segunda-feira, 6 de abril de 2020

Malba Tahan (O Lao-Yê e a Flor)


Levanta-te, mulher! Levanta-te!
— És a fonte dos jardins, poço vivo das águas que correm do Líbano!
Salomão, Cantares, 4,15.


Recordo-me, e com muita saudade, da última visita que fiz a Damasco. Corria o ano de 1912 e o verão mostrava-se implacável. O meu companheiro de jornada, nesse tempo, era um jovem sírio chamado Omar Rabih, que eu conhecera dois anos antes em Palmira, durante o conflito com os agitadores franceses.

Certa manhã, muito cedo, deixamos a Praça do Serralho, subimos, a seguir, a tortuosa Sandja Kdar, cruzamos o Bazar dos Gregos, e fomos parar junto ao venerável túmulo do sultão Saladino. Era nossa intenção aguardar ali a chegada de dois vendedores de trigo, a fim de concluirmos os últimos detalhes de uma transação de alto interesse para mim, transação que fora iniciada, na véspera, por uma habilidosa proposta de Omar Rabih.

Esperamos, com paciência, cerca de meia hora. E os homens do trigo não apareciam.

— E os teus amigos virão? — indaguei, já preocupado com a demora injustificável dos mercadores.

— Não tenho a menor dúvida — tranquilizou Omar, falando com a maior serenidade. — O negócio ficou ontem bem assentado e deve interessar aos homens de Haourã. Não creio que eles se aventurem a quebrar o compromisso.

Mas o fato é que os mercadores tardavam. O tempo passava, arrastando a sua interminável caravana das horas perdidas. A larga praça que se abria em frente à Mesquita dos Omníadas (Alá que a nobilize cada vez mais!) ia, pouco a pouco, enchendo-se de forasteiros vindos de todos os recantos da Síria. Beduínos maltrapilhos, vendedores de refresco e caravaneiros de folga gritavam, discutiam e praguejavam sem cessar. Drusos arrogantes, com seus imensos turbantes brancos de musselina, cruzavam lentamente junto à fonte das abluções, dardejando para a direita e para a esquerda olhares cheios de rancor e de ameaças.

De súbito, com surpresa, avistei um chinês de semblante mole com um grande casaco amarelo, que descia de Bibars. Não me contive:

— Que maravilha! Um chinês em Damasco!

— Conheço-o de vista — informou, pressuroso, meu amigo Omar. — É um velho e piedoso islamita, da China muçulmana, que foi à Meca com os peregrinos damascenos. É homem culto, chefe de numerosa família e muito rico.

E acrescentou, com vivacidade:

— Aquele bom mandarim, crente de Alá, trouxe-me agora à lembrança uma lenda chinesa muito curiosa. Queres ouvi-la?

E sem aguardar resposta (que seria certamente afirmativa), o talentoso Omar contou-me o seguinte:

— Em Taiwan, na China, vivia (já lá se vão muitos anos) um velho Lao-Yê dotado de grande sabedoria. Cumpre-me esclarecer que Lao-Yê é a designação dada, na velha China, ao sacerdote que o povo respeita por seu saber e admira por suas virtudes.

Um dia, quando esse Lao-Yê se dirigia para o templo, encontrou uma jovem que se ocupava em enfeitar com flores um ídolo de bronze.

— Que estás fazendo aí, minha filha? — indagou o sábio em tom carinhoso.

— Senhor, — explicou a jovem — para exaltar Deus coloco flores em torno deste ídolo. Deus está no ídolo!

— Minha filha — tornou paciente o bom Lao-Yê —, bem longo é o caminho do erro, e ignorados são, por vezes, os atalhos que nos levam à Verdade. Estás agora, sem querer, com a inexperiência da vida, invertendo o significado das coisas e alterando o sentido oculto dos símbolos. É absurdo enfeitar um ídolo com flores, pois Deus está mais nas flores que no ídolo!

E, depois de proferir tais palavras, partiu o sábio para o templo onde se ocupava em ensinar aos moços piedosos, por meio de parábolas e alegorias, o caminho do eterno bem e da eterna verdade.

Quando o velho e judicioso Lao-Yê, algumas horas depois, voltou para sua rústica morada, passou outra vez pela casa da jovem adoradora de ídolos e encontrou-a ocupada em uma estranha tarefa. No alto de uma coluna havia colocado uma flor e, em volta da flor, procurava enfileirar vários ídolos.

— Estais vendo, mestre? — exclamou, dirigindo-se ao sacerdote. — Aprendi a vossa profunda lição. Reparai: agora são os ídolos que “enfeitam” a flor, pois Deus está mais nas flores que nos ídolos!

— Admiro a tua alma ingênua e simples — replicou o sábio, dobrando sua fronte calva. — Aprende, porém, a verdade: sim, Deus está mais na flor que no ídolo; é preciso, entretanto, observar que Deus está mais na mulher que na flor. Deus, ao criar a mulher, pensou nas flores, e por isso na mulher vamos encontrar delicadeza, bondade e beleza!

E, ao cabo de breve pausa, disse:

— Retira daí essa flor, minha filha. Coloca-a em teus cabelos e deixa os ídolos em paz! Mulher! És a fonte dos jardins, poço das águas que correm pelos campos!

Terminada a narrativa, Omar Rabih cruzou os braços e, fitando-me muito sério, disse, num tom que revelava irritação e mau humor:

— Os mercadores de Haourã não virão ao nosso encontro. Fomos ludibriados. Perdemos o negócio. Não conseguirás o trigo que tanto desejavas.

— Não faz mal — respondi tranquilo, plenamente conformado com a sorte. — Perdi o trigo mas ganhei uma lenda. Maktub! Que importa o trigo? Não é só de pão que vive o homem; vive, também, dos pensamentos felizes!

Muitos anos mais tarde, fui encontrar, entre os inesquecíveis poemas de Gibran Khalil Gibran, esta sentença admirável: “Não é só de pão que vive o homem; vive também das fantasias, dos sonhos e dos pensamentos puros que trazem alento e alegria ao nosso coração.”

Fonte:
Malba Tahan. Novas Lendas Orientais.

Nenhum comentário: