terça-feira, 21 de abril de 2020

André Kondo (A Caligrafia)


Num mar negro. Nigérrimo. As ondas quebram violentamente em alguns momentos, para acalmarem-se pacientemente em outros. Tempo. No alvo plano, uma montanha negra se eleva em questão de segundos. Tempo. A geografia nasce em singelas pinceladas, vida e morte, na ponta de um pincel. Eternidade.

Nampo contemplou o mar. Seguia um ritual meticuloso antes de iniciar uma peça de shodo*. No caminho da caligrafia não deveria haver qualquer traço negativo. Para isso, era necessário apagar qualquer sinal que pudesse macular a pureza de espírito. Era necessário que a alma deslizasse no papel como em uma caminhada com destino certo, sem desvios e imprevistos que poderiam levar a um sentimento indesejável.

As peças caligráficas de Nampo poderiam trilhar o caminho da perfeição, repousando nas paredes dos mais santificados templos e dos mais suntuosos palácios de seu tempo. Certamente, sobreviveriam, mesmo quando os tempos se tornassem outros. Para um grande mestre da arte do shodo, escrever uma peça perfeita era como traçar a própria eternidade. No sumi* negro pincelado no alvo papel, na coreografia perfeita nascia a dança dos significados. Os traços ganhavam contornos de vida.

Uma peça caligráfica é escrita para uma determinada estação do ano, sendo substituída como as folhas que caem no outono, a neve que derrete na primavera, as flores de cerejeira sopradas ao vento, os frutos colhidos, as aves que migram, as vidas que passam. Uma sazonal eternidade.

Na fugacidade desses momentos que, à primeira vista, parecem tão efêmeros, existe um traço da eternidade. Estações passam, porém, sempre retornam, em um ciclo que se repete ao longo dos milênios.

É este equilíbrio, entre o traço aparentemente efêmero do mestre de shodo e a eternidade do significado das palavras traçadas, que caracteriza uma obra-prima da arte de escrever o que não se expressa com palavras.

Às costas de Nampo, encontrava-se uma dessas peças perfeitas. Aliás, não "uma dessas", mas "a peça perfeita". Desde que a arte da caligrafia surgira, há três mil anos, nunca houve e, provavelmente, nunca haverá uma peça que se iguale àquela exposta no relicário de Nampo.

Quando aquela peça foi traçada, o mundo parou por um segundo. E, nesse único segundo, a eternidade do satori* foi alcançada. A caligrafia iluminou-se como um Buda e criou um universo, além das esferas deste mundo. Porém, para Nampo, aquelas linhas traçadas naquele papel só atestavam uma coisa: a verdade.

Em sua juventude, Nampo havia se deparado com a austeridade de uma vida que deveria alcançar a perfeição. Seu pai era o mais poderoso senhor feudal de sua época. Desejando preparar o filho para ocupar o seu lugar no poder, instruiu-o com os melhores mestres. O pai de Nampo havia conquistado o Japão com a espada, cuja arte considerava superior a todas as outras. Era na arte da espada que o pai queria que o filho se especializasse.

Se havia aulas de cerimônia do chá, era para aguçar-lhe o sentido do sabor da perfeição. Se havia aulas de música, era para afiar-lhe o ouvido para a sublime canção da vitória. Se havia aulas de sumiê*, era para aguçar-lhe os reflexos em combate. Se havia aulas de caligrafia... era para que ele pudesse escrever o seu nome na História.

Dentre todas as artes, Nampo apaixonou-se pela caligrafia. Em nenhuma outra sentia-se tão pleno quanto na arte do shodo. Porém, havia um fato que talvez o tenha levado a escolher a arte do shodo em detrimento de todas as outras: Yumi.

Yumi, sua professora de caligrafia, era uma jovem promissora, cujo talento surpreendeu até o pai de Nampo, acostumado apenas a conviver com os maiores mestres em suas respectivas artes. Havia, no traço de Yumi, uma vivacidade rara. Geralmente, os grandes mestres de shodo eram já anciãos, que passaram a vida inteira aperfeiçoando-se nesta arte de traçar sentimentos. Por isso, a jovial genialidade de Yumi tornava-se ainda mais impressionante. Tão impressionante que atraiu o amor, não apenas de Nampo, mas também de seu pai,

— Cada peça de shodo é única. Veja, podemos traçar a mesma frase, a mesma palavra, os mesmos caracteres... Porém, observe o traçado de cada uma das peças. Nenhuma peça é igual a outra. “Vê?" — Yumi explicava.

— Um dia, Yumi, traçarei uma peça de shodo exatamente igual a uma das suas.

— Acabei de explicar que peça alguma pode ser igual a outra — Yumi sorriu.

— Yumi, em todas as artes, compreendi que tudo depende do fluxo do coração. É ele quem controla a intensidade de nossos movimentos, da nossa respiração. Um dia, quero ser capaz de sentir o que você sente. Tomar-me um com você. Pois é isto o que eu mais desejo. Unir minha alma à sua— disse Nampo.

Yumi ruborizou. Sua mão perdeu a firmeza. Não conseguiria traçar o mais simples kanji naquele dia. Não sabia se sorria ou se repreendia o aprendiz, que apesar de ser filho do senhor feudal, ainda era apenas um jovem. Ainda mais jovem do que ela própria.

Nampo se esforçava para penetrar no coração de Yumi. Tal esforço apenas provocava cada vez mais o afastamento da jovem mestra de shodo. Até que, não suportando mais fugir de um sentimento que perigosamente crescia não apenas dentro de Nampo, mas dentro de si também, decidiu solicitar o seu afastamento ao seu senhor,

— Yumi, concordo em afastá-la como tutora de meu filho.

— Muito obrigada! Agradeço a compreensão e generosidade...

— Pois será, em breve, minha esposa!

Surpreendida, Yumi sabia que aquela não era uma proposta que pudesse declinar. Era uma sentença. Perpétua.

Em uma época em que o senhor feudal era senhor não apenas das terras, mas dos homens que nela viviam, em que homens se sacrificavam em seppuku com um simples gesto de seu senhor, não restou outra alternativa, senão a submissão de Yumi. E de Nampo.

Na noite anterior à união de seu pai e Yumi, Nampo a procurou. A Lua brilhava tão intensa que seria uma pena deixar de imortalizá-la em um haicai. Porém, a poesia daquela noite era outra, traçada em negras curvas. O negro da noite e não a claridade da Lua seria o mestre daquele momento.

Nampo sentia o espírito arder. Também assim queimava a alma de Yumi. Quando duas paixões tão intensas se encontram, mundos colidem e sociedades desmoronam em chamas.

A respiração, O coração disparado. As curvas se definindo. Lentamente. Cada caminho levando a um único destino: o nascer de uma peça de shodo.

— Nampo, eis a minha alma, que entrego a você...

Nampo nada disse. Quando alguém lhe entrega a alma, não há palavras. O papel estendido. As mãos quase se tocaram. Quase. No encontro das almas, o corpo nunca está presente.

A despedida.

Nampo abandonou as terras de seu pai. Vagou pelo Japão em busca de alguma paz. Acompanhava-o em sua jornada a alma de sua amada. Porém, como viver apenas com a alma, quando seu corpo também clamava por companhia? Refugiou-se em uma cabana abandonada, em um promontório distante. Nunca mais saiu dali.

No relicário, a alma-viva de sua amada: a peça de shodo de Yumi. A peça que, pacientemente, entre um shodo e outro sobre sentimentos vãos, tentava imitar. Dia após dia, no momento em que mais sentia saudade, Nampo tentava seguir os caminhos trilhados por Yumi naquela peça caligráfica. Às vezes, quase conseguia. Porém, seus destinos haviam se separado para sempre. Destarte, nunca lograva seguir os caminhos de Yumi.

Saía ao mar em um pequeno barco, comprado às custas de sua arte caligráfica. Pescava. Em canteiros que cercavam sua cabana, plantava legumes e hortaliças. Essa rotina aparentemente pequena escondia a grandiosidade da vida. O traçado dos deuses sobre a terra criava os peixes no mar, os frutos na terra. Porém, quem apenas visse peixes e frutos perderia a verdadeira essência dos traços da vida: o mar e a terra.

A cada dois meses, um emissário de uma loja do vilarejo viajava dois dias para chegar à cabana. Levava as peças caligráficas de Nampo e em troca deixava algum item essencial para o corpo do artista e outros essenciais á sua alma. Um dos itens mais importantes que ele trazia era um pequeno bloco de sumi negro, que Nampo diluía em água para traçar suas peças de shodo. Este momento para ele era sagrado. O diluir do sumi era o diluir de sua alma, que se esvaía na ponta do pincel, imortalizando-o no papel.

Por anos, essa rotina se repetiu... Anos...

Nampo, já velho, observou o emissário retornar. Ao longo do tempo, os emissários mudavam, porém, o que não mudava era o sumi, de qualidade incomparável, que Nampo recebia com incompreensível prazer. Daquela vez, o emissário demorou--se mais do que de costume. E não trouxe o sumi. Não trouxe nada além de uma carta:

Nampo, peço perdão por esta vida... 

Tudo o que pude lhe dar foi uma peça de shodo, quando o que desejava era poder dar a você o que nela estava escrito. Por anos, imaginei que seria capaz de ser forte e cumprir o meu desejo. Porém, como deve ter percebido, nunca tive essa coragem.

Nampo, devo pedir perdão por algo mais terrível ainda...

Por todos esses anos, eu o tive ao meu lado... Senti cada dia de sua vida, a cada peça de shodo que você traçava. Pois saiba que adquiri cada peça sua, cada suspiro, cada toque... E, para aumentar ainda mais a minha culpa, ousei estar ao seu lado também...

Perdão, Nampo... Por esta atitude egoísta. Cada vez que recebia uma peça de shodo sua, empenhava-me em seguir os mesmos traços. Após terminar a minha peça, espelha da sua, queimava-a junto com a madeira, para que se tomasse a fuligem que usava para fabricar os seus blocos de sumi. Empenhei-me em fazer com que o dono da loja aceitasse enviar a você apenas o sumi que eu fabricasse. Fato que ele não questionou, pois eu era uma boa cliente, comprando todos os trabalhos de shodo que você vendia por intermédio dele. Foi um arranjo fácil. O difícil foi suportar a minha mesquinharia.

Como pude viver assim todos estes anos? Como pude desfrutar de sua companhia e ainda impor a minha a você? Desconheço algo mais vil nesta vida. Por isso tudo, peço perdão.

Nampo, perdão pelos meus erros... Muito obrigado, por estar ao meu lado nestes longos anos. Nampo, perdão por partir assim, mais uma vez, e desta vez, creio, para sempre...

Se está recebendo esta carta é porque, assim como o sumi que com carinho fabriquei para você, eu também me tomei pó, para servir de sumi ao pincel dos deuses...

Yumi


Nampo olhou para o mar, olhou para a caligrafia de Yumi, pendurada em seu relicário. Ali estava escrito, com todas as curvas da vida, a palavra: amor. Nampo ansiava retribuir o presente recebido, há tanto tempo. Finalmente, o seu coração estava preparado.

Abandonando o sumi, os pincéis e o papel, abandonando sua cabana, Nampo caminhou pela praia deserta. Lembrou-se, claramente, do último momento em que vira o rosto de Yumi. Ajoelhou-se.

Com a ponta do dedo, que nunca a havia tocado, Nampo passou a traçar a areia. Finalmente conseguiu o que tanto desejava: uma caligrafia exatamente igual a de Yumi.

O que está escrito no coração é a peça de caligrafia mais sublime, a verdadeira alma da escrita da vida, pois é traçada pelo equilíbrio entre a fugacidade de um único momento... e toda a eternidade de um sentimento.

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NOTAS:
* Shodo ("Caminho da escritura") é a caligrafia japonesa. É considerada uma arte e uma disciplina muito difícil de perfeccionar e é ensinada como uma matéria a mais às crianças japonesas durante a sua educação primária. Provém da caligrafia chinesa e é praticado no estilo antigo, com um pincel, um tinteiro onde se prepara a tinta nanquim, pisa-papel (peso de papel) e uma folha de papel de arroz. Atualmente também é possível usar um fudepen, pincel portátil com depósito de tinta.

O shodō pratica a escritura dos caracteres japoneses hiragana e katakana, assim como os caracteres kanji, os caracteres chineses. Atualmente existem calígrafos que são contratados para a elaboração de documentos importantes. Além de exigir alta precisão e graça pelo calígrafo, cada caractere dos kanji devem ser escritos segundo uma ordem de traços específica, o que aumenta a disciplina necessária daqueles que praticam esta arte. (wikipedia)
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* Sumi é uma tinta de origem chinesa, tradicionalmente usada no Japão. Descoberta a sua fabricação pelos chineses como sendo uma espécie de "nanquim mais barato", e que com o comércio chegou ao Japão, onde virou uma febre, e os japoneses que aprimoraram a técnica, transformando a tinta frágil contra umidade em outra com quase a mesma composição só que com mais durabilidade, a mesma durou pouco no comércio chinês pelo fato descrito anteriormente sobre a sua durabilidade, voltando lá, a ser usado o nanquim. Enquanto o nanquim é uma tinta com origem natural, vinda de polvos e lulas que o usam como modo de defesa, a tinta sumi é a mistura de fuligem, agua e condimentos usados na sua preservação e validade como podemos dizer. A arte da utilização da tinta sumi se chama sumiê, uma arte muito antiga no Japão provavelmente sendo adquirida no século XV d.c, quando a tinta chegou ao Japão, e como era de uma fabricação muito mais barata, virou uma febre no mesmo, pois o Japão na época não era tão desenvolvido quanto a China, então deste modo, o Japão nesta area não precisou mais do comércio com a China. (wikipedia)
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* Sumiêarte da utilização da tinta sumi. Suiboku-ga ou Shuimohua (chinês tradicional) é uma técnica de pintura oriental que surgiu na China no século II da era cristã. Da China o sumiê foi levado ao Japão onde tornou-se mais difundido. A palavra tem raiz japonesa e significa pintura com tinta. Seu conceito não tem ligação com a pintura praticada no ocidente. Primeiro porque a arte do sumiê é uma mistura de desenho com elementos de caligrafia, que também é uma arte para os orientais. Segundo, porque o artista deve passar sua mensagem de modo resumido e sem equívocos. Daí dizer-se que é a arte do essencial. Talvez para atingir essa simplicidade que o sumiê é basicamente monocromático.

Assim como o desenho, o material usado pelo artista é bem limitado: pincéis, uma tinta especial parecida com o nanquim e papel artesanal à base de arroz. O aluno começa o aprendizado com os desenhos mais simples, quase sempre bambus. O modo de segurar o pincel e o gesto de colocar a tinta no papel deve conter um delicado equilíbrio entre a pressão da pincelada, e a maior ou menor quantidade de tinta.

Trata-se de uma arte que exige, após muito treino, grande habilidade e concentração. É por isso que poucos atingem o estágio de mestre. A representação do tema importa menos do que a composição do trabalho. Na composição, que segue regras bastante rígidas, o artista revela sua alma, a elegância do traço e principalmente a harmonia que deve existir no seu interior.

No Brasil, provavelmente o introdutor da arte do sumiê foi Massao Okinaka. Por muitos anos manteve classes de alunos interessados em aprender essa técnica tão antiga, mas absolutamente nova para os ocidentais. (wikipedia)

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* Satori é um termo japonês budista para iluminação. A palavra significa literalmente "compreensão". É algumas vezes livremente tratada como sinônimo de Kensho, mas Kensho refere-se à primeira percepção da Natureza Búdica ou Verdadeira Natureza, algumas vezes conhecida como "acordar". Diferentemente do kensho, que não é um estado permanente de iluminação mas uma visão clara da natureza última da existência, o satori refere-se a um estado de iluminação mais profundo e duradouro. É costume portanto utilizar-se a palavra satori, ao invés de kensho, quando referindo-se aos estados de iluminação do Buda e dos Patriarcas.

"Satori é a raison d'être (Razão de ser) do Zen, sem o qual o Zen não é Zen. Portanto todo o esforço, disciplinário ou doutrinal, é dirigido ao satori."

No Brasil, uma vez ao ano, o mestre Satyaprem orienta o Satori, método desenvolvido com similaridade à imersão dos monastérios Rinzai Zen (de silêncio e isolamento) e a auto-indagação de Ramana Maharshi, e reestruturado por Osho. Inicialmente chamado de "iluminação intensiva" (awareness intensive), trata-se de um trabalho que conduz à realização da natureza búdica – à descoberta de quem/o que se é, além do corpo, além da mente –, no qual koans rompem o nível intelectual, dando possibilidade à autodescoberta existencial.

Seu primeiro contato com o método foi em 1985, nos Estados Unidos, através de Ma Yoga Sudha, discípula e terapeuta do universo de Osho, com quem trabalhou mais tarde. Por muitos anos, Satyaprem coordenou o Satori na Osho Multiversity, na Índia, e em alguns lugares da Europa e do Brasil, país onde, desde 2001, o trabalho é exclusivamente realizado no "Festival de Carnaval com Satyaprem" e tem sido uma das maneiras com que o mestre conduz ao fim da busca, mediante o encontro com esta questão fundamental: "Quem sou eu?". (Wikipedia)


Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

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