domingo, 19 de abril de 2020

Rachel de Queiroz (Graúna)


Ano passado, um tanto levianamente, prometi uma graúna a um amigo. E o patrão desse amigo, que é também meu patrão, leva a me cobrar a promessa, como se tivesse algum interesse nisso — o que eu não duvido.

Bem, o problema não é a graúna; graúnas aqui abundam, há uma que reside bem próxima à janela do meu rústico escritório, e suponho que não seria difícil induzi-la a entrar num alçapão. Os passarinhos daqui da fazenda têm direito permanente de asilo nas proximidades da casa, e sentem-se em tão grande segurança que os rouxinóis fazem ninho nas estantes por trás dos livros, na gaveta da mesa de alpendre, onde o dono da casa outrora tomava o seu vinho e hoje toma sua abstêmica limonada, olhando o açude.

Andorinhas também fizeram morada num rincão do dito alpendre. Canários, até o ano atrasado, ocupavam os frechais da copa e o pé de jucá do terreiro e tinha-se em casa uma cantoria permanente, era lindo. Mas desde o ano passado foram expulsos pelos cabeças-vermelhas, também chamados galos-de-campina. Os campinas são lindos de figura e agradáveis de canto, mas não chegam nem aos pés dos canários, que nos deixaram mortos de saudades. Mas assim é a lei da natureza, e creio que mesmo se acabássemos com todos os campinas, os canários não voltariam. Eles lá têm o seu brio.

Há ainda os beija-flores e o memorável episódio do ninho na antena de TV, que deu lugar ao gesto mais lindo do mundo do então presidente da Embratel. E há, last but not least, as graúnas que me acordam de madrugada e cantam enquanto trabalho.

Bem, suponhamos então que eu, fortemente motivada pela palavra dada e pelas pressões patronais, cometa um ato de traição e aprisione a incauta e cantadeira graúna. Daí, que é que eu faço?

Começa que nem sei direito o que que graúna come. Consultei os possíveis entendidos e há discrepâncias: come bichinhos, algumas sementes, algumas frutas. Outros dizem que ela não come bichinhos, só frutas. Outros que frutas, absolutamente só sementes. Que conclusões tirar?

Mas suponhamos ainda que, vencida a barreira dietética, eu consiga alimentar a prisioneira e vá tratar de a remeter para o Rio, Digam-me, senhores, como enviar uma graúna para o Rio, desde estas lonjuras inundadas do Quixadá? Tem que haver várias baldeações e centenas de outras improbabilidades. Daqui de casa para a estação, uma viagem de meia légua com a lagoa da Carnaúba em gloriosa enchente e o riacho dos Cavalos dando nado. Na estação, poder-se-ia pegar o trem — mas já me informei: no trem não há serviço especial de transporte de graúnas. O pássaro teria que viajar de grajau como um frango, e sujeito a todos os azares, atrasos e etc. do percurso.

Inclusive roubo e esmagamento, sem falar da sede e inanição. Chegando em Fortaleza, como fazer a baldeação para o avião? Porque de ônibus não se pode cogitar, ônibus não aceitam graúnas como passageiro. E navio, além de passarem poucos. quem cuidaria do conforto da graúna durante os oito dias da travessia marítima?

Agora então a última pergunta: e a Varig, a Vasp, a Transbrasil, a Cruzeiro aceitarão como carga ou encomenda uma gaiola de talisca de coqueiro aprisionando no seu interior uma graúna viva, sem acompanhante, traída e revoltada, possivelmente fazendo greve de fome?

São estas as dificuldades, meu caro patrão Daniel, que vêm me impedindo de cumprir aquela incauta promessa. Como vê, não é por falta de graúnas e boa vontade. É apenas por falta de uma infra-estrutura nacional que nos possa garantir a operação de transporte.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

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