quarta-feira, 29 de abril de 2020

J. G. de Araújo Jorge (O Canto da Terra) 9


PALAVRAS AO HOMEM CÉTICO
(A Monteiro Lobato - 1943)
  
Não troques ( tu que realmente tão pouco tens de teu,
tu que não tens nada além do ar que respiras,
do sol que te aquece, das estrelas do céu,)
- não troques por nada deste mundo
oh! meu irmão,
o teu direito de sofrer, de lutar e de morrer,
pelo teu pensamento
e pela tua convicção!

Por em verdade te digo, que nada vale mais
do que esse sofrimento amplo e profundo,
que nada vale mais que a tua liberdade
não importa que esteja sujeita aos rigores da vida
ou à intempérie do mundo!

Vive por ela, sofre por ela, morre por ela,
e terás para a tua vida, ou para a tua morte
a mais sublime razão,
e por pior que a tua vida tenha sido,
terá sido uma Vida, e terás sido um Homem! oh! meu irmão!

Não troques jamais os percalços e os sofrimentos,
as incertezas e os perigos
da tua independência,
nem tolhas a ousadia da tua consciência
e as ânsias do teu coração,
- por esse bem-estar da subserviência
ou pelo comodismo humilhante e bastardo
de qualquer escravidão!

Que te bastem, se preciso, o ar, o sol, as estrelas,
as alvoradas e os crepúsculos, o mar e o céu,
que não são de ninguém,
mas não vendas tua alma por um pouco de ouro
nem troques teu destino por uma migalha
que ao te matar a fome
te destrói também!

Que te bastem, se preciso, os caminhos do mundo
que nunca tiveram dono
desde a mais remota idade,
e que num mundo a seguir, em rebanhos, tocado,
pejas tu, o animal indócil, desgarrado!
- da liberdade!


Não traias teu ideal por fraqueza e impaciência,
antes vela o silêncio digno, e atento, aguarda
o instante em que terás de lutar por aquilo
que é de todos os homens, e portanto, é teu!
Que, às vezes, como o sol, a liberdade tarda
mas como o sol também, ela não falha nunca ,
e será tanto mais bela
quanto mais negra a noite que a antecedeu!
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e mil vezes bendito serás, na tua espera ansiosa, na tua revolta,
e no teu viril insubordinamento,
porque então compreendeste o silêncio da nossa dor
e a beleza heroica
do nosso sofrimento!
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PALAVRAS AO POETA DO MEU SÉCULO
(A Eudes Barros - 1940)

No teu verso
existirá a neurose de todos os homens esgotados
ou excitados
pelos prazeres,
e a neurose de todos os seres
exaustos
pelo trabalho,
pela ambição!

E a vertigem do moto-contínuo das coisas
na terra
e nos espaços!
E a volúpia doentia dos seres livres ou recalcados
nos segundos de loucura
e de sublimação . . .

E a revolta de todos os que já sentiram fome
e dos que ainda à sentirão!

E a amargura dos que não encontram nas noites frias,
às horas mortas,
senão o vão das portas
e as escadarias...

E a tragédia de mil raízes profundas e sombrias
que bruxoleia nos olhos baços
das proxenetas*...
(como o sol, quando põe estilhaços
de luz)
que parecem laivos de pus
- na água podre das poças d'água nas sarjetas!...
- na água podre das poças d'água nos pauis!

E a ousadia e o destemor da estirpe incurável
dos sonhadores e terroristas,
dos agitadores e incendiários,
dos teóricos e utopistas,
e dos revolucionários...
E o estoicismo e a abnegação dos santos, dos apóstolos
e dos missionários!

A fé cristã dos mártires, a força dos condutores
de povos
e o entusiasmo, e a coragem, e a eloquência dos novos!
E a angústia dos que já tiveram um lar
e já tiveram trabalho,
os que vivem na vida andando a esmo
numa ansiosa vigília
- os que não têm mais lar
mas ainda têm família!...

No teu verso existirá
o desespero dos anônimos e desgraçados,
dos forçados à impotência
e em verdade incapazes,
dos que nasceram escultores e perderam as mãos,
dos que trouxeram o tormento surdo
do gênio de Beethoven,
os que, adorando a música e os seus sons, não ouvem...

E a agonia cruciante dos que têm olhos para ver,
coração para sentir,
mãos para ofertar
- e, suprema e fatal de todas as ironias!
não podem chorar
nem socorrer
e só podem ofertar as tristes mãos vazias...

E a desgraça dos que chegaram ao mínimo de humanidade
pensando na dor alheia,
para sublimá-la na explosão inútil de uma obra
frágil como a areia...

No teu verso existirá a incoerência,
o paradoxo, o desconexo,
a miséria, a opulência,
e o flagrante de todas as desigualdades
e injustiças
de um século complexo...

E por isso o teu verso será o instantâneo vivo
da própria evolução,
será o monólogo, doloroso, hamletiano,
de um tempo desumano!
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PALAVRAS AO TRABALHADOR BRASILEIRO

(Aos que lutam e morrem na Baixada Fluminense)
(A Procópio Ferreira – 1941 )


Glória a ti, trabalhador obscuro, trabalhador brasileiro,
- glória aos teus músculos, à tua força, à tua vontade  
e à tua abnegação,
desconhecido obreiro
da nacionalidade
e da Civilização!  

Glória à tua coragem cabocla, ao teu desprendimento
cheio de lances épicos e bravios,
e ao teu construtivo heroísmo
tanta vez ignorado,
- glória a ti que arrostaste* as febres, as sezões*, o impaludismo*
sem desmorecimento
e repuseste em seu leito as águas de cada rio  
transviado!

A ti que mergulhaste o corpo nos pântanos infectos
e nos lodos doentios,
cheios de miasmas* mortais e multidões de insetos,
na decomposição dos corpos dos cadáveres
dos rios...

Glória a ti, que transformaste milhares, milhares e milhares,
muitos milhares de hectares
de terras incultiváveis e abandonadas
num imenso celeiro?
Glória a ti, à ferramenta humilde que põe calos de ferro
em tua mão,
glória à tua enxada
abençoada,
oh! trabalhador brasileiro!
oh! meu irmão!

Dragaste o pantanal e revolveste a terra,
e saneaste a terra, e transformaste a terra
estéril,
a gleba malsã*,
- num campo redivivo, no ventre largo e fecundo
de um novo vale, de um novo mundo
de Canaã!

Ressuscitaste assim, e libertaste assim, prisioneiras regiões
do império das maleitas,
e hoje livres os chãos dos matagais hirsutos
livres os campos das cheias, das inundações,
- as terras são promessas de colheitas
e as sementes serão flores, serão frutos
na festa das plantações!

Glória a ti, - obreiro incansável e obscuro
que a essas regiões perdidas, inúteis e sem futuro,
a essa terra escrava
onde a estrada não chegava
onde a raiz não medrava
onde o homem não punha o pé,
- levaste a tua força, o teu trabalho, a tua fé,
o teu labor, titânico, profundo,
o teu suor,
e fizeste do nada, um mundo! e farás desse mundo
um mundo ainda maior!

Glória a ti que repetiste nas carnes amaldiçoadas
daqueles chãos vazios, daqueles mortos pauis*,
(que eram como feridas gangrenadas
enchendo a terra de pus,)
- o milagre da vida, o milagre do Lázaro
da história de Jesus!

E eis que tudo ressurge, que os campos palpitam de seiva,
que as terras todas vibram ressuscitadas,
e desaparecem até, das chagas já curadas,
os sinais e as cicatrizes!
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Amanhã
sobre os chãos despertos e resolutos
sobre os chãos enxutos,
ao trabalho de cada dia
e em horas mais felizes,
vergarão os galhos verdes com as mãos pesadas de frutos,
e dentro da terra úmida, numa alvoroçada alegria
se entrelaçarão as raízes!

Amanhã
os trilhos marcarão na epiderme do solo
a imagem infinita do progresso!

Os campos se encherão de penachos bizarros
e passará na noite a visão instantânea de um "expresso"
serpenteando na sombra o cordão luminoso
dos seus carros;
e pelas tardes bucólicas e platônicas
se ouvirá nos caminhos a música feliz das rodas sinfônicas
de outros carros...

Amanhã
continuarás ainda em tua luta
eterna e ininterrupta, ;
multiplicando as culturas, alargando horizontes,
replantando florestas, perfurando montes,
abrindo leitos de rios e algemando-os com as pontes,
e aproveitando as energias de suas forças dispersadas
dando rumo e correnteza às águas estagnadas!

Amanhã
continuarás perfilando pelos campos, pelas encostas
até onde a vista alcançar,
- as divisões dos cafezais de farda verde e de botões vermelhos
que parecem marchar,
- e os batalhões dos algodoais de capacetes brancos,
e os extensos canaviais de estandartes ao vento,
e os verdes milharais de espada em riste, no ar!

Até os louros trigais, filhos de velhas raças emigrantes
altivos e belos      
ondeando pelos montes, aos bandos, aos mil,
e que há bem pouco chegaram de suas terras distantes       
marcharão também com seus penachos amarelos
da cor do sol do Brasil!

Hás de ver que todos se perfilarão
ao toque de reunir dos teus músculos
maiúsculos,
na parada do trabalho que te engrandeceu,
do trabalho que marcha, que avança e se expande,
porque o Brasil é grande!
porque o Brasil é teu!

Na tua fronte plebeia
o suor de cada dia escreve uma epopeia,
e escrevem sobre a terra um capítulo heroico
os teus pés sempre nus,
- glória a ti, trabalhador obscuro, trabalhador brasileiro,
tens o peito viril de esplêndido guerreiro
condecorado de sol!
condecorado de luz!
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Vocabulário (Dicionário Aurélio)
Arrostaste – Enfrentaste.
Impaludismo – Malária.
Malsã – insalubre, maléfica, doentia.
Miasma – Emanação fétida oriunda de animais ou plantas em decomposição.
Pauis – (plural de paul) Pântanos.
Proxeneta – Intermediário, por dinheiro, em casos amorosos.
Sezões – Febres intermitentes ou periódicas.


Fonte:
J.G. de Araújo Jorge. O Canto da Terra. 1945.

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