sexta-feira, 24 de abril de 2020

Rachel de Queiroz (Os Mitos da Época)


Fala-se muito em libertação feminina através da modernização dos lares com o uso de uma infinidade de aparelhos, elétricos ou manuais, que reduzem imensamente o tempo outrora gasto nas tarefas indispensáveis à manutenção do lar.

Bem, os aparelhos domésticos ajudam, é claro, e alguns divertem e consolam como a TV. Mas ainda lhes falta muito para serem o milagre que se anuncia por aí, e os fabricantes ainda terão que os aperfeiçoar imenso, até que o alívio por eles proporcionado seja realmente satisfatório.

Todas essas máquinas — de lavar roupa e louça, aspiradores, enceradeiras, liquidificadores batedeiras, churrasqueiras cafeteiras, etc., ainda estão a enorme distância da perfeição cibernética ou de qualquer outra perfeição. São como computadores que exigissem do usuário ficar de lado, completando as contas no lápis.

Vejamos em primeiro lugar todos os eletrodomésticos que lidam com alimentos: a sua performance é rápida e quase sempre eficiente — mas ninguém, nenhum fabricante jamais pensou no problema suscitado pela sua limpeza, infinitamente mais difícil que a das simples tigelas e colheres de pau da cozinha antiga. As máquinas fazem o trabalho, automaticamente, mas não se limpam também automaticamente. Experimente fazer uma maionese num liquidificador — são três minutos.

Mas depois há que desmontar o aparelho, limpar com o dedo (e quase sempre cortar-se) as lâminas e todas as demais peças, uma por uma, banhá-las no detergente, escaldar (para tirar o cheiro), enxugar, armar de novo. As vezes leva mais tempo do que bater a maionese na colher, à moda antiga.

O mesmo se diga da batedeira de bolo, das espremedeiras de suco, do aparelho de wafles, das churrasqueiras; isso sem falar dos confortos mais antigos — a máquina de moer carne, chatíssima de limpar, ou a tragédia que faz muita mãe de família pensar desesperada em abandono do lar, quando se vê diante do seu fogão esmaltado, literalmente coberto de gordura, após o simples preparo de um almoço de bifes com batatas fritas. (E olhe que existe o Nautilus para absorver a gordura, mas também há que limpar o Nautilus, o que não é nenhum doce). A enceradeira — veem-se anúncios de TV onde se mostra a mulher encerando a sala enquanto dança um balé. Mas ninguém fala na prévia limpeza do chão, na retirada da cera velha com Varsol (ou palha de aço!), na esfregação da cera nova... Aspirador também é ótimo — mas há que armar o bicho e, depois, aquela abominável operação que é esvaziar e limpar o saco do pó. Máquina de lavar louça, essa ainda é uma ilusão. Dá mais trabalho lavar louça com ela do que sem ela, é o que dirão todas que a usam. Já a máquina de lavar roupa é o mais aperfeiçoado aparelho do arsenal doméstico. Assim mesmo ainda exige o desagradável manuseio da roupa suja para pesagem e imersão das peças, o trabalho de estender no secador. Sem falar na sequência da tarefa, o passar a ferro, penosíssima ainda, apesar do ferro elétrico.

Resumindo, a automação do trabalho doméstico ainda é um ideal distante. Muitas das máquinas em uso acabam complicando mais do que ajudando. E isso no tempo em que já se mandam homens à Lua!

E depois, há muita gente que diz que mulher vai trabalhar na rua porque não acha mais o que fazer em casa!

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

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