quinta-feira, 2 de abril de 2020

França Júnior (Crianças)


- Como é bonito!

- Que mimo!

- Que anjinho do céu!

Tais são as palavras que nos saem espontâneas dos lábios ao vermos uma criança loura, de olhos azuis, sorriso feiticeiro, bochechas cor-de-rosa, um desses entes que constituem, na opinião de todos, o elo da família, o encanto, a felicidade do lar.

E deixando-nos seduzir pela beleza das crianças, exclamamos, sem sondar-lhes primeiro os mistérios do coração.

- Quanta inocência!

- Que candura!

- Que singeleza!

Alguns minutos de convivência, porém, com os tais "anjinhos do céu" são bastantes para convencer-nos de que eles são mais espirituosos e malignos que todos os diabos da terra.

Os leitores vão ler, no correr deste folhetim, a prova do que fica dito. É rara, nesta cidade, a casa onde não haja, pelo menos, duas ou três crianças.

Vejamos como realizam elas as santas alegrias do lar.

Vem rompendo o dia.

A família, entregue ao delicioso sono da madrugada, acorda ao som de pequenos gritos, que começam destacados e vão num crescendo imponente até a nota final, como o coro da "bênção dos punhais" dos Huguenotes.

- Hi! Hi! eu quero pão com manteiga.

- Espera um pouco, nhonhô, o padeiro ainda não veio.

- Hi! Hi! Quero pão,

- O senhora, vá acomodar aquele menino - diz o pai de família, pondo a cabeça fora dos cobertores.

- O que é isso lá dentro? grita a mãe.

- É nhonhô Pedrinho, que quer pão,

- Cala a boca, menino.

- Não calo. Hi! Hi! Eu quero pão.

-Ah bom chinelo! diz de outro quarto a irmã mais velha. - Hi! Hi! Hi!

- Bonito, agora é outro que lá está a chorar.

- Levante-se, senhora, e acabe com aquilo.

- Hi! Hi! Hi! Eu não quero pão, quero rosca.

- Ó Jacinta? Dá um biscoito a esse menino.

- Hi! Hi! Hi! Não quero biscoito, quero rosca.

~ Onde é que eu vou buscar rosca a esta hora, nhonhô Joãozinho?

O terceiro, que dorme o sono da inocência, levanta-se despertado pela música dos irmãos, e procura um pretexto para chorar também.

Não é difícil achá-lo. Acostumado a acordar comendo e a adormecer à noite engolindo, lembra-se de que na véspera não tomou chá. e ei-lo entrando no harmonioso ensemble:

- Hi! Hi! Hi! Quero o meu pão da ceia.

- Não chora, nhonhô.

- Hei de chorar. O meu pão da ceia,

- Ó senhora, eu não posso dormir! Isto é um inferno!

- O que quer que faça? acode a mulher já de mau humor.

- Levante-se, A sua obrigação é cuidar dos filhos.

- E a sua também.

- Se lhe parece...

- É boa! Pelo que vejo eu devo ser pau para toda a obra!

- Para que se casou?

- Se soubesse que era para aturar estas e outras, não tinha certamente saído da casa de meus pais.

- Já tardava que a senhora não enchesse a boca com a casa de seus pais!

- Sabe o que mais? Durma, que o seu mal é sono.

O marido volta-se para um lado, e lá vai a mulher exercer a mais nobre das missões.

Serenada a tempestade, os três inocentes, metidos em calças de chita, deixando ver pelas aberturas posteriores as fraldas das camisas, montam em paus de vassouras e percorrem a casa, levando diante de si cadeiras e quebrando tudo.

- Onde está o jornal de hoje? pergunta o marido que, não podendo mais conciliar o sono, toma o expediente de erguer-se do leito e vir à janela respirar as brisas da manhã.

- Ainda há pouco o vi aqui.

- Estava em cima desta mesa.

- Ó Jacinta?

- Senhora?

- Quem foi que tirou o jornal que estava na sala?

- Não sei, não senhora.

- Então esse jornal não aparece?

- Está-se procurando.

- E a Gazeta de Notícias também sumiu-se?

- Procura o jornal, negra, não me exasperes.

Depois de muitas pesquisas, descobre-se que tanto o jornal como a Gazeta figuram nas cabeças dos três inocentes, transformados em chapéus de dois bicos!

- Isto não se atura!

- Menino, olha que eu um dia...

- Não fui eu, foi Pedrinho.

- É mentira, foi Joãozinho.

- Foi Chico, papai.

- Quem rasgou foi o Ciro.

Este pomposo nome de gloriosas tradições históricas pertence a um crioulinho, preto como azeviche, de oito para nove anos de idade. É o companheiro inseparável dos três. Filho da preta, amamentou o mais velho, goza em casa dos privilégios de cria, os quais como os leitores não ignoram, estendem-se desde a sala de visitas até ao tacho de doce de cozinha.

Há Ciros que, para divertirem os conhecidos e amigos da casa, cantam modinhas com muita graça, e dançam o fado com invejável habilidade.

Ciro é o primeiro mestre que têm os inocentes, antes de irem à escola beber os rudimentos da língua vernácula. Graças a tão proveitosas lições, Joãozinho chama os ladrões de capiangos, o Chico diz sabiava em vez de sabia, e Pedrinho tem uma prosódia especial. Esse distinto professor inocula-lhes também nos espíritos os primeiros germes de superstição.

Chico tem medo de lobisomens. Pedrinho conta aos camaradas que certas mulheres à noite viram mula sem cabeça. E Joãozinho acredita na influência do saci e dos diabos a tresandarem a enxofre, com os pés de cabra e olhos de fogo.

Continuemos.

À mesa há sempre grande discussão entre os três, por causa de lugares.

- Eu fico aqui.

- Esta cadeira não é sua,

- É minha. Mamãe, olha o Chico.

- Larga.

- Não largo.

Da discussão passam a vias de fato.

A mãe ou o pai, que nem sempre estão de bom humor, intervém no conflito, dando um carolo neste, uma chinelada naquele, o que os obriga a gritar com toda a força dos pulmões, terminando por estenderem-se no chão e espernearem como um peru degolado a debater-se com a morte.

É então que entra em cena a avó.

A avó é um ente incompreensível! Está constantemente a ralhar com os netos. Chama-os de pestinhas, se desaparecem-lhe os óculos da cesta de costura.

Quando um deles entorna vinho na toalha ouve imediatamente um longo discurso, em que figuram sempre estes chavões;

- "O menino está com o diabo no corpo! Não sei onde tem o juízo! Parece que tem bicho carpinteiro, Deixa estar que o colégio te há de ensinar etc., etc."

Não lhes perdoa, enfim, as travessuras, por mais insignificantes que sejam.

Ai! Porém dos pais, se ousam castigar uma das mimosas crianças...

A boa velha entra logo no terreno das recriminações, e agora a vereis:

- O pobrezinho não fez nada! Dão-lhe bordoada por dá cá aquela palha! Coitadinho do menino! Está magro só de pancada.

Graças à avó resolve-se do melhor modo possível o incidente das cadeiras, e eis os três a jantarem com invejável apetite, como se nada houvera sucedido.

Os episódios que se dão ao jantar são dignos de menção.

- Eu não quero o arroz assim, diz um.

- Ora, pois, vamos lá. Como quer o arroz?

- Quero por cima do bife.

- O meu pedaço é mais grande que o seu.

- Ixi! Olha só o meu de que tamanho é!

- Você não teve ovo e eu tive,

- Que bem me importa! Eu tive duas azeitonas.

- Papai, eu quero empada.

- Eu também quero.

- Eu quero do lado que tenha camarão.

Se há alguma visita à mesa, costumam os inocentes fazer às vezes revelações indiscretas, que põem a família de cara à banda.

Exemplifiquemos:

- Hoje aqui em casa houve o diabo por causa deste doce de coco.

- Cala a boca, menino.

- Vovó não viu?

- Está bom, coma: ninguém perguntou-lhe quantos anos tinha.

- Papai não quis dar dinheiro para os ovos. Mamãe disse que ...

O pai começa logo a tossir.

A mamãe franze os sobrolhos.

A irmã mais velha estende o braço por baixo da mesa, para obrigar o pequeno a calar-se com um beliscão.

A visita abaixa os olhos.

E o inocente, cora a singeleza que o caracteriza, está disposto a narrar a história até o fim, quando um beliscão mais forte obriga-o a voltar-se para a mana, e dizer-lhe em tom ameaçador:

- Você não me dá! Olhe que eu conto.

A irmã empalidece.

- Cala a boca menino.

- Conto sim, o que seu Juca disse a você lá na sala.

- Mamãe pensa que eu não vi? Vi, sim senhora.

Terminado o jantar chega o tal Juca, que é recebido em casa com as atenções e delicadezas de quem pode dar uma excelente corte de noivo.

O inocente mais bonitinho aproxima-se do novo personagem e diz-lhe:

- Ó seu Juca, você sabe de uma coisa?

- O que é, meu bem?

- Papai diz todos os dias à mamãe que há de agarrar você para casar com a mana, porque você é muito rico.

Há um minuto de silêncio.

Ninguém sabe o que há de dizer.

Ainda estão todos sob a pressão do desagradável incidente quando dá-se outro ainda mais terrível!

Batem à porta.

O menino dispara como uma seta para o corredor, e de lá começa a gritar:

- Mamãe? Mamãe?

- O que é?

- Está aí seu Peru Recheado.

- Meus Deus! Acode o pai, pondo as mãos na cabeça. Que vergonha!

- Passa para dentro, menino.

- É seu Peru Recheado, sim senhora, aquele homem muito gordo, que veio cá ontem...

- “Sou eu, minha senhora”, interrompe o sujeito, que sabe que é conhecido por aquela alcunha; e ao entrar na sala toma logo o expediente de aceitar as explicações que lhe dá a família com ar alegre:

- Não se zangue, minha senhora. Eu sei o que são crianças. Este é o mais velho?

- Não, senhor, é o do meio; o mais velho é aquele.

- É muito engraçadinho, e sobretudo muito vivo.

- Muito! O senhor não pode imaginar. Olhe, ainda anteontem...

E lá vem uma história das gracinhas da criança, contada com todos os pormenores.

- Deixe lhe mostrar o mais moço. Este é muito bem criadinho .

~ Ó Chiquinho.

- O que é?

- Vem cá.

- Não vou.

- Vem cá, meu filho.

- Ó home, o que quer comigo?

- Fale aqui com o senhor.

- Não falo.

- Assim é feio, vamos, venha perguntar como ele está.

O pobre homem, que receia alguma indiscrição, procura desculpar o menino do melhor modo possível, e muda o curso da conversa.

Momentos depois está o engraçadinho Chiquinho a brincar-lhe com a corrente do relógio, a pedir-lhe a bengala e a contar-lhe o que jantou naquele dia.

Tais são as crianças.

O chapéu, que lhes cai sob as unhas, fica sem pelo. Quando formam batalhões, brigam sempre por causa do comando. Passados os assomos belicosos, têm aspirações mais modestas, querem ser cocheiros.

Nesses momentos não há para eles posição mais invejável que a daquele que domina uma plataforma de bondes empunhando as guias de duas mulas.

Vamos brincar de escola, dizem às vezes aos companheiros.

Na tal escola o que se arvora de mestre dispensa tudo, menos os bolos.

Se lhes dão a metade de uma fruta, abrem o dique do choro, e reclamam-na inteira.

Quando comem em companhia de outros algum doce, procuram apreciá-lo aos bocadinhos, a fim de que sejam os últimos que fiquem mastigando e possam desta arte fazer inveja aos que deixaram de comer.

Em resumo, as crianças são homenzinhos com todos os defeitos e virtudes dos homens grandes.

Entretanto, ao vê-las resplendentes de beleza e de graça, exclamamos;

– Que anjinhos do céu!

- Que singeleza !

- Que candura!

Fonte:
R. Magalhães Junior. Antologia de humorismo e sátira. RJ: Bloch, 1998.

Nenhum comentário: