sábado, 4 de abril de 2020

Carlos Drummond de Andrade (Anúncio de João Alves)


Figura o anúncio em um jornal que o amigo me mandou, e está assim redigido:

À procura de uma besta.

- A partir de 6 de outubro do ano cadente, sumiu-me uma besta vermelho-escura com  os seguintes característicos: calçada e ferrada de todos os membros locomotores, um pequeno quisto na base da orelha direita e crina dividida em duas seções em consequência de um golpe, cuja extensão pode alcançar de 4 a 6 centímetros, produzido por jumento.

Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste comércio, é muito mansa e boa de sela, e tudo me induz ao cálculo de que foi roubada, assim que hão sido falhas todas as indagações.

Quem, pois, apreendê-la em qualquer parte e a fizer entregue aqui ou pelo menos  notícia exata ministrar, será razoavelmente remunerado.
Itambé do Mato Dentro, 19 de novembro de 1899.
 (a) João Alves Júnior.


55 anos depois, prezado João Alves Júnior, tua besta vermelho-escura mesmo que tenha aparecido, já é pó no pó. E tu mesmo, se não estou enganado, repousas suavemente no pequeno cemitério de  Itambé. Mas teu anúncio continua um modelo no gênero, se não para ser imitado, ao menos como objeto de admiração literária.

Reparo antes de tudo na limpeza de tua linguagem. Não escreveste apressada e toscamente, como seria de esperar de tua condição rural. Pressa, não a tiveste, pois o animal desapareceu a 6 de outubro, e só a 19 de novembro recorreste à Cidade de  Itabira. Antes, procedeste a indagações.

Falharam. Formulaste depois um raciocínio: houve roubo. Só então pegaste da pena, e traçaste um belo e nítido retrato da besta.

Não  disseste  que todos os seus cascos estavam  ferrados; preferiste dizê-lo "de  todos  os  seus membros locomotores". Nem esqueceste esse pequeno quisto na orelha e essa divisão da crina em duas seções, que teu zelo naturalista e histórico atribuiu com segurança a um
jumento.

Por ser muito domiciliada nas cercanias deste comércio, isto é, do povoado e sua feirinha semanal, inferiste que não teria fugido, mas antes foi roubada. Contudo, não o afirmas em tom peremptório: "tudo me induz a esse cálculo". Revelas aí a prudência mineira, que  não avança (ou não avançava) aquilo que não seja a evidência mesma. E cálculo, raciocínio, operação mental e desapaixonada como qualquer outra, e não denúncia formal.

Finalmente- deixando de lado outras excelências de tua prosa útil - a declaração final: quem a apreender ou pelo menos "notícia exata ministrar", será "razoavelmente  remunerado". Não prometes recompensa tentadora; não fazes praças de generosidade ou largueza; acenas com o razoável, com a justa medida das coisas, que deve prevalecer  mesmo no caso de bestas perdidas e entregues.

Já é muito tarde para sairmos à procura de tua besta, meu caro João Alves do Itambé; entretanto essa criação volta a existir, porque soubeste descrevê-la com decoro e   propriedade, num dia remoto, e o jornal a guardou e alguém hoje a descobre, e muitos  outros são informados da ocorrência. Se lesses os anúncios de objetos e animais perdidos, na imprensa de hoje, ficarias triste. Já não há essa  precisão de termos e essa graça no dizer, nem essa moderação nem essa atitude crítica. Não há, sobretudo, esse amor à tarefa bem feita, que se pode manifestar até mesmo num anúncio de besta sumida.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Fala, Amendoeira. RJ: José Olympio, 1976.

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