segunda-feira, 20 de abril de 2020

Carlos Drummond de Andrade (O Dono)


O dono do pequeno restaurante é amável, sem derrame, e a fregueses mais antigos costuma oferecer, antes do menu, o jornal do dia “facilitado”, isto é, com traços vermelhos cercando as notícias importantes. Vez por outra, indaga se a comida está boa, oferece cigarrinho, queixa-se do resfriado crônico e pergunta pelo nosso, se o temos; se não temos, por aquele regime começado em janeiro, e de que desistimos. Também pelos filmes de espionagem, que mexem com ele na alma.

Espetar a despesa não tem problema, em dia de barra pesada. Chega a descontar o cheque a ser recebido no mês que vem (“Falta só uma semana, seu Adelino”).

Além dessas delícias raras, seu Adelino faculta ao cliente dar palpites ao cozinheiro e beneficiar-se com o filé mais fresquinho, o palmito de primeira, a batata feita na hora, especialmente para os eleitos. Enfim, autêntico papo-firme.

Uma noite dessas, o movimento era pequeno, seu Adelino veio sentar-se ao lado da antiga freguesa. Era hora do jantar dele, também. O garçom estendeu-lhe o menu e esperou. Seu Adelino, calado, olhava para a lista inexpressiva dos pratos do dia. A inspiração não vinha. O garçom já tinha ido e voltado duas vezes, e nada. A freguesa resolveu colaborar:

— Que tal um fígado acebolado?

— Acabou, madame — atalhou o garçom.

— Deixe ver… Assada com coradas, está bem?

— Não, não tenho vontade disso — e seu Adelino sacudiu a cabeça.

— Bem, estou vendo aqui umas costeletas de porco com feijão-branco, farofa e arroz…

— Não é mau, mas acontece que ainda ontem comi uma carnezita de porco, e há dois dias que me servem feijão ao almoço — ponderou.

A freguesa de boa vontade virou-se para o garçom:

— Aqui no menu não tem, mas quem sabe se há um bacalhau a qualquer coisa? — pois seu Adelino (refletiu ela) é português, e como todo lusíada que se preza, há de achar isso a pedida.

Da cozinha veio a informação:

— Tem bacalhau à Gomes de Sá. Quer?

— É, pode ser isso — concordou seu Adelino, sem entusiasmo.

Ao cabo de dez minutos, veio o garçom brandindo o Gomes de Sá. A freguesa olhou o prato, invejando-o, e, para estimular o apetite de seu Adelino:

— Está uma beleza!

— Não acho muito não — retorquiu, inapetente.

O prato foi servido, o azeite adicionado, e seu Adelino traçou o bacalhau, depois de lhe ser desejado bom apetite. Em silêncio.

Vendo que ele não se manifestava, sua leal conviva interpelou-o:

— Como é, está bom?

Com um risinho meio de banda, fez a crítica:

— Bom nada, madame. Isso não é bacalhau à Gomes de Sá nem aqui nem em Macau. É bacalhau com batatas. E vou lhe dizer: está mais para sem gosto do que com ele. A batata me sabe a insossa, e o bacalhau salgado em demasia, ai!

A cliente se lembrou, com saudade vera, daquele maravilhoso Gomes de Sá que se come em casa de d. Concessa. E foi detalhando:

— Lá em casa é que se prepara um legal, sabe? Muito tomate, pimentão, azeite de verdade, para fazer um molho pra lá de bom, e ainda acrescentam um ovo…

Seu Adelino emergiu da apatia, comoveu-se, os olhos brilhando, desta vez em sorriso aberto:

— Isso mesmo! Ovo cozido e ralado, azeitonas portuguesas, daquelas… Um santo, santíssimo prato!

Mas, encarando o concreto:

— Essa gente aqui não tem a ciência, não tem a ciência!

— Espera aí, seu Adelino, vamos ver no jornal se tem um bom filme de espionagem para o senhor se consolar.

Não tinha, infelizmente.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

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