domingo, 26 de abril de 2020

Hélio Serejo (Porque é Triste o Jaburu)


Nessa hora dúbia que ainda é dia e ainda não é noite, uma imensa tristeza se apodera dessa ave esquisita. É o jaburu, num dormitar profundo, nem sequer agita o longo pescoço, parecendo então um empalhado espécime de museu.

Nas grandes noites da cheia, move as asas poderosas e caminha de um lado para outro, lento e meditativo, como a montar guarda naquela lagoa que é, desde há muito tempo, o seu pouso, a sua morada.

Vive sempre só e quando acontece aparecer um intruso abre-lhe guerra e luta ferozmente.

Na hora crepuscular o seu voo nos faz lembrar velhas imagens de contos de fadas.

Quem viajar pelos sertões de Mato Grosso, mormente pela zona sul, há de encontrar à margem dos rios, ou à beira das lagoas, uma ave cinzento escura, pernas grossas, triste e esquisita, que tem, constantemente a cabeça voltada para a terra...

É o jaburu...

Todas as tardes, ali escorado ele está numa perna só, tristonho e cabisbaixo.

Sobre a tristeza mística dessa ave há a seguinte versão:


Mandi, indiozinho guerreiro, quebrando os preceitos sagrados da sua religião, deixou-se um dia apaixonar perdidamente por Ituna a mais formosa mulher da tribo de Morembi.

O pai queria fazê-lo cacique, mas para isso era preciso, conforme dizia o pajé, que o filho não se casasse enquanto não passassem cinco luas, depois de ter recebido do pai o tacape de guerreiro e o diadema de morubixaba. Mas Mandi, que já havia consultado as águas da lagoa sagrada, sabia perfeitamente que a primeira lua muito longe estava ainda. Por isso não podia esperar. Antes perder a soberania de cacique do que ficar sem o amor daquela que Tupã mandara do céu, para alegria de seu coração na terra.

E Mandi não esperou, nem tampouco ouviu as súplicas angustiosas do pai velhinho e doente...

Karin revoltou-se e, num momento de ódio, rogou uma praga terrível contra o filho.

Todas as tardes, inevitavelmente, Mandi ia encontrar-se com Ituna à beira da lagoa sagrada e ali ficavam, horas a fio, a contemplar a majestade de Phoébus, que se ocultava aos poucos, na curva ensanguentada do horizonte.

Mas nunca estavam sós.

Uma ave de plumagem cinzento-escura, pescoço encolhido, descansando sobre uma das pernas, vinha fazer-lhes companhia. E os dois se divertiam a jogar migalhas de frutas adocicadas ou miolo saboroso do "quipiá" para aquela ave mansa e esquisita apanhar com o seu bico grosso e forte. E em pouco tempo eram três que todas as tardes vinham admirar, à beira da lagoa, a sublimidade da luta do dia contra as trevas...

Ficara tão manso o jaburu que vinha tirar-lhes da palma da mão a fruta adocicada ou o miolo saboroso.

Uma tarde, porém, umas nuvens densas e pesadas englobavam-se para os lados do poente, com prenúncio de borrasca iminente.

Na tribo dos Araés ia uma balbúrdia medonha.

Karin, o valente e destemido guerreiro cacique, estava agonizante. As sombras daquela noite sem alvorada começavam a cair lentamente, sobre sua cabeça.

De quando em quando, pavoroso e medonho, um relâmpago rasgava o céu. O pajé, mãos cruzadas, cabeça caída sobre o peito, rezava baixinho. Mulheres e crianças imitavam-no.

Quando percebeu que era chegada a hora, Karin chamou Mandi e entregou-lhe o tacape de guerreiro e o diadema de morubixaba.

Lá fora "coroando", o novo tuchaua, um grupo de Araés dançava ao som de uma música fúnebre...

Mandi beijou a fronte bronzeada do pai e retirou-se. Na frente da palafita, mãos em conchas, sem dar atenção aos que o saudavam, olhou em baixo e viu, por entre o clarão de um relâmpago, o vulto de Ituna que o esperava.

Não pôde conter-se. Atirou para um lados os troféus sagrados que há pouco o pai lhe dera, e desceu a encosta em desabalada carreira. Lá estava Ituna, a formosa virgem que Tupã mandara do céu para a alegria do seu coração na terra.

Mandi contornou-lhe o corpinho delgado com seus braços longos e vigorosos e ia forçá-la para satisfação do seu incontido e lúbrico desejo, quando um raio, rasgando as trevas, veio cair-lhe em plena cabeça, fulminando-o juntamente com a índia virgem. No outro dia já muito tarde, o pajé encontrou-os caídos sobre a relva úmida, os corpos estreitamente unidos, num abraços impressionante — o abraço da morte.

Lá estava também, meio idiotizado, o cismarento jaburu. Nessa mesma tarde um grupo de Araés abria duas tíbis nas terras de Pendejan, o heróico tuchaua, pai de Karin, que ali tombara um dia, em defesa da tribo varado pelas balas dos guerreiros brancos. Uma delas para receber o corpo do bravo cacique; a outra aberta ao lado da lagoa sagrada para sepultar os dois jovens que tombaram fulminados, ante os olhos irados de Tupã, na hora da consumação do pecado...

O jaburu, tristonho e imóvel tudo presenciara sem nada compreender.

E quando a última pá de terra caiu sobre a tíbi dos dois pecadores, ele voou e partiu.

Mas todas as tardes voltava, vinha esperar como de costume que alguém lhe atirasse a fruta adocicada ou o miolo saboroso. Mas em vão. Nunca mais os viu voltar, alegres como dantes!

Dai por diante o jaburu tornou-se mais triste ainda; as penas foram caindo aos poucos e a cabeça vergou sob o peso tremendo da dor... Mas ele não desanimava. Todas as tardes, ali estava descansando sobre uma das pernas, em cima daquele amontoado de terra, os olhos cravados no chão, na esperança de ver surgir, debaixo dos seus pés, aquelas duas almas amigas.

E é por isso que o jaburu é uma ave assim tão triste e esquisita e vive à margem dos rios ou à beira das lagoas, tendo sempre os olhos amargurados voltados para a terra.

Fonte:
Hélio Serejo. in Jornal do Folclore. São Paulo. janeiro de 1960.

Nenhum comentário: