domingo, 5 de abril de 2020

Ruth Guimarães (Os Dois Papudos)


Vivia numa povoação um alegre papudo, estimado de todos, muito folgazão e boêmio. Não o impedia o papo de soltar grandes risadas. Pouco se lhe dava que o achassem feio, ou o chamassem de papudo. A verdade é que o tal papo o incomodava, mas o que não tem remédio remediado está, filosofava ele. E vamos tocar viola, e vamos amanhecer nos fandangos, viva a alegria, minha gente, que se vive uma vez só.

Certo dia, foi ao povoado vizinho, a uma festa de casamento, levando embaixo do braço a inseparável viola. Demorou mais que de costume, bebeu uns tragos a mais, porém não deixou de voltar para casa, pois era tão trabalhador quanto festeiro, e tinha que pegar no serviço no outro dia bem cedo.

Havia luar. Num grande estirão avistava a estrada larga, as touceiras de mato. Passava o gambá por perto dele, e o tatu, roncando, e voava baixo, silenciosamente, a corujinha campeira. O papudo não sentia medo. Andava em paz com Deus e com os homens. Os animais, que adivinham nele um homem de coração compassivo, também não tinham medo dele.

De repente, ao virar numa curva, viu embaixo da figueira brava, ramalhuda, uma roda de anões cantando. Todos com capuzes vermelhos, cachimbo com a brasa luzindo, a barba branca comprida, descendo até a altura do peito.

- O que será aquilo?

Por um instante teve algum temor. Mas era tarde para fugir. Os foliões já o tinham visto. E, se tratava de festa, isto era com ele. Saltou decidido para o meio da roda, empunhando a viola.

- Eu também sei cantar.

Enquanto pinicava as cordas, prestava atenção às palavras dos dançarinos. Eles entoavam:

Segunda, terça
Quarta, quinta...

E tornavam ao começo:

Segunda, terça
Quarta, quinta...

E assim sempre, numa musiquinha muito chata. Acostumado aos desafios, a improvisar, o papudo esperou a sua deixa. Assim que os anões começaram:

Segunda, terça
Quarta, quinta...

Ele emendou:

Sexta, sábado
Domingo também

A roda pegou fogo. Os pequenos duendes barbudos gostaram da novidade. Rodopiavam cantando numa animação delirante, e foi assim a noite toda. E o papudo tocando e dançando.

De madrugada, ao primeiro cantar do galo, a roda se desfez. O mais velho deles, e que parecia o chefe, perguntou-lhe:

- Que é que você quer, em paga de ter tocado para nós?

- Eu até que me diverti com esta festa - replicou o papudo.

- Mas peça qualquer coisa.

- Posso pedir seja o que for?

- Pode.

- Eu queria - disse ele, meio hesitante - queria me ver livre deste papo, que me incomoda muito.

Um anãozinho agarrou o papo com as duas mãos, subiu pelo peito do papudo, firmou bem os pés, deu um arrancão.

O papudo fechou os olhos.

- Agora eles me matam.

De repente sentiu o pescoço leve. Abriu os olhos. Os anõezinhos tinham sumido. Não ouviu mais nada. Meio cinzento, despontava o dia.

"Sonhei", pensou ele. "Bebi demais naquele casamento."

Passou a mão pelo pescoço, estava liso, sem excrescência nenhuma.

"Agora fiquei mais bonito", pensou também, muito satisfeito.

E aí deu com o papo jogado em cima do capim.

Agarrou a viola e foi para casa.

Imagine-se a sensação que não foi, o papudo amanhecer, sem mais nem menos, sem o papo.

- Que milagre foi esse? - perguntavam.

Papudo ria, papudo cantava, continuava folgazão como sempre, mas não contava a aventura, de medo que o chamassem de louco, e não acreditassem.

Esse moço tinha um compadre, que também era papudo.

E tanto apertou o amigo, e tanto falou:

- Eu também quero me ver livre desse aleijão. Quero ficar bonito, e arranjar uma namorada. Você não é amigo.

Foi assim, até que o moço lhe contou tudo.

O outro encarou, incrédulo.

- Verdade?

- Verdade.

- O anão falou que você podia pedir o que quisesse?

- Falou.

- E você em vez de pedir riquezas, pediu para ficar sem o papo?

- Ora, pobreza não me incomoda, mas o papo incomodava.

- Mas você é louco. Você é um burro. Pedisse riqueza. Quem é rico, que é que tem o papo? Quem se incomoda com papo? Eu, se fosse rico, me casaria com uma mulher bonita, do mesmo jeito. Você é bobo. Onde é esse lugar, onde você encontrou os fantasmas?

O outro preveniu:

- Compadre, você vai lá com esganação, vai ofender os anõezinhos, e ainda se arrepende.

- Nada disso. Você o que é? É um egoísta. Está formoso, que se danem os outros.

Aí o moço encolheu os ombros e falou:

- Sua alma, sua palma. Vá lá, depois não se queixe.

Ensinou onde era, o compadre invejoso agarrou a viola e foi, noite alta, direitinho como o outro tinha feito. Também era noite de luar. Também dançou a noite inteira, cantando. Ao primeiro cantar do galo a roda se desfez.

- Que é que você quer, em paga de ter tocado para nós?

O papudo deu uma piscadela maliciosa para o anão e falou, esfregando o indicador e o polegar, no gesto clássico, que significa dinheiro:

- Eu quero aquilo que o meu compadre não quis.

Um anãozinho foi ao capim, tirou o papo do outro que estava lá, e grudou em cima do papo do invejoso.

E assim, por sua louca ambição, ele ficou com dois papos.

Fonte:
Ruth Guimarães. Lendas e Fábulas do Brasil. 1964.

Um comentário:

Anônimo disse...

Achei muito legal esse texto gostei estou lendo ele para fazer a atividade de Língua Portuguesa :D