quarta-feira, 15 de abril de 2020

Célio Simões de Souza (No Portão do Cemitério)


Recordo com saudade a fase da minha juventude nos anos sessenta, “Anos Dourados” nos quais atravessei o breve reinado da puberdade, todo ele vivida no mundo telúrico e cambiante do interior amazônico. Os namoros obedeciam a certas convenções, ditadas pelos recatados costumes da época. Começava com uma troca de olhares lânguidos e inebriados, fazendo o coração acelerar. Um incômodo gostoso nas entranhas evoluía para o indefectível bilhetinho, conduzido por mãos amigas, com a já esperada pergunta: "Quer namorar comigo?"

A expectativa de um “fora” fazia o tempo transformar-se em lesma deslizando sobre a nossa inquietude, enquanto a resposta não vinha. Para minimizar a angústia, devotávamo-nos ao doce lirismo das madrugadas, dialogando com a lua em pungentes serestas, cujo repertório de lindas canções tinha secreto endereço, dizendo à amada que havia mais um apaixonado na cidade.

Um aceno positivo, por mais discreto que fosse, era o prenúncio de um encontro, geralmente na pracinha ao anoitecer, onde fotos trocavam de mãos como se fosse um documento de cartório, firmando tacitamente o início da paquera.

Outra praxe era a estudada indiferença da moça, incrementando o suspense e eletrizando o clima, com o fim de valorizar a relação que mal se iniciava, contribuindo para aumentar em doses quase insuportáveis a paixão do rapaz.

Conquistado o coração, seguia-se o primeiro contato corporal. O simples toque de mão cercava-se de uma solenidade daquelas só vistas em certos rituais tribais, a têmpora pulsando pela repressão de desejos ocultos, mãos trêmulas entrelaçadas sinalizando primícias de um amor sem fim para quem quisesse ver.

Daí que os pombinhos já podiam dançar de rosto colado nos salões da cidade, ousadia balizada de perto pelo viver especulativo das famílias locais. Época de desejos reprimidos, o primeiro beijo só acontecia após driblada a vigilância paterna, assim de repente, sem aviso prévio, espertamente roubado.

José de Alencar, em “Senhora”, publicado em 1874, descreve uma cena que bem poderia, guardadas as proporções, servir às convenções sociais do meu tempo, quando o assunto era os namoricos, urdidos nos bailes realizados indiferentes à feérica iluminação dos salões: “Esse enlevo inocente da dança, entrega a mulher palpitante, inebriada, às tentações do cavalheiro, delicado, mas homem, que ela sem querer está provocando com o casto requebro do seu talhe”. Tudo era paixão à flor da pele, na eclosão biológica dos seres que percorriam ainda hesitantes os caminhos de Eros, como referiu Ildefonso Guimarães em “Sombras do Entardecer”.

O drama dos dramas era o fim do namoro de forma unilateral. A preterida se debulhava em lágrimas, ao som de melosas canções estilo dor de cotovelo. Se fosse ele o defenestrado, vinham os pileques sem conta, traduzindo a profunda angústia de um coração sangrando. Devolviam-se as fotos, rasgavam-se os bilhetes e quando a raiva aflorava incontrolável vencida pela enormidade da inconformação, o fogo, tão intenso e crepitante quanto aquele que acendeu a própria paixão, reduzia a pó os vestígios materiais do frustrado idílio. 

Havia - claro! - exceções a esse comportamento, protagonizado entre casais que eliminando etapas, buscavam antes da hora a satisfação da volúpia que vinha à tona ao menor estímulo. Nada de bilhetinhos, de encontros na pracinha, de dança com o rosto colado, da expectativa pelo primeiro beijo. A coisa era “na vera”, com a aberta intenção de deixar agir os impulsos da idade, desde que contornado o principal obstáculo. Em que lugar? Como compatibilizar prazer e conforto, em uma cidade àquela época carente de um ambiente propício para aventuras amorosas?

De trivial, a rapaziada contava mesmo era com a providencial ajuda dos dois motores a diesel da usina de luz, que exaustos de servidão, habitualmente falhavam, mergulhando tudo no mais impenetrável negrume (algumas vezes, disque de caso pensado); com as penumbrosas encostas do Forte Velho; com o soturno matagal que beirava o Lago Pauxis ou o adro da Capela do Bom Jesus, onde depois do referver de fiéis nas novenas na entrada da noite, não restava vestígio de alma viva.

Mas alguém teve uma ideia de jerico. Não havia quietude maior do que a reinante no cemitério São João Batista, implantado por volta de 1885, nos limites da cidade, próximo ao Lago Geretepaua e contíguo ao Covão da “Ribite” (monumental voçoroca assim batizada em alusão ao apelido da conhecida feiticeira Laurentina, que ali vivia em seu tosco muquifo, figura soturna que infundia justificado terror a todos por suas pautas com o “chifrudo”, temida e evitada pelos efeitos deletérios de seu mau olhado), onde os túmulos mais altos impediam a visão externa, tentador convite aos casais mais afoitos, embora em lugar tão digno de respeito. Quem, no seu bom senso, iria suspeitar?

Depois de muito se repetir, essa prática pouco ortodoxa vazou e um dia a delegacia foi invadida por um grupo de pudicas e indignadas senhoras, que invocando os princípios da moral e dos bons costumes, denunciaram:

- Seu Lalôr, tem gente fazendo indecência no cemitério. E é de madrugada...

- Como é que é?...

- Pois é delegado, emendou dona Zefa. O Mundico foi ontem para o porto bicorar a chegada do navio, passou rente ao muro e escutou todo o estrupício. Pensou que era alma penada pedindo reza, foi espiar e viu tudo. O mais puro acesume, seu Lalôr, os dois sem-vergonha no pior disconforme, fazendo o que o senhor já sabe...

E rematou, inundando a mente do delegado com o vírus da provocação:

- A verdade é que tão nesse desabuso todo tempo e isso nós não podemos admitir. É mais uma afronta que o povo presenseia sem que a polícia nada faça! Coisa de herege seu delegado. Exigimos uma providência e já!

O velho policial, procurando disfarçar o constrangimento, arriscou:

- Pois pode deixar comigo. Acabo com essa patifaria e prendo quem está fazendo isso, seja ele quem for!

Já de saída, dona Elza do João Modesto, conhecida pela intolerância, que tinha sob sua responsabilidade as aulas de catecismo da paróquia preparando a molecada para a vida cristã, com um sorriso postiço e falso falou baixo com as outras, porém modulando o tom o suficiente para o delegado ouvir:

- Prende nada... Esse unzinho só tem moral com bêbado!

Seu Lalôr, caboclo invocado da Costa do Imperial, a modo que tomado por surda ataxia pelo impiedoso xaveco, ficou teso de raiva, mas a muito custo conseguiu se controlar. Velha f.d.p... pensou. A última coisa que queria fazer era deixar o aconchego do seu lar para vigiar a desoras casal de namorado, homem de hábitos morigerados que era, ainda mais na quadra invernosa, quando as chuvas atravessam a noite até de manhã. Mas teria que impor sua autoridade e mostrar serviço, quando mais não seja, para mitigar a ira das zelosas senhoras e no dia seguinte procurou o comandante do destacamento da Polícia Militar, para traçar uma estratégia de ação.

Na dita reunião, ficou pactuado que o cabo Jaime, um sujeito alto, parrudo e com fama de brabo, faria uma campana no fim de semana para flagrar os descarados. Na sexta-feira, virando para sábado, lá chegou o miliciano armado e municiado, preparando-se para uma noitada de penitências, pois na centenária necrópole não havia sequer onde se abrigar do aguaceiro que começava a cair. Mas intimamente ardia de vontade de dar um flagra em algum casal socialmente importante, conduzi-los sob vara para a delegacia, submetê-los a vexame público.  

Para sua frustração, nessa noite ninguém apareceu para fazer indecência. E nos albores do dia seguinte, faminto e sonolento, coturnos encharcados de lama, o corpanzil hirto de umidade que a capa de plástico e o quepe não conseguiam evitar, vislumbrou o cabo na dormência do amanhecer a aproximação do padeiro Vivaldo, assoviando “Coração de Papel”, sucesso da Jovem Guarda - que às cinco da manhã percorria o centro urbano para vender o pão ainda quente, que ele transportava nos ombros acondicionados num enorme cesto de vime, cujas alças feitas de cordéis de sisal ele enlaçava nos pulsos para sustentar todo aquele peso, permitindo-lhe uma pegada mais firme. Ah! O cheirinho convidativo daquele maná despertou o instinto gustativo do veterano soldado, que decidido a saciar a fome ali mesmo ergueu-se do túmulo em que estava sentado, pedindo ao entregador quando ele chegou rente ao portão, com sua conhecida voz anasalada:

- Padeiro, me vende um pão!... Disse e esticou o braço oferecendo o dinheiro ao vendedor, mantendo o outro também retesado para receber o alimento.

    Ah coitado! Vendo à meia-luz aquele enorme vulto erguer-se do sarcófago em sua direção como se fosse agarrá-lo, o Vivaldo deu um berro medonho que acordou as guaribas do Lago Geretepaua e fez a feiticeira “Ribite” recitar de joelhos o Pai Nosso pela primeira vez na vida, desembestando espavorido ladeira abaixo, clamando em desespero para que a “visagem” o soltasse, sem notar que ainda estava preso nas alças do cesto - agora rebocado aos trancos - no qual ele trazia todo dia para seus fregueses os deliciosos pães da “Padaria Careca”.

Fonte:
Conto enviado pelo autor, integrante de seu livro: Recados da Memória. Editora Smith, 2017, pg. 11 – 16.

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