sábado, 25 de abril de 2020

Sílvio Romero (Os Três Coroados)


Foi um dia, havia três moças já órfãs de pai e mãe. Uma vez, elas estavam todas três na sacada do seu sobrado, quando viram passar o rei. A mais velha disse: “Se eu me casasse com aquele rei, fazia-lhe uma camisa como ele nunca viu”. A do meio disse: “Se eu me casasse com ele, lhe fazia uma ceroula como ele nunca teve”. A caçula disse: “E eu, se me casasse com ele, paria três coroados”.

O rei ouviu perfeitamente a conversa, e, quando foi no dia seguinte foi ter à casa das moças e lhes disse: “Apareça a moça que disse que se casasse comigo, paria três coroados”. A moça apareceu, e o rei levou-a e casou-se com ela. As irmãs ficaram com muita inveja, mas fingiram não ter.

Quando a moça apareceu grávida, as irmãs meteram-se dentro do palácio, com aparências de ajudá-la em seus trabalhos. Aproximando-se o tempo de dar a rainha à luz, as suas irmãs se ofereceram para servi-la e dispensar a parteira. Chegado o dia, elas muniram-se de um sapo, uma cobra e um gato. Quando nasceram os três coroados, elas os esconderam dentro de uma caixa, e mandaram largar no mar. Apresentaram então ao rei os três bichos, dizendo: “Aí estão os coroados que aquela impostora pariu.” O rei ficou muito desgostoso e mandou enterrar a mulher até aos peitos, perto da escada do palácio, dando ordem a quem por ali passasse para cuspir-lhe no rosto.

Assim se fez. Mas um velho pescador encontrou no mar a caixa, apanhou-a, abriu e encontrou os três meninos ainda vivos e muito lindinhos. Ficou muito alegre, e levou-os para casa para criar. A velha, sua mulher, se desvelou muito no trato das crianças. Quando estas cresceram, a ponto de poderem ir para a escola, foram e passavam sempre pelo palácio do rei.

As cunhadas dele viram, por vezes, passar os meninos e os conheceram. Um dia os chamaram, e se puseram com muitos agrados com eles, e lhes deram de presente três frutas envenenadas, a cada um a sua. Os meninos comeram as frutas, e viraram todos três em pedra. Os velhos ficaram muito aflitos com aquilo, e toda a cidade falou no caso.

Mas a velha, que era adivinha, disse ao marido: “Não tem nada; eu vou à casa do Sol buscar um remédio para as três pedras virarem outra vez em gente”. Partiu montada a cavalo.

Depois de andar muito tempo, encontrou um rio muito grande e bonito. O rio lhe disse: “Ó minha avó, aonde vai? “ A velha respondeu: “Vou à casa do Sol para ele me ensinar que remédio se deve dar a quem virou pedra para tornar a virar gente”. O rio lhe disse: “Pois então pergunte também a ele a razão por que, sendo eu um rio tão bonito, grande e fundo, nunca criei peixe”. A velha seguiu.

Adiante encontrou um pé de fruta muito copado e bonito; mas sem uma só fruta. Ao avistar a velha, a árvore disse: “Aonde vai, minha velhinha?” “Vou à casa do Sol buscar um remédio para gente que virou pedra”. “Pois pergunte a ele a razão por que, sendo eu tão grande, tão verde e tão copada, nunca dei uma só fruta...” A caminhante seguiu.

Depois de andar muito, passou pela casa de três moças, todas três solteiras e já passando da idade de casar. As moças lhe disseram: “Aonde vai, minha avó?” A velha contou aonde ia. Elas lhe pediram para indagar do Sol o motivo por que, sendo elas tão formosas, ainda não tinham casado. A velha saiu e continuou a caminhar.

Ainda depois de muito tempo é que chegou à casa da mãe do Sol. A dona da casa recebeu-a muito bem. Ouviu toda a sua história e encomendas que levava, e escondeu-a, em razão de seu filho não querer estranhos em sua casa, e quando vinha era muito zangado e queimando tudo. Quando o Sol chegou, vinha desesperado e estragando tudo o que achava: “Fum... aqui me fede a sangue real!... aqui me fede a sangue real...” “Não é nada, não, meu filho, é uma galinha que eu matei para nós jantarmos”.

Assim a mãe do Sol o foi enganando, até que ele se aquietou e foi jantar. Na mesa da janta sua mãe lhe perguntou: “Meu filho, um rio muito fundo e largo por que é que não dá peixe?” “É porque nunca matou gente”. Passou-se um pouco de tempo e a velha fez outra pergunta: “E uma árvore muito verde e copada, por que é que não dá fruta?” “Porque tem dinheiro enterrado embaixo.” Pouco tempo depois outra pergunta: “E umas moças bonitas e ricas por que não casam?” “Porque costumam urinar para o lado em que eu nasço”. Deixou passar mais um tempinho e perguntou: “E qual será o remédio para gente que tiver virado pedra?” Aí o Sol enfadou-se e disse: “O que querem dizer hoje estas perguntas?’ A mãe respondeu: “Vivo aqui sozinha, me ponho a imaginar estas tolices”. O Sol foi e respondeu: “O remédio é tirar da minha boca, quando eu estiver comendo, um bocado e botar em cima da pedra”.

A velha, daí a pouco, fingiu um espanto, levou a mão à boca do Sol e tirou o bocado, dizendo: “Olha, meu filho, um cisquinho na comida!” E guardou o bocado. Daí a pedaço a mesma coisa: “Olha um cabelo, meu filho”! E escondeu mais um bocado. Numa terceira vez, ela fez o mesmo e o Sol se levantou aborrecido, falando: “Ora, minha mãe, o seu de comer hoje está muito porco; não quero mais”.

Deitou-se e no dia seguinte foi-se embora para o mundo. Sua mãe foi à velhinha que estava escondida, e lhe contou tudo, dando os três bocados. A velha pôs-se a caminho para trás. Passando por casa das moças, aí dormiu, sem querer dizer a razão por que elas não casavam.

No dia seguinte, bem cedo, ela levantou-se e as moças também. Elas correram logo para o lugar onde costumavam urinar, voltadas para o nascer do sol. A velha as repreendeu dizendo: “É esta a razão de vocês não casarem. Percam este costume de urinar para a banda de onde o sol nasce”. As moças assim fizeram e logo acharam casamento.

A caminhante tomou o seu caminho e foi-se embora a toda pressa. Chegando na fruteira, pôs-se debaixo dela a cavar sem dizer nada; quando puxou um grande caixão, então disse por que a fruteira não dava frutas. O pé de árvore começou logo a carregar que parecia praga. A velha seguiu.

Ao chegar ao rio, ele lhe indagou do seu recado: “Logo lhe digo”; e a velhinha foi passando depressa. Quando se viu bem longe, gritou: “É porque você nunca matou gente”. O rio botou logo uma enchente tão grande, que por um triz não matou a velha. Afinal foi ela ter em casa. Sem mais demora aplicou os três bocados em cima das três pedras, e os meninos se desencantaram.

A notícia destas coisas chegou aos ouvidos do rei. Ele mandou um dia convidar o velho com os três meninos para jantarem em palácio. O velho não quis ir, nem mandar os meninos. O rei o intimou, até que foram os meninos. Mas a velha ensinou aos meninos: “Quando vocês lá chegarem, meus filhinhos, ao passarem pela escada, se ponham de joelhos e tomem a bênção àquela mulher que lá está enterrada parecendo um cadáver, porque é a mãe de vocês. Na janta não queiram ir para a mesa sem que o rei mande desenterrá-la e botar também na mesa. Quando ele der a cada um o seu prato, não comam e deem todos três a ela, que os há de devorar num instante, pois está morta de fome. Aí as duas moças que lá têm, que são tias de vocês, hão de dizer: “Que barriga de monstro que cabe três pratos de uma vez!” A isto vocês respondam tirando os bonés e dizendo: “Não é de admirar que caibam três pratos de comida, quando coube três coroados!” e mostrem ao rei as cabeças.

Assim foi: os meninos executaram fielmente as recomendações da velha. (Todas as coisas se repetiram pela forma indicada pela velha adivinha, com grande surpresa para o rei e desapontamento para as duas infames malfeitoras). Tudo acabado, o rei, que ficou vivendo com sua mulher, que voltou à sua antiga beleza, e os seus filhinhos, em palácio, perguntou-lhes o que queriam que ele fizesse às duas danadas.

Os meninos responderam que “ele mandasse buscar quatro burros bravos e as amarrasse nos rabos.” Assim fizeram, e elas morreram lascadas ao meio.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos Populares do Brasil. RJ: José Olympio, 1954.

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