— Coitada da Das Dores, tão boazinha...
Das Dores é isso, só isso — boazinha. Não possui outra qualidade. É feia, é desengraçada, é inelegante, é magérrima, não tem seios, nem cadeiras, nem nenhuma rotundidade posterior; é pobre de bens e de espírito; e é filha daquele Joaquim da Venda, ilhéu de burrice ebúrnea — isto é, dura como o marfim.
Moça que não tem por onde se lhe pegue fica sendo apenas isso — boazinha.
— Coitada da Das Dores, tão boazinha...
Só tem uma coisa a mais que as outras — cabelo. A fita da sua trança toca-lhe a barra da saia. Em compensação, suas ideias medem-se por frações de milímetro, tão curtinhas são. Cabelos compridos, ideias curtas — já o dizia Schopenhauer.
A natureza pôs-lhe na cabeça um tablóide homeopático de inteligência, um grânulo de memória, uma pitada de raciocínio — e plantou a cabeleira por cima.
Essa mesquinhez por dentro. Por fora ornou-lhe a asa do nariz com um grão de ervilha, que ela modestamente denomina verruga, arrebitou-lhe as ventas, rasgou-lhe a boca de dimensões comprometedoras e deu-lhe uns pés... Nossa Senhora, que pés! E tantas outras pirraças lhe fez que ao vê-la todos dizem comiserados:
— Coitada da Das Dores, tão boazinha...
Das Dores só faz o que as outras fazem e porque as outras o fazem. Vai à igreja aos domingos de livrinho na mão, ouve a missa, ouve a prédica, reza. Nunca falhou um dia. Se lhe perguntarem o porquê daqueles atos, responderá, muito admirada da pergunta:
— Mas se todas vão!
O grande argumento de Das Dores é esse: as outras. Ouve o sermão do padre e chora nos lances trágicos, não porque compreenda algo daquela retórica, nem porque sinta vontade de chorar — mas porque as outras choram.
Toma tudo quanto ouve ao pé da letra, incapaz que é de galgar do concreto ao abstrato. Se ouve falar em “fazer pé de alferes”, fica a pensar em pés e mãos de alferes e tenentes.
— Tão boazinha a Das Dores...
Uma vez foi à prédica de um padre em missão pela zona, orador famoso pelas muitas almas que desatolara do chafurdeiro de Satanás. Ouviu-lhe muita coisa que não entendeu, mas entendeu um pedacinho que terminava assim:
“Meditai, meus irmãos, refleti em cada uma das palavras das vossas orações cotidianas, pois do contrário não terão elas nenhum valor”.
Das Dores saiu da igreja impressionada com o estranho conselho e se foi de consulta à tia Vicência, velha sabidíssima em mezinhas e teologias.
— Tia Vicência viu o que o seu cônego disse? Pra gente pensar em cada palavra senão a reza não vale?...
A tia mastigou um “pois é” que dava toda a razão ao padre.
— Que coisa, não? — foi o comentário final de Das Dores, que continuava a achar esquisitíssima aquela ideia.
À noite era seu costume rezar umas tantas orações preventivas dos mil males possíveis no dia seguinte. Mas até ali as rezara qual um fonógrafo, psi, psi, psi, amém. Tinha agora que pensar nas palavras. Diabo! Havia de ficar engraçada a reza...
Caiu a noite.
Das Dores meteu-se na cama, cobriu a cabeça com o lençol e deu início à novidade. Abriu com o Padre-Nosso.
— Padre-Nosso que estais no céu; padre, padre; os padres, padre Pereira, padre vigário... Padre Luís... Coitado, já morreu e que morte feia — estuporado!... Padre... Que ideia do seu cônego mandar a gente pensar nas palavras! Nem se pode rezar direito...
“... nosso; nosso é o que é da gente; nossa casa; nossa vida; nosso pai... Pra quem seria que foi o Nosso-Pai ontem? Para a nhá Veva não é, que ela já melhorou. Seria para o major Lesbão? Coitado! Quem sabe se a estas horas já não está no outro mundo? Bom homem, aquele... Tão caridoso... Ó diabo! Estou me distraindo! ‘Nosso’, ‘nosso’... Em certas palavras não se tem jeito de pensar...
“... que estais no céu: estar no céu, que lindeza não será! Os anjos voando, as estrelinhas, Nossa Senhora tão bonita com o Menino no braço, os santos passeando de lá para cá... O céu; céu; céu da boca; céu azul. Por que será que se diz céu da boca?
“... santificado, san-ti-fi-ca-do; que é santo; dia santificado, dia santo... “... seja vosso nome; nome; nome bonito... Nome feio! Quantos tapas levei na boca por dizer nomes feios! Quem me ensinava era aquela bruxa da Cesária. Peste de negrinha! Onde andará ela? ‘Nome de gente’; ‘nome de cachorro’. Gustavo, bonito nome. Está ali um que se quisesse... Mas nem me enxerga, o mauzinho; é só a Loló praqui, a Loló prali, aquela caraça de broa... Gustavo é o nome de homem mais bonito para mim. De mulher é... Rosinha? Não. Merência? Não... ‘Home’, a falar verdade nenhum. Gustavo. Gustavinho... Ahn, que sono!
“O pão nosso; pão; pão... Por que será que quando a gente repete muitas vezes uma palavra ela perde o jeito e fica assim esquisita? Pão; pão; pã-o... Por falar em pão, como anda minguando o pão do Zé Padeiro! E que pão ruim! Azedo... Pão sovado; pão de cará; pão de Petrópolis...
“... de cada dia; dia; dia; marido da noite; dia de sol; dia de chuva; dia das almas; dia de anos; dia bonito... E que dia bonito fez ontem! Vão ver que domingo chove. É sempre assim. Havendo uma festinha, chove mesmo. Amanhã, se fizer bom dia, vou à casa da Iná. Coitada da Iná! Acontece cada coisa nesta vida...
“... dai-nos hoje; hoje, hoje... Que é que eu fiz hoje? Ahn! Que soneira!
“... e livrai-nos Senhor; senhor; ilustríssimo senhor Gustavo de Silva. Bonito nome! Senhor amado; Senhor morto; senhor; se-nhor, nhor, nhor-se...
“... de todo o mal; mal; mal... mal... al...”
Os olhos de Das Dores fecharam-se, o corpo moleou e seu sono foi um só até romper o dia. Ao despertar lembrou-se logo do caso da véspera. Sorriu. Achou que a ideia do cônego — um padre de tanta fama! — não passava de grossa asneira. E pela primeira vez na vida duvidou.
— Ora, titia — foi ela dizer à tia Vicência —, aquilo é asneira. Se a gente for pensar em cada palavra, não pode rezar direito. O cônego que me perdoe, mas ele disse uma grande bobagem...
Não se sabe se a tia lhe deu razão ou não; mas o fato é que Das Dores continuou a rezar pelo sistema antigo, mais rápido, mais correntio e com certeza mais agradável a Deus. Quem se saiu mal do incidente foi o pobre missionário.
Cada vez que se referiam a ele perto de Das Dores, ela floria a cara de uma risadinha irônica.
— Está aí um que pode estar dizendo as coisas que eu...
E concluía a frase com o mais convencido muxoxo de pouco-caso.
Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário