quinta-feira, 9 de abril de 2020

Rachel de Queiroz (O Coração de Washkansky)

    

Parece que está mesmo morrendo o homem que, lá na África do Sul, recebeu o coração da moça, apesar da torcida apaixonada em que se empenha o mundo inteiro pela sua salvação. Se bons desejos dessem vida, Washkansky estaria salvo. Pois imagino que jamais tal massa de bons desejos acompanhou um doente — nenhum rei, nenhum herói, nenhum santo teria tido tantos milhões de pessoas a pedir pela sua vida, a acompanhar ansiosamente nos jornais os recuos e progressos dos implacáveis anticorpos.

A gente fica pensando: será que a natureza já previa a tentativa de transplantação de órgãos? Se não a previa, porque teria imposto ao organismo animal tantas e tão intolerantes defesas, essa xenofobia, essa cortina de anticorpos a fechar as fronteiras da carne, proibindo qualquer promiscuidade orgânica com outro indivíduo, seja embora o doador da mesma espécie, da mesma raça, do mesmo tipo de sangue do receptor? Promiscuidades, diz a natureza, só mesmo para o fim de reprodução — e pelos canais competentes. Fora disso, nada.

O que é evidente é que Deus Nosso Senhor considera o reino animal a sua mais perfeita obra-prima, cada indivíduo, cada espécie, cada série, tudo ótimo e não susceptível de alteração. Chega-se mesmo a duvidar da teoria da evolução, na qual se acredita mais por uma questão de fé, pois ver de verdade nunca vimos, nunca fomos testemunhas de nenhum processo de evolução em marcha num organismo vivo. Tanto quanto me deixa saber a minha ignorância, tudo ainda São teorias, As alegadas provas se apresentariam em espécies extintas, em fósseis; mas depois do bicho morto e virado pedra, passados milhões de anos — trata-se pelo menos de um testemunho longínquo, não é?

No reino vegetal não há tanto rigor. Milhares de vegetais pegam de galho e recebem enxertos de variedades diferentes. A glória da jardinagem, da horticultura e da pomicultura está mesmo na criação desses híbridos por enxertia, Há organismos animais, como a ameba, que se dividem, e cada pedaço continua vivendo como indivíduo novo; e há lagartixas que conseguem fazer crescer outra vez a cauda decepada. Mas encostar a parte seccionada de um ser na parte seccionada de outro ser, e aquilo pegar — parece que ainda está longe. Eles dizem que fazem cães com duas cabeças em laboratório, mas cadê esses cães? Podem viver uma vidinha artificial e rápida, mas lá mesmo se acaba. Não vinga.

É como eu dizia: Deus considera perfeitos os homens e os bichos tais como os criou e não admite alterações na sua morfologia. E até mesmo híbridos por cruzamento a natureza tolera mas não gosta, tanto que os faz estéreis.

Realmente, se pudesse interferir com a morfologia das espécies, mal se pode pensar a que fantasias loucas se entregaria a humanidade desvairada. Se a gente pegasse de enxerto como laranja-da-baía, numa hora de entusiasmo amoroso era capaz de fazer operação para ficar xifópago com o ser amado — mas, e depois que o amor passasse?

E os laboriosos que exigissem quatro mãos para trabalhar mais? E a milionária excêntrica que ambicionasse a garganta da Callas? E as linhas de contrabando organizadas para oferecer delicados pés de espanholas a americanas ricas de pé 42? E o ditador megalomaníaco que montasse fábricas de supersoldados para os seus exércitos — homens com couraça de jacaré, estômago jejuador de camelo, força de cavalo e miolos de burro para, apesar de tantos dons, obedecer ao seu senhor? E não se diga que o homem não faria isso, que ele tem amor ao seu corpo tal como é: — o homem não tem amor a nada, o homem é doido. Tanto quanto pode, ele já se desfigura com tatuagens, com brincos, batoques, cicatrizes, e operações plásticas de resultados duvidosos. E para ganhar dinheiro, então — até já estou vendo quadrilhas organizadas para raptar crianças de gênio e lhes vender o cérebro no câmbio-negro.

Assim mesmo, contra todas as leis naturais, queremos que Washkansky escape. Que a regra inflexível abra essa primeira exceção e o corpo enfermo do homem de meia-idade cobre vida nova com o coração da rapariga morta. E se a operação tivesse êxito e entrasse na rotina médica — oh, meu Deus, podia-se até criar o uso de dar o nosso coração a alguém; não poeticamente, cm devaneios de amor, mas mandar abrir de verdade a arca do peito e tirar de dentro o coração palpitando, e enviá-lo congelado em papel de alumínio, como comida americana, para o ingrato ou ingrata ficar usando, já que nasceu sem coração.

P.S. — Washkansky, o primeiro paciente a sofrer transplante cardíaco (operado pelo Dr. Christian Barnard no hospital de Groote Schuur, África do Sul), morreu após viver 18 dias com o coração da moça Denise.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

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