andrade Teixeira - SP
 
A justiça, rica em falhas,
corrompida por esquemas,
enche de glória e medalhas
mãos que merecem algemas.
Gerson César Souza - PR

Eu vi um pai sendo preso
por furtar um simples pão,
é mais um pobre indefeso
no caos da corrupção.
Gonzaga da Silva - RN

A justiça humana é falha!
E reconheço isto a custo...
Se é rico, livra o canalha!
Se é pobre, condena o justo...
Aparício Fernandes – RJ

Metaforicamente, os trovadores fazem referência ao símbolo da Justiça, a estátua de olhos vendados.

Disse alguém que a justiça
é cega, não creio não!
Que a questão que o rico atiça
o pobre não tem razão.
Francisco Amorim - RN

Dizem: - A justiça é cega.
Será cega de nascença?
Tem cada coisa que nega
que às vezes chego à descrença...
Severino Campelo - RN

Para não se ver omissa,
com tantos injustiçados
é que a estátua da justiça
tem os seus olhos vendados.
Argemira Fernandes Marcondes - SP

Para enxergar a cobiça
e amparar prejudicados,
não deveria a Justiça
manter seus olhos vendados!
Lucília Trindade Decarli - PR

Mas, afinal, devemos considerar que a Justiça, enquanto instituição, na grande maioria das vezes, cumpre o seu papel, podemos até dizer transcendental.

A justiça imaculada,
tendo no céu as raízes,
não pode ser acusada
dos erros dos maus juízes.
João Rangel Coelho - RJ


Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.